Em setembro, a comissão liderada por Ayres de Campos apresentou à Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) uma solução para acabar com o caos que levou a constrangimentos sucessivos em vários serviços de urgência de Obstetrícia e Ginecologia no país: encerrar, em definitivo, um conjunto de seis serviços (dois em Lisboa e Vale do Tejo, dois no Norte e outros dois no Centro).
Em entrevista ao programa Sob Escuta, da Rádio Observador, o médico, presidente da Associação Europeia de Medicina Perinatal, rejeita o termo “encerramento”, optando por se referir a uma “concentração de urgências em alguns hospitais”. Mas esse processo deu uma volta de 180º já esta semana, quando o organismo que gere os cuidados públicos de saúde, liderado por Fernando Araújo, deixou claro que ia fazer exatamente o oposto daquilo que tinha sido a proposta da comissão de especialistas: nenhuma urgência no país que atende mulheres grávidas vai fechar portas.
A decisão sobre o melhor caminho a seguir é sempre “política”, concede Ayres de campos, depois de ver a proposta que subscreveu ser liminarmente rejeitada pela Direção Executiva do SNS. “Há sempre posições ideológicas envolvidas nestas decisões”, relativiza o clínico. A carência de médicos e enfermeiros, diz, são o “problema de fundo” que levou aos problemas do verão passado. E o reforço de meios humanos, sendo uma solução consensual, é tudo menos imediata. Motivo: entre outros, a falta de “atratividade” do serviço público de saúde. Os médicos que estão em exclusividade no SNS “têm dificuldade em pagar rendas e despesas com filhos”, denuncia.
Veja aqui o vídeo da entrevista completa a Diogo Ayres de Campos
Nesse trabalho de análise e reflexão sobre um sistema de saúde depauperado de recursos humanos, a que se dedicou de forma mais incisiva nos últimos meses, Ayres de Campos chegou à conclusão de que o modelo de funcionamento rotativo entre serviços de urgência de diferentes hospitais atualmente em vigor — e que se prolongará, pelo menos, até ao final de março — simplesmente não funciona: “Não dá tranquilidade não saber se o hospital pode ou não estar fechado no dia em que uma mulher entra em trabalho de parto. Não dá segurança à população.”
“Encerramentos alternados das urgências não pode ser uma alternativa a longo prazo.”
Disse em janeiro que era preciso considerar a possibilidade de encerrar algumas maternidades do país. Mas a solução definida pela Direção Executiva do SNS foi absolutamente oposta. Houve quase uma oposição de princípio contra o encerramento destes serviços. Considera que esta é a opção mais acertada?
Não sei se é a posição mais acertada. É uma decisão política que cabe a quem tem esse poder. Na comissão, que elaborou a rede de referenciação hospitalar de obstetrícia, ginecologia e neonatologia, consideramos essa possibilidade de haver… Não é bem um encerramento de maternidades — é concentração das urgências em alguns hospitais. O documento foi finalmente posto em discussão pública ontem e diz que a concentração, transitória ou não, de urgências e blocos de partos em alguns hospitais parece-nos ser a única forma de assegurar uma resposta consistente à população.
A concentração implicaria sempre o encerramento deste tipo de serviços.
Não é encerramento, o texto é muito claro em relação a isso. É a deslocação da urgência e do bloco de partos para um hospital ao lado, mantendo no serviço as atividades programadas, como cirurgias, consultas ou ecografias.
Acaba por não ser essa a decisão da Direção Executiva. Considera que estas tomadas de decisão são mais fundamentadas em posições ideológicas do que técnicas?
É claro que há sempre posições ideológicas envolvidas nestas decisões, que são complexas.
Encara com naturalidade o facto de haver mais ideologia do que conhecimento científico da tomada de decisão?
Não vejo isso dessa forma. O problema de fundo é haver poucos médicos e poucos enfermeiros especialistas. A partir desse momento, tem duas hipóteses: ou arranja mais mais médicos ou tem de concentrar. Não há grandes alternativas a essas duas opções. Se a opção for arranjar mais médicos e resolver dessa forma, ficamos encantadíssimos.
Mas isso nunca é uma solução imediata.
Demora algum tempo, a não ser que se consiga captar para dentro do SNS alguns médicos que estão como prestadores de serviço. Neste momento, para as urgências do SNS, os médicos ganham muito mais dinheiro se forem como prestadores de serviços do que se forem como médicos dos quadros hospitalares. Se houver uma reversão dessa realidade, então pode ser essa a solução.
Reconheceu que encerrar maternidades tinham um efeito negativo inquestionável junto da opinião pública. Diria que não há coragem política para tomar esse tipo de decisões?
Acho que é uma decisão difícil e compreendo perfeitamente que o seja. Tem a ver com alternativas. Acho que uma decisão política tem sempre em consideração qual é a alternativa melhor ou a menos desestabilizadora das expetativas da população. Neste momento, a alternativa que está a ser posta em prática — encerramentos alternados em Lisboa e Vale do Tejo — tem de ser considerada uma solução provisória. Não pode ser uma alternativa a longo prazo.
Quis esclarecer que a comissão de acompanhamento não recomendou o fecho de maternidades, que essa era uma das possibilidades, mas não era a única. Quais eram as outras opções em cima da mesa?
O problema de fundo é haver poucos profissionais porque o SNS não é atrativo. É preciso ir à raiz desse problema e isso, de facto, ainda não foi resolvido. Tem estado a ser discutido com os sindicatos e passa um pouco ao lado da atividade da comissão, mas ainda não se foi à raiz do problema. Também não é só um problema financeiro, de salários: é também algum problema de organização. O que temos estado a fazer com a Direção Executiva e com o Ministério é contribuir, de um ponto de vista técnico, para essa reorganização. E isso passa pelo que é o alvo da norma da Direção-Geral da Saúde que saiu na semana passada: dizer em que situações clínicas, as queixas das grávidas, que devem motivar uma ida à urgência; e quais é que devem motivar uma ida a uma consulta no hospital ou aos centros de saúde. Esperamos que isso leve a menos atendimentos nas urgências de obstetrícia e ginecologia do que tem havido até agora. É preciso implementar e que os hospitais vejam isto como um aspeto fundamental dos seus objetivos a curto prazo, mas acho que o aspeto da organização é importante.
“Encerrar urgências é uma solução que tem de ser considerada com seriedade”
Em setembro surgiram as notícias de que havia uma lista de maternidades que poderiam ser encerradas para garantir estabilidade no sistema. Mas, já no início do ano, quis esclarecer que é um parecer técnico. Porque é que foi tão importante deixar isso claro?
Porque, se a decisão me competisse a mim, eu diria claramente qual era. Aqui era uma comissão técnica que elabora eventuais alternativas e cuja decisão é política. Durante muito tempo, como aquilo que está na lei é que quem faz uma rede de referenciação hospitalar deve fazer uma proposta, entregá-la ao ministro e depois ele é que a coloca em discussão pública, achei que não era elegante da minha parte divulgar o documento. Agora que está divulgado — finalmente, ficamos todos muitos contentes com isso…
Tardou?
Não sei se quatro meses é muito ou pouco, mas para nós foram quatro meses que não foram muito agradáveis.
Nestes quatro meses tem havido avanços e recuos na tomada de decisão. Não tem sido um caminho muito estável neste campo.
Para nós foi difícil lidar com estes quatro meses por várias razões. Ele tem de ser posto em discussão pública, não é um documento definitivo e tem de estar um mês em discussão pública. Nesse documento — que finalmente está disponível, em vez de eu estar a dizer uma coisa que ninguém pode confirmar —, diz-se para, em alguns hospitais, considerar centralizar a urgência e bloco de partos. Por exemplo, o hospital de Famalicão centralizar com Braga ou Guimarães. Na Póvoa de Varzim, considerar centralizar no Hospital de Matosinhos. Enfim, nos seis hospitais que já foram referenciados. E mais uma vez refiro: não é encerrar a maternidade. É uma possibilidade de reorganização com uma capacidade de resposta que fosse mais consistente. A partir desse momento, sabia-se que era aquele hospital que estava a dar apoio. Como estamos neste momento, é uma mensagem mais difícil para a população.
O sistema de rotatividade?
Sim. Tem levado de vez em quando a problemas porque as pessoas não sabem se é num fim de semana ou noutro.
Tem-lhe chegado informação concreta sobre situações em que as grávidas não sabem onde dirigir-se?
Houve uma situação em que, como muda todos os fins de semana, às vezes as pessoas não sabem exatamente [onde ir]. Sobretudo nos fins de semana em que há muitas maternidades que estão encerradas, principalmente na região de Lisboa, tem havido uma pressão muito grande sobre os hospitais que ficam abertos. Outra questão importante é: porque é que achamos que isto tem de ser uma solução temporária? Porque achamos que, para uma grávida que já decidiu onde quer ter o bebé, não dá tranquilidade não saber se o hospital pode ou não estar fechado no dia em que entrar em trabalho de parto. Não dá segurança à população.
Qual seria efetivamente a solução ideal para este problema?
Antes de lhe responder, deixe-me apenas apontar outros dois problemas desta situação. Nós tentamos sempre evitar a transferência inter-hospitalar de grávidas em trabalho de parto. É sensível e não dá tranquilidade nenhuma a um momento que deve ser de recolha e tranquilidade. Outro problema é que sabemos que, quando uma maternidade vai encerrar, temos senhoras que não podemos transferir porque não têm condições de segurança. Nessas situações, se vamos encerrar e não se dá o parto, questiona muito a equipa de urgência sobre o que deve fazer. Acaba por haver mais tendência a fazer cesarianas nessas situações, que também não são boas soluções a não ser que haja motivo para isso. Qual é a solução? Tem de se encontrar uma estratégia que seja mais concertada, que não seja uma coisa num fim de semana e outra noutro.
Mas poderá passar por aceitar que há blocos e urgências que têm de encerrar de forma definitiva?
Essa é uma das opções, mas claramente não é a opção que quer o Governo quer a Direção Executiva do SNS tomaram.
Por falta de coragem política? Se o melhor conhecimento técnico diz que essa é a solução mais válida, porque é que considera que a Direção Executiva não a toma?
Não sei se é a solução mais válida. É uma solução que tem de ser considerada com seriedade. Se há outras alternativas, é possível que haja — igualmente válidas e igualmente seguras. Estamos neste momento a explorar essas alternativas com a Direção Executiva do SNS.
Ainda não ficou claro quais seriam as soluções alternativas a um encerramento definitivo de alguns serviços de urgência.
Há várias opções que são utilizadas na Europa. Há maternidades que não têm a sua urgência aberta ao público, só por referência. Estamos a estudar várias soluções alternativas àquilo que está neste momento em vigor; e que leva em conta esta solução que o Governo quer — de não haver concentração de maternidades.
Tem sentido falta de apoio político que venha a sustentar os pareceres que tem assinado?
Não vejo isso dessa forma. Temos feito um trabalho que tem sido útil. A rede de referenciação hospitalar é um documento fundamental — e 99% não tem nada a ver com concentração de recursos — para saber como se organizam as respostas em saúde nesta área. Se conseguirmos chegar ao fim com a rede de referenciação, cuja última versão é de 2002, já valeu a pena o esforço todo. Outro aspeto muito importante é esta norma da Direção-Geral da Saúde, que já estava em falta há muitos anos. Não era muito claro: se uma pessoa se dirigia à urgência com uma queixa que não era de urgência, não havia base legal para a enviar para os centros de saúde. E tem havido apoio político mais do que suficiente para levar a cabo essas reformas, que são importantes. Há sempre aspetos em que as pessoas não estão de acordo imediatamente e, no fundo, quem decide são os políticos. Mas respondendo à sua pergunta: não tenho sentido isso de maneira nenhuma.
Teme que, mantendo estes serviços a funcionar tal como estão, a qualidade seja afetada? Preocupa-o neste momento a saúde das grávidas?
Não acho que seja uma solução de um país europeu. Não conheço mais nenhum país europeu em que isto aconteça.
Foi uma criatividade?
Começou com a proposta em relação ao Natal e ao Fim de Ano, em que de facto havia um problema temporário e nós estivemos de acordo que era melhor organizar as coisas. Depois foi-se estendendo… Também na altura não havia alternativa nenhuma.
Era melhor isto do que nada?
Claramente que sim. O que estava a acontecer até dezembro era que cada hospital, quando sentia que não conseguia assegurar aquela escala, encerrava.
Isso criava ainda mais instabilidade.
Para as grávidas, não dá segurança nenhuma. Agora pelo menos sabem que é ao fim de semana. Não acho que seja a solução, mas é melhor do que estava antes.
No fundo, continuamos a adotar soluções de recurso até uma decisão definitiva ser implementada. Quando é que acha que não podemos esperar mais e não podemos continuar a adotar soluções que não são de países “civilizados”? Qual é o calendário para uma solução definitiva para a questão das urgências?
É curioso porque o problema não é no Natal nem no Ano Novo porque há poucos partos. É mais no verão. Temos de ter as medidas no terreno antes do verão. Estes encerramentos alternados estão associados até ao final de março. O que nós estamos a tentar encontrar com a Direção Executiva é uma alternativa que, quando se chegar ao fim deste período de três meses, nos dê uma tranquilidade durante os meses do verão.
Mas ainda não sabe qual poderá ser a solução definitiva?
Se não tivesse ideia nenhuma, não estava a dizer que estamos a trabalhar numa solução.
Então que ideias tem?
Há várias ideias. Se formos ao Reino Unido ou a França, uma grávida que queira ir a uma urgência geralmente telefona antes. Há uma triagem telefónica, não no local, e há critérios bem estabelecidos para uma grávida ir. Se tem uma dor no pé, sabe que deve ir ao centro de saúde e não à urgência. No meu entender, é por aí que devemos avançar. [O fecho alternado de maternidades] acho que não é uma solução de um país europeu. Compreendo como solução temporária, mas não a longo prazo: temos de arranjar uma solução que seja mais apropriada para os cuidados obstétricos e ginecológicos em Portugal. Temos de facto bons indicadores de saúde.
“Não estamos em medicina para fazer aquilo que as mulheres querem”
Já confessou estar preocupado com a percentagem de cesarianas realizadas em Portugal, sobretudo no setor privado. O que seria uma percentagem adequada a nível nacional?
Os números da OMS são de 1985, de maneira que já estamos muito longe desses números. Há vários estudos que compararam as taxas de cesarianas com as taxas de mortalidade perinatal e o melhor equilíbrio anda à volta dos 20%. Se formos comparar com outros países europeus, entre os 20% e os 25% são números razoáveis. De facto, em Portugal, temos uma taxa muito mais elevada do que isso.
Porque é que quantidade de cesarianas que se tem registado é preocupante? O que diz a evidência científica sobre os riscos de uma cesariana por oposição a um parto vaginal?
A cesariana, quando é necessária, ninguém a põe em causa. Se formos comparar o risco de cesariana com os de um parto normal, eles são francamente superiores para a cesariana. A ordem de grandeza é quatro, cinco, seis vezes superior. Podemos dizer que os riscos são, globalmente, baixos. Mas são superiores na cesariana.
E que riscos são esses?
São riscos, sobretudo, de tromboembolismo — trombos nas veias que, depois, podem passar para os pulmões —, e aí o risco é francamente maior na cesariana. Há um risco hemorrágico, que também é francamente maior. E há um risco infeccioso maior da cicatriz da cesariana. Nas gravidezes futuras, a cesariana também aumenta o risco de algumas complicações específicas da gravidez. Quando são necessárias, fazemos uma cesariana. O que está aqui em causa é a cesariana desnecessária.
Também há mulheres a preferir cesarianas por questões psicológicas e até para ter uma vida mais controlada. Como é que se responde a esses casos.
Eles estão identificados há muitos anos e é uma percentagem pequena, inferior a 1% ou 2% na maioria dos países.
Então como chegamos a percentagens tão superiores àquilo que é recomendado, sobretudo nas maternidades privadas?
Tem muito a ver com a informação que é dada. A escolha de uma mulher relativamente ao parto que quer ter depende muito da informação que recebe e em que se baseia para tomar essa decisão. Se não dizemos de uma forma muito clara estes riscos, há muitas mulheres que vão achar que aquela é a forma mais segura de se nascer. E, de facto, não é. Sobretudo para a mãe. Para o filho não faz grande diferença, o risco é exatamente igual.
Considera que estamos perante casos de má prática clínica quando não se informa mal uma mulher que vai ter um filho? Ou quando há informação mas a mulher decide avançar com a cesariana. Isso é condenável, na sua opinião?
Não, porque não estamos em medicina para fazer aquilo que as mulheres querem.
Mas estão em Medicina para seguir a melhor recomendação científica.
Claro que sim. A recomendação devemos fazer. Mas, apesar das recomendações todas, há fatores de ordem psicológica que podem condicionar a decisão. Já fiz cesarianas sem indicação porque achei que era a única forma de resolver aquela situação de ansiedade. Uma coisa é, no início da gravidez, informar dos riscos. Outra coisa é apanhar as senhoras já em trabalho de parto já com a decisão de fazer cesariana. Nessas situações, é muito difícil dizer que afinal vamos fazer um parto normal.
Olhando para os números de cesarianas no setor público, elas rondam os 25%, 30%, ou seja, cerca de 10%, 15% acima dos valores recomendados pela Organização Mundial de Saúde. São dados que geram preocupação?
A taxa de 20, 25% parece-me razoável a nível nacional. Alguns hospitais públicos têm 27%, 28% de taxa de cesarianas. São hospitais de referência, que recebem pessoas com algumas doenças e que é natural que tenham uma taxa um pouco mais elevada. Os hospitais que têm situações de baixo risco devem ter à volta dos 25%.
E não geram particular preocupação?
Nalguns hospitais, sim. Na globalidade, penso que a taxa é um pouco elevada, mas está dentro dos padrões europeus.
“O que preocupa mais são os pequenos hospitais que têm taxas de cesarianas muito próximas dos 100% dos partos”
Há uma portaria que exige aos privados o envio de dados sobre partos e cesarianas à DGS, mas a Direção-Geral da Saúde já se queixou de que o processo é demorado e que a comunicação não está bem estabelecida. O que deve ser feito para resolver essa situação? Há alguma forma de fazer uma fiscalização que assegure que as entidades privadas reportam esses dados à DGS?
As entidades têm de fornecer esses dados por lei.
Mas isso não tem acontecido.
A DGS poderá informar se tem ou não. No ano passado, esses dados foram solicitados e a grande maioria deles foi obtida. Mas nas entidades privadas as taxas de cesarianas não têm nada a ver com esses 27, 28%.
Temos grandes grupos hospitalares em Portugal. Esses geram preocupação, no que diz respeito à taxa de cesarianas realizadas, ou só estamos a falar de uma escala mais reduzida?
Estamos a falar de uma escala mais reduzida, porque os grandes grupos hospitalares com cuidados obstétricos que existem, sobretudo, na região de Lisboa e do Porto — mas mais na região de Lisboa — têm uma taxa de cesariana elevada, acima de 50%, mas não muito. Não digo que aqui não haja preocupações: 55% de taxas de cesariana nalguns dos grandes hospitais de Lisboa é preocupante. Alguns hospitais privados têm mais partos que os hospitais públicos e isso afeta muito a taxa nacional de cesariana. Mas aquilo que me preocupa mais são as pequenas clínicas, pequenos hospitais que têm taxas de cesarianas muito próximas dos 100%.
A Direção Executiva está a avaliar um conjunto de regras para garantir a qualidade e segurança nas maternidades em todo o sistema de saúde. Enquanto membro destas comissões está a participar de alguma forma no gizar de um plano para o sistema de saúde?
Estou a participar em vários aspetos desse plano, não sei se em todos aqueles em que está a pensar, se não também não fazia mais nada. Mas, sim, na maior parte deles tenho estado envolvido. Mas, atenção, a Direção Executiva do SNS não tem nada a ver com a qualidade no privado. O Ministério da Saúde é que tem esse objetivo e essa obrigação. E suponho que querem que as regras sejam iguais para a medicina pública e privada, o que me parece bem, porque a população não deve ser distinguida dessa forma.
Que orientações devem ser seguidas? Há critérios alinhados para que a segurança esteja assegurada?
Os critérios de cuidados em obstetrícia já se usam há muitos anos e são utilizados a nível internacional para comparar países. Têm a ver com as taxas de cesarianas, com algumas outras intervenções — por exemplo, os partos instrumentados [o recurso a ventosas ou fórceps], as episiotomias [quando é feita uma incisão na região do períneo].
O próprio número de partos.
Sim, o número de partos. Mas isso não é um critério de qualidade. Tem a ver com a mortalidade, com a morbilidade, complicações do parto. Todos os hospitais devem ser avaliados da mesma forma e a taxa de cesarianas devem ser um dos critérios, não é o único.
E dessa avaliação pode decorrer a decisão de encerrar determinados serviços?
Se estamos a avaliar critérios de qualidade e há instituições que não atingem esses critérios, é preciso fazer alguma coisa.
E daquilo que é o seu conhecimento, considera que há serviços que deveriam ser obrigatoriamente encerrados por não cumprirem os critérios aplicados?
Isso implicava que eu tivesse feito uma avaliação de todos os hospitais pequenos que têm partos, e não tenho essa informação. Não sei dizer se há serviços que devem ser encerrados.
Não tem essa perceção?
Tenho essa ideia, mas não é informação que tenha segura, é aquilo que me transmitem. A ser verdade que há hospitais com perto de 100% de cesarianas, e se não fizerem nada para mudar essa realidade a muito curto prazo, claramente devem ser encerrados. E não é só por causa das cesarianas, é por causa de outros indicadores de qualidade que possam não estar a ser cumpridos.
E tem noção da percentagem dos serviços que estão próximos desse valor? Há muitos serviços a atingir esse patamar?
Suponho que em algumas zonas do país, com hospitais pequenos, haverá um número bastante grande que não cumpre esses critérios.
Mas está a falar de dezenas de instituições de saúde?
Não sei dizer. A ideia que tenho é que há vários hospitais com essas taxas de cesariana. O problema, quando se tem uma taxa de cesarianas próximo dos 100%, é que praticamente não existe equipa de apoio ao trabalho de parto, às vezes nem existe bloco de partos. Se não é utilizado, o que está ali a fazer? Cria-se uma cultura, uma escola para fazer cesarianas.
Nos serviços que funcionem com 100% de cesarianas, é muito provável que tenham sido criados para esse efeito, que não tenham intenção de promover qualquer mudança. Nesses casos, deveria ser encarado o encerramento desses serviços?
Ou, pelo menos, juntarem-se a outros que não sejam apenas um bloco operatório que faz cesarianas.
Apenas para tentar equilibrar os números?
Eu não faço medicina privada. Mas imagine: tenho um hospital pequeno, que faz só cesarianas e faz 40 por ano, e tenho um parto eutócito [o bebé nasce de cabeça para baixo, por via vaginal] porque não houve tempo para fazer a cesariana. Com uma realidade destas, é muito difícil criar uma equipa para dar apoio a um parto normal, porque isso implica estar 24h sobre 24h, um enfermeiro especialista e um médico, pelo menos à chamada. A única forma de conseguir alterar esta realidade é congregar serviços.
“Médicos em exclusividade têm dificuldade em pagar rendas e despesas com filhos”
Há pouco falávamos da atratividade do serviço público de saúde para os profissionais. De que forma se pode tornar o SNS mais atrativo?
Esse é o problema de fundo. Tenho vindo a ouvir nestes últimos anos cada vez mais pessoas a dizerem que gostavam de estar no SNS, e que acreditam nos valores do SNS, mas que depois não conseguem pagar as contas. Quando eu me formei — e fiquei logo em exclusividade quando comecei a trabalhar, nos anos 1990 —, havia muitas pessoas assim. Ainda há, mas cada vez menos. O problema é que as pessoas não conseguem complementar o seu ordenado no SNS, que é bastante pequeno, com a atividade privada e têm dificuldade em pagar rendas e despesas com filhos.
Nem sequer estamos a falar de profissionais pouco diferenciados.
Tem havido políticas um pouco incertas em relação a isso. Se for claro que a política é não ter grandes salários no SNS porque se pretende que os médicos complementem o seu ordenado no privado, pronto. Às vezes é assim, mas com o ministro seguinte já é ligeiramente diferente. E temos sofrido com estas alterações constantes nas políticas de base para o SNS.
Têm sido estudados incentivos, como a possibilidade de um complemento salarial em função da exclusividade no SNS. Que outros incentivos poderiam ser criados? Que ansiedades ouve dos seus colegas?
Além da remuneração, a progressão na carreira tem sido difícil, irregular, às vezes abrem concursos e outras vezes não. Honra seja feita, têm sido abertos mais concursos nos últimos tempos. Mas é uma situação que se tem arrastado nos últimos três, quatro anos sem que tenha havido uma decisão formal sobre isso.
Esteve com a pasta da mortalidade materna. E já disse no Parlamento que a situação em 2020 não era tão grave como parecia ao início. Qual é, afinal, a realidade nesta área?
Tem havido uma avaliação cuidadosa de um grande número [de mortes maternas], já teremos 40 ou 50 situações, e estamos a avaliar desde há bastantes anos. É forçoso que haja uma avaliação cuidadosa de cada caso porque quando acontece um infortúnio de uma mulher grávida que morre, nem sempre isso representa uma morte materna. Pode ser uma morte que coincidiu com um acidente de viação, uma doença que apareceu naquela altura mas que não teve nada a ver com a gravidez. Surgiu aqui ideia, um pouco precipitada, e que depois teve eco na comunicação social, de que tínhamos uma taxa de mortalidade materna muito elevada.
E qual é a realidade?
Infelizmente, ainda não tenho um número final e ando a pressionar muito a DGS para que, pelo menos em relação a um dos anos, divulgue esse número. Provavelmente, estaremos ao nível daquilo que se passa na maior parte dos países europeus. Temos tido, nos últimos anos — por haver uma grande atratividade para o país de populações da Ásia e África —, pessoas que vêm cá ter o parto, por vezes sem grande vigilância perinatal e com dificuldade enorme de linguagem, porque não falam inglês nem português. É possível que tenhamos tido um aumento das complicações por causa desse fenómeno. Mas não é nada tão grave como chegou a ser noticiado.