Há um “país preocupado” com a subida do preço dos alimentos, nas palavras do ministro Costa Silva, e que assim deverá continuar até que a estratégia posta em marcha pelo Governo tenha resultados palpáveis. Para já, são seis os pontos da dita estratégia, apresentados esta quinta-feira pelo Ministério da Economia. Recaem, em grande medida, nas mãos da ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica). Foi por terem soado as campainhas no seio desta entidade no final do ano passado, na análise mensal que faz aos preços de um cabaz básico de alimentos, que a fiscalização nos supermercados vai agora aumentar. Mas, além desta estratégia fiscalizadora, haverá outras medidas na calha.
A subida do preço dos alimentos entrou no radar do Executivo como uma prioridade e estão a ser avaliadas medidas para travar a trajetória dos últimos meses, que o ministro da Economia qualificou de dissonante com o que se passa em outros países da Europa. Para isso o Governo está a olhar com atenção para o que fizeram (ou anunciaram) outros países como Espanha, França e Grécia e para os resultados obtidos.
Excluindo sempre a descida, ou eliminação, da taxa reduzida do IVA por considerar que os exemplos recentes destas decisões, como o caso espanhol, confirmam a expectativa do Executivo de que a baixa de custos seria absorvida pelas margens dos operadores e não chegaria aos preços. Há medidas que apostam na auto-regulação e contam com colaboração do setor da distribuição, como o modelo francês, e outras mais impositivas como a que foi aplicada na Grécia.
A Grécia tem sido um dos países mais castigados pela inflação, que atingiu os 12% no verão. Atenas definiu no final de 2022 um cabaz com 31 categorias de bens essenciais (pão, leite, massa, arroz, carne) e as cadeias com vendas anuais superiores a 90 milhões de euros têm de disponibilizar um produto por cada categoria a um preço mais baixo e a publicitá-lo. Esta medida estará em vigor até março. O cabaz é atualizado todas as semanas por acordo com o setor. No final do ano passado a cesta tinha 50 categorias. A inflação na Grécia tem vindo a descer e em fevereiro estava nos 6,5%.
Em França, as grandes empresas de distribuição chegaram a um acordo para oferecer o preço mais baixo possível para produtos essenciais. A campanha, anunciada esta semana, vai durar três meses e irá representar perda de margens de várias centenas de milhões de euros. O pacote anti-inflação foi anunciado pelo ministro da Finanças, Bruno Le Maire, e tem um caráter voluntário, dando margem para cada operador adotar medidas diferentes, propondo o mix que considerem mais eficazes para os seus clientes. Os cortes nos preços serão assim decididos por cada cadeia e irão incidir sobre produtos de marca própria da cadeia de distribuição onde há mais margem de manobra.
Em Espanha, e desde setembro, há tentativas da ministra do trabalho e da economia social, Yolanda Díaz, para levar as cadeias de distribuição a fixar preços de um cabaz de produtos alimentares e outros considerados essenciais. A cadeia francesa Carrefour, uma das maiores empresas no mercado espanhol, propôs uma lista de 30 produtos básicos por 30 euros para comprar todas as semanas.
O que não agradou à ministra do Podemos, partido da coligação que governa. O maior partido, o PSOE, já afastou cenário de fixar preços para certos alimentos e admite-se que o Governo de Sánchez, que já baixou o IVA de alguns alimentos para 0%, possa avançar com um subsídio ao consumo alimentar das famílias, à semelhança dos descontos de 20 cêntimos que paga nos combustíveis.
Retalho não pode copiar energia
O ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, destacou esta quinta-feira o resultado das medidas do Governo para a contenção dos preços da energia que tiveram, defendeu, um contributo positivo para a travagem da inflação. A energia só contribuiu com 1,9%, bem abaixo da inflação, o que, disse no Parlamento, confirma que foi possível trazer os preços para baixo. Ao contrário do que acontece em outros setores, assinalou o ministro, sem nunca se referir ao retalho alimentar.
“Do ponto de vista dos preços, e ao contrário de outras áreas económicas, temos uma metodologia e uma entidade reguladora que identifica eventuais margens abusivas pode propor uma intervenção”, no caso de detetar margens abusivas, especificou.
Esta legislação foi aprovada na sequência de uma denúncia de aumento de margens na venda de combustíveis durante a pandemia, feita por uma entidade pública. Até agora, a ERSE só propôs uma vez uma intervenção para travar margens excessivas no setor do gás de botija e nunca o fez no mercado de retalho dos combustíveis porque não detetou margens abusivas, desde que faz monitorizações semanais.
Mas a exportação deste modelo para a alimentação está fora dos planos do Governo, sabe o Observador. A ASAE não é um regulador e o setor alimentar não é comparável ao da energia onde existem poucos operadores e uma grande concentração do mercado, o que facilita a sua fiscalização. No retalho alimentar há milhares de operadores, desde a mercearia de esquina até à grande superfície, e também centenas ou milhares de produtos, bem como múltiplas cadeias logísticas.
Governo “inflexível com situações anómalas”
Para já, perceber a origem do problema é a prioridade do Governo português. Só depois se poderá atuar sobre ele. Se for provada a prática de especulação, o Executivo promete uma ação “musculada”. “Seremos inflexíveis com situações anómalas”, disse o ministro António Costa Silva. Na conferência desta quinta-feira, a ASAE apresentou valores relativos às margens de lucro brutas do retalho que não são, apesar do contexto inflacionista, comuns. Mas é preciso investigar antes de acusar, diz o Governo. Do lado da distribuição, a ideia é que a pressão pública do Governo serve apenas para provocar danos de imagem.
Desde janeiro de 2022 que a ASAE vai ao terreno, diga-se, ao supermercado, recolher um conjunto de bens essenciais para lhes verificar o preço. São abrangidas as três principais marcas da distribuição. Nesse cabaz cabem produtos de várias categorias, como peixe, carne, legumes, frutas, massas, arroz, leite, azeite, óleo, ovos, açúcar, leite, pão e farinha. O primeiro objetivo era verificar se as condições de abastecimento, nomeadamente se haveria riscos de rutura de stocks e açambarcamentos. O que não aconteceu, “com exceção de produtos específicos e de forma residual”. A segunda meta passava por monitorizar os preços. E aí, constatou a ASAE, nem tudo batia certo.
Entre janeiro do ano passado e fevereiro último, o preço deste cabaz saltou cerca de 27%, de um valor inicial de 74,90 euros para 96,44 euros. O aumento foi expressivo no início da guerra da Ucrânia, como seria de esperar, e o ritmo da subida abrandou entre julho e setembro. A partir do último trimestre de 2022, o salto voltou a ser considerável.
“Temos indicações claras sobre a inflação, que está a diminuir há quatro meses, e esperávamos que noutros setores tivéssemos também tendências claras de diminuição de preços”, começou por dizer o ministro da Economia, lembrando que a inflação está na casa dos 8%, enquanto o índice relativo aos alimentos não transformados está nos 21%. “E tem-se acentuado. É uma matéria que nos preocupa muito”. Se, num primeiro momento, os aumentos ficaram a dever-se aos preços da energia, aos fertilizantes e ao custo das matérias-primas, isso hoje já não serve de justificação, considera o ministro.
“O preço do petróleo está hoje alinhado com o verificado antes da invasão da Ucrânia”, o preço do gás e da eletricidade também está longe dos picos históricos de 2022 e os fertilizantes também estão, diz o ministro, em queda. “Em todos os fatores que explicam a alta da inflação há uma diminuição, e isso contrasta com os preços dos alimentos”.
Então, como se explicam as subidas que se acentuaram em outubro? A desconfiança do Governo, e da ASAE, aponta para as margens dos supermercados. Insinuações que o setor rejeita com veemência.
“O relatório da ASAE, que nós não conhecemos, nem conhecemos a base de investigação, deixa-nos muito desconfortáveis. E deixa-nos ainda mais desconfortáveis e incomodados que sejam feitas declarações avulsas sobre produtos avulsos, quando nós temos justificação para o aumento destes produtos, que decorre do próprio aumento dos custos que os fornecedores nos têm transmitido”, refere ao Observador Gonçalo Lobo Xavier, diretor-geral da APED.
O estranho caso das margens das cebolas
Neste sentido, além da monitorização dos preços, a ASAE avançou para uma segunda fase. Que passa por elaborar relatórios que permitam desconstruir a estrutura dos preços. Ou seja, que permitam perceber quanto custa um produto em todas as suas fases de vida: do produtor à indústria, passando para a distribuição e para o consumidor. O objetivo é claro: saber qual a margem de lucro de cada um dos agentes.
O trabalho feito até ao momento já permite tirar algumas conclusões. Que não abonam a favor da distribuição. Segundo a ASAE, foram registadas margens médias de lucro bruto, relativas a 2022, de 20% a 30% no açúcar branco, óleo alimentar e dourada. Estas foram superiores, de 30% a 40%, nas conservas de atum, azeite e couve coração. E ainda maiores, de 40% a 50%, nos ovos, laranjas, cenouras e febras de porco. Há um produto que bate todos os recordes: a cebola, que estará a ser vendida na distribuição com margens superiores a 50%.
Neste trabalho da ASAE foi também notória a evolução das margens entre janeiro e dezembro de 2022. Por exemplo, a margem de lucro bruto do açúcar branco passou de 7% para 23% neste período. A do leite UHT meio gordo escalou de 9% para 18% e a da maçã Golden passou de -2%, ou seja, de uma venda com prejuízo, para 16%. A do robalo fresco nacional subiu de 2% para 7%.
“Essas contas estão mal feitas, as margens não são essas”, sublinha o diretor-geral da APED. A margem comercial não é lucro, não são a mesma coisa”, começa por explicar. A ASAE contou, para já, a margem de lucro bruta, que é a percentagem de lucro que resulta da venda dos produtos, contando o preço de aquisição e o preço de venda final. A ASAE admite que o lucro líquido pode ser outro. A APED lembra que entre a aquisição e a venda há, por parte dos supermercados, custos com manutenção logística ou transporte dos produtos.
Em todos os produtos referidos, acrescenta, do leite à alface, dos ovos às cenouras e às cebolas, “todos têm tido taxas de aumento por parte dos fornecedores que são refletidas no preço final. Por muita eficiência que tenhamos no processo, não conseguimos não transmitir estes aumentos”.
Para o setor, “não é admissível que um ministro da Economia venha tecer este tipo de comentário sobre empresas que são sérias, transparentes, que têm responsabilidades no mercado e grandes índices de confiança por parte do consumidor”. O dano na imagem está feito, refere o diretor da APED. “É um abalo reputacional muito grande que nós não podemos aceitar”.
Já quando, em outubro, o Governo anunciou a criação de uma taxa sobre os lucros extraordinários da distribuição, a APED refutou a argumentação do Governo. Para o ministro, “cada uma tem a sua narrativa e não há que ter narrativas, a verdade é só uma e é objetiva. É essa verdade que temos de procurar. Somos a favor dos factos, dos números, as narrativas ficam para quem as quer produzir”.
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Os raides da ASAE às prateleiras, que serão reforçados já a partir desta quinta-feira, pretendem aferir várias coisas. Por um lado, se o preço de prateleira e o preço praticado em caixa são iguais, ou se existem práticas comerciais que possam configurar crime de especulação. Além disso, os inspetores procuram perceber se o peso do produto referido na embalagem corresponde, efetivamente, à realidade. E é feito ainda um controlo metrológico dos instrumentos de pesagem.
As ações efetuadas entre setembro do ano passado e os primeiros dias de março, que envolveram 38 brigadas, 80 inspetores e cobriram a totalidade do território nacional, detetaram várias falhas. Na área alimentar, houve indícios “no domínio da especulação”, nomeadamente diferenças de preços afixado e cobrado entre 1,2% e 70%. Entre o peso apresentado e real, a diferença chega a 12%.
Foram inspecionados 960 operadores económicos e abertos 51 processos-crime de especulação, e ainda 91 processos contraordenacionais, que dizem respeito à identificação das práticas descritas. Gonçalo Lobo Xavier admite que “em todas as organizações há erro humano e a alteração de preços constante obriga a um grande trabalho por parte das equipas”, pelo que “tem havido alguns erros que estamos a corrigir”. O responsável destaca que apesar dos erros detetados em desfavor do consumidor, “75% dos erros que existem são a favor do consumidor”. E remata: “estamos muito confortáveis com as ações inspetivas da ASAE”.
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“Parece-nos que há práticas abusivas que têm de ser sancionadas”
É com estes números, e mais dúvidas que certezas, que o Governo parte para uma estratégia de seis dimensões, muito focada na ação da ASAE e no “diálogo” com os intervenientes da cadeia, da produção à distribuição. “Respeitamos as companhias, mas também os direitos dos consumidores”, disse Costa Silva. “Não queria fazer generalizações, mas parece-nos que há práticas abusivas que têm de ser sancionadas”, notou.
A primeira “dimensão” começa e acaba na ASAE. Esta quinta-feira, os inspetores lançaram-se numa nova grande operação de inspeção aos preços em todos os pontos do país. A segunda também cabe à autoridade da segurança alimentar, e é a continuação do trabalho que já vem a ser feito, de estudo sobre a evolução dos preços e a compreensão da sua estrutura. “Desde a produção até à transformação e distribuição. Temos de exigir transparência. Seremos inflexíveis com situações anómalas”, declarou o ministro. Um dos objetivos passa por “dotar a ASAE dos recursos necessários” e outro é “trabalhar com organismos que podem ser relevantes neste setor”, como a Autoridade da Concorrência.
Um dos pontos da estratégia é o diálogo com os operadores. Esta quarta-feira houve uma primeira reunião entre o primeiro-ministro e a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED) para “perceber o que se está a passar no mercado” e “passar uma mensagem sobre responsabilidade social”.
E a última dimensão passa por convocar a Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Agroalimentar (PARCA), para “perceber a interação entre as várias cadeias”.
Em maio do ano passado, a ministra da Agricultura tinha adiantado que o Governo estava a preparar-se para propor alterações ao funcionamento deste mecanismo de acompanhamento. Ao Observador, Maria do Céu Antunes detalhou que o ministério iria “propor algumas alterações para agilizar e criar mecanismos que nos ajudem a trabalhar melhor junto de todos os elementos da cadeia alimentar”. No Parlamento, a ministra tinha anunciado que o papel da PARCA seria “repensado”, no âmbito da conjuntura atual de preços elevados. Até hoje, não houve mudanças.
Esta intenção de mudança na PARCA surgia, então, no âmbito da criação de um Observatório de Preços, que nasceu em outubro, e que tem como meta, precisamente, vigiar os custos, preços e margens do setor agroalimentar e contribuir “para uma maior transparência em toda a cadeia de valor agroalimentar, acompanhar a sua evolução, e dotar as entidades competentes de um instrumento que permita monitorizar, avaliar e definir melhores políticas públicas nesta matéria”.
Esse Observatório existe e está ativo, e todas as semanas apresenta as cotações médias de 20 produtos, comparando os valores das quatro semanas mais recentes com os do período homólogo do ano passado, e com as quatro semanas anteriores. As fontes deste mecanismo são o Sistema de Informação de Mercados Agrícolas (SIMA) e a Docapesca. A primeira fase deste projeto, que decorre, é a publicação das cotações dos produtos. Na segunda será analisada e publicada a evolução de preços no consumidor e ao produtor e a evolução dos preços ao longo da fileira, bem como a apropriação de valor e as margens líquidas de cada setor.
Questionado, esta quinta-feira, sobre os resultados deste Observatório, o ministro Costa Silva remeteu para o Ministério da Agricultura. “O Observatório de Preços foi uma iniciativa do Ministério da Agricultura, em que nós participámos, está em processo de lançamento, mas como temos a PARCA a funcionar, vamos convocá-la este mês. A ideia é articular depois com Observatório de Preços. O Ministério da Agricultura tem um gabinete que faz essa monitorização, senta-se na PARCA com a ASAE, a Autoridade da Concorrência, a DGAE e a DGC. O que queremos é que haja uma troca de informações entre estes mecanismos para termos o máximo poder da parte do Estado, para detalhar o que se passa no mercado”, concluiu Costa Silva.
Para o ministro, “este é o tempo da fiscalização, da regulação, da procura pelas causas que estão a provocar este comportamento dissonante” dos preços dos alimentos. Quanto a resultados concretos, e à rapidez da sua efetivação, o ministro Costa Silva é mais evasivo, considerando que as próprias ações da ASAE já potenciam resultados concretos nos preços por via do efeito dissuasor. “Acreditamos numa economia de mercado saudável, e que o mercado deve funcionar tanto quanto possível, mas a fiscalização também deve funcionar tanto como seja necessário”.
O ministro foi reforçando, ao longo do discurso, que o Governo será “inflexível” caso se verifique que existem “práticas abusivas à medida que os dados forem surgindo”. Para já, ressalva, “as margens de lucro brutas não indiciam prática criminosa”. Mas são um alerta.