“Não deixou de ser feito nada“, disse esta quinta-feira Fernando Medina, para que a dívida tenha ficado abaixo de 100% do PIB já em 2023. O ministro das Finanças garante que a redução do endividamento não foi obtida à custa do investimento público – essa rubrica, garante, aumentou face ao ano anterior (apesar de ter ficado aquém do orçamentado). A “chave” deste resultado, a dívida mais baixa desde 2009, foi o “mercado de trabalho” e, por isso, é “um tributo aos portugueses” que irá resultar na poupança de milhares de milhões de euros em juros pagos a credores estrangeiros.
Fernando Medina reconheceu que a execução do investimento “ficou aquém do que estava orçamentado” (em 2,2 mil milhões, segundo dados da Direção Geral do Orçamento) mas isso deveu-se a “dificuldades múltiplas relacionadas com elaboração de projetos, de arranque de concursos”. Porém, disse o ministro das Finanças, “o mais importante é compararmos com o investimento público efetivamente feito” e “não deixou de ser feito nada”: “Houve mais investimento público no ano de 2023 do que tinha havido em 2022″, sustentou.
Como foi, então, conseguido o “brilharete” na dívida? Fernando Medina não o referiu na conferência de imprensa desta quinta-feira, mas essa redução aconteceu por várias vias. Houve uma diminuição da dívida das administrações públicas, incluindo uma redução de 1.022 milhões de euros em dívida (vencida) a fornecedores do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que foi paga pelo Estado em dezembro. O pagamento de dívidas de empresas públicas também foi determinante, em particular alguns valores que estavam no balanço dos metros de Lisboa e Porto – o Estado transferiu fundos para que essas empresas reembolsassem dívidas acumuladas, através de aumentos de capital. Segundo consultas do Observador ao Portal da Justiça, a Metropolitano de Lisboa teve uma injeção de 224 milhões, valor idêntico a um total de três aumentos de capital realizados na Metro do Porto. No conjunto as duas companhias tiveram um “bónus” no final do ano de quase 450 milhões que serviu para “limparem” dívida. A operação realizada em 2023 para a limpeza de passivo da CP não teve impacto nesta redução de dívida, já que estava tudo no perímetro público.
Saneamento financeiro da CP avança. Companhia vai ser compensada pelas obrigações de serviço público
Segundo tinha noticiado o jornal Expresso, na reta final do ano houve um sprint do Ministério das Finanças para garantir que se terminava o mandato (precocemente interrompido pela queda do Governo) com uma dívida pública abaixo dos 100% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso implicava que a Agência de Gestão da Tesouraria e a Dívida Pública (IGCP) fizesse reembolsos antecipados de dívida que ajudassem a diminuir as responsabilidades do Estado português, aproveitando a liquidez disponível e que era superior às expectativas do Governo graças à receita fiscal acima da prevista.
Questionado pelo Observador, o IGCP confirmou que “no decorrer de 2023 as necessidades de financiamento do Estado foram reduzidas para 17,8 mil milhões por motivo principal de maiores receitas“. Numa fase inicial, essas receitas públicas maiores do que as esperadas resultaram na redução do programa de emissão de obrigações do Tesouro (e de bilhetes do Tesouro, isto é, dívida de curto prazo). “Posteriormente, traduziram-se num acumular de excedente de tesouraria superior ao limite estabelecido no Programa de Financiamento de 2023″, explicou o IGCP.
Assim, os “excedentes de tesouraria foram aplicados na aquisição de títulos de dívida pública, permitindo a redução do nível de endividamento”, confirmou o IGCP, ao Observador”. Foram recomprados, antecipadamente, 2,9 mil milhões de euros em dívida pelo IGCP – títulos que estavam na mão de investidores internacionais e que foram reembolsados antes da data prevista para a maturidade dos títulos (o momento em que o capital é devolvido ao investidor, em circunstâncias normais).
A notícia mais importante para os bolsos dos contribuintes é que esta redução da dívida, que segundo Medina corresponde a 9,4 mil milhões de euros em termos nominais, significa uma poupança de 3,3 mil milhões de euros, ao longo da próxima década. São juros que seriam pagos a credores, essencialmente estrangeiros, e que assim deixam de sair do país – e “podem ser alocados a futuros governos, conforme as prioridades”, disse o ministro. Uma estimativa que tem por base um juro médio de 3,5%.
Mercados “já descontaram” a “história positiva em Portugal”
O valor de 98,7% não é definitivo porque foi calculado com base no deflator do PIB do terceiro trimestre. Quando for conhecido o dado definitivo para o quarto trimestre o valor poderá ser revisto mas, caso isso aconteça, no Ministério das Finanças contabiliza-se, no máximo, uma alteração de 1,5 ou 2 décimas. Ou seja, o rácio da dívida poderá ir para 98,8% ou 98,9% mas não é provável que chegue aos 99%.
Apesar da poupança obtida com a redução da dívida total, não é expectável, dizem os analistas, que o anúncio de uma dívida abaixo do patamar de 100% tenha um reflexo imediato sobre as taxas de juro a que o Estado se financia quando emite nova dívida nos mercados.
Para Lyn Graham-Taylor, analista de mercados de dívida do banco holandês Rabobank, em Londres, este é um marco que “não se pode dizer que seja especialmente importante nos mercados neste momento”. “Claro que existe uma perceção de que Portugal tem uma história positiva mas eu diria que esta descida da dívida é algo que já está descontado há muito tempo pelos mercados e refletido nos atuais preços da dívida portuguesa”, afirma o especialista, ouvido pelo Observador.
O facto de as obrigações portuguesas estarem a negociar com juros inferiores aos de Espanha é um dos indicadores de que esta “história positiva” já está incorporada pelos mercados, diz o mesmo analista, apesar de a descida do rácio dívida/PIB ter, ao baixar para menos de 100%, surpreendido o próprio Governo, que ainda em outubro apontava para 103%.
“Este marco não é algo em que os mercados se vão fixar, neste momento, provavelmente. A história principal em Portugal é que o país se colocou numa posição muito mais favorável em comparação com a situação que existia antes do programa de assistência”, diz Lyn Graham-Taylor, acrescentando que “é importante para Portugal que continue o impacto positivo do aumento do turismo, que tem ajudado imenso”.
Mas se para o analista londrino não é expectável um impacto muito relevante deste marco, mesmo tendo em conta que se baixou para menos de 100% um ano antes do previsto, Paulo Rosa, do Banco Carregosa, acha que, apesar de tudo, esta é uma notícia que irá ter um impacto positivo – designadamente na apreciação feita pelas agências de rating.
Para o economista sénior do Banco Carregosa, a diminuição mais rápida do que o previsto na dívida “abre portas a mais atualizações positivas pelas agências internacionais de classificação de crédito, diminuindo a perceção de risco e aumentando a procura dos investidores internacionais”. Mesmo que o efeito não seja imediato, Paulo Rosa acredita que isto é algo que irá “contribuir para um adicional e gradual estreitamento do spread da dívida soberana portuguesa face à dívida pública alemã”.
“Um rácio da dívida pública face ao PIB nominal inferior a 100% é apenas um marco ‘simbólico’, mas mostra à Europa a credibilidade de Portugal e a sua determinação na redução da dívida, fortalecendo a sua fidúcia nos mercados internacionais e a sua capacidade creditícia”, diz Paulo Rosa.
Para já, esta “história positiva” de Portugal, de que fala Lyn Graham-Taylor, é justificação para que os investidores estejam a pedir taxas de juro inferiores para emprestar a Portugal do que a Espanha. A dívida portuguesa a 10 anos está a ser transacionada entre os investidores a uma taxa implícita de 2,88% – o que é um indicador para o custo que o País teria de suportar para emitir nova dívida neste prazo. A Espanha pede-se 3,09% e a Itália 3,72%, uma sequência que está em linha com o endividamento público (face ao respetivo PIB) de cada um destes países.
Mérito? Só se for de António Costa, diz Medina
“O resultado que o país atingiu durante o ano de 2023 resulta de múltiplas circunstâncias”, explicou Medina em conferência de imprensa. “O principal tem a ver com o crescimento da economia e os dados do emprego”, disse o ministro das Finanças, acrescentando que “atingimos o máximo histórico de pessoas a trabalhar no nosso país”, “com o consumo dos seus salários a gerar receita fiscal e com os descontos dos seus salários a gerarem receita fiscal e contributiva”.
O aumento do emprego e dos salários, que em 2023 foi de 8% (em termos declarados), “traduz-se numa melhor situação das finanças públicas”, explicou Medina, agradecendo à equipa das Finanças a semanas de deixar de ser ministro.
Fernando Medina não fez qualquer comentário sobre se admite continuar, caso o PS vença as eleições, mas ainda teve tempo, no final, para responder a perguntas sobre a polémica antecipação, por Mário Centeno, do indicador que só sairia publicamente às 11h00. Cerca de hora e meia antes, numa conferência em Lisboa, o governador do Banco de Portugal confirmou que, “com toda a probabilidade”, o supervisor que lidera iria calcular a dívida pública num nível abaixo de 100% do PIB.
Centeno anuncia que Portugal fechou ano de 2023 com dívida abaixo de 100% do PIB
Estaria Mário Centeno, um dos antecessores de Medina (pelo meio, João Leão esteve no Terreiro do Paço), a garantir que não se esqueciam de quem foi o primeiro ministro das Finanças neste processo? Medina não quis falar em “mérito”, além daquele que é dos portugueses, das empresas e dos contribuintes. Porém, em termos políticos, se há mérito, esse é de António Costa.
“Quem conhece o funcionamento de um Governo sabe que a orientação que o primeiro-ministro coloca em cada objetivo é o elemento fundamental da condução da governação”, afirmou Fernando Medina, acrescentando que “a sustentabilidade das nossas finanças públicas como objetivo foi definido de forma muito clara em 2015 e o que os três ministros das Finanças tiveram foi, no fundo, em circunstancias muito diferentes, de seguir o mesmo objetivo de assegurar as necessidades dos portugueses, nomeadamente nas crises, mas também assegurar a sustentabilidade das contas públicas”.
“Todos nós tivemos o mesmo mandato, se mérito fundamental existe é de quem definiu a visão e deu a força aos sucessivos ministros das Finanças”, rematou Fernando Medina.