Se a história da lingerie do século XX fosse um conto infantil, o vilão chamar-se-ia espartilho, o soutien passaria por herói e a combinação seria aquela personagem ligeiramente mais complexa com um bocadinho dos dois. A princesa? O corpo feminino, naturalmente. A alegoria é esclarecedora (engraçada até), mas nos últimos 120 anos a evolução da roupa interior das mulheres esteve longe de ser assim tão linear. Linear, lin (linho em francês), linge (linge de maison = roupa de cama), lingerie — enfim, a etimologia é o que menos importa aqui.
“A lingerie ajudou sempre a definir a silhueta vigente nas várias décadas.” Quem o diz é Anabela Becho, historiadora de moda e investigadora no Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (CIAUD).
Tal como na moda do vestuário exterior, a lingerie avançou e retrocedeu ao sabor das marés políticas e socais. Na verdade, essa é também a história da silhueta feminina, com a diferença de que, ao contrário dos tailleurs bar, dos les smokings e dos wrap dresses desta vida, a lingerie nem sempre esteve à vista de toda a gente. No recato do lar, fez a mulher respirar de alívio com o aproximar dos anos 20. Nos anos 40, as pinups provaram que a evolução da roupa interior era um caminho sem retorno e que a quantidade de tecido, cada vez menor, nunca mais voltaria a aumentar (pelo menos, não se viria a inventar). Tornou-se minimal, milionária, minimal e milionária e até a simples ausência dela se afirmou como uma declaração de independência.
O “cofre de seda”, mais conhecido como espartilho
Nenhuma outra peça de roupa interior perdurou tanto no tempo. Durante sensivelmente quatro séculos, o espartilho foi sinónimo de elegância feminina, mas também de boa conduta e estatuto social. A teoria mais unânime é de que a peça nasceu em Itália e de que foi Catarina de Médici a levá-la para França quando casou com Henrique II. Espanha é outra das origens prováveis, já que foi o país onde nasceu o verdugado, estrutura de madeira presa à cintura responsável pelo aspeto volumoso das saias e primeira versão da crinolina.
Se inicialmente o objetivo do espartilho era sustentar os seios e assegurar uma postura hirta, no século XVIII estava mais do que assumido que a principal função era adelgaçar a cintura e quanto mais cedo as mulheres começassem a usá-lo melhor. Madeira e barbas de baleia eram os materiais mais utilizados para dar rigidez às peças. Surgiram na época os primeiros alertas de médicos para os prejuízos para a saúde, de costelas partidas e malformações nos ossos à deslocação de órgãos. Mas o espartilho ainda apertou mais.
Foi na Inglaterra vitoriana que a moda atingiu o auge, já no século XIX. Os tecidos eram cada vez mais luxuosos, mas lá dentro havia um novo elemento: o aço. É a época do tight-lacing e de casos extremos em que as cinturas mais finas iam pouco além dos 40 centímetros. Em 1874, uma lista de 97 doenças nomeava uma única causa: o uso exagerado do espartilho. No mesmo ano, a intelectual norte-americana Elizabeth Stuart Phelps, voz da reforma do vestuário feminino, apelou a que todas as mulheres queimassem os seus espartilhos. Em outubro de 1903, o The New York Times trazia uma notícia insólita. Na autópsia a uma mulher de 42 anos, vítima de morte súbita, o médico descobriu duas peças de aço do espartilho alojados no coração.
Enquanto o uso do espartilho se tornava cada vez mais extremo, surgiram as primeiras alternativas. Na viragem do século, a designer Jeanne Margaine-Lacroix chocava Paris ao mostrar a ilustração de um vestido sans corset na revista L’Art et La Mode. A elasticidade dos materiais exigiam o mínimo de estrutura nas suas peças e esta seria a primeira de várias polémicas em torno das criações da criadora. Anos depois do primeiro vestido sem espartilho ter aparecido, foi Paul Poiret a dar força à tendência ao resgatar o estilo neoclássico através peças muito mais leves. Em 1903, Mariano Fortuny y Madrazo desenha o vestido Delphos. Na época, o modelo era utilizado pelas mulheres dentro de casa. Foi preciso esperar até aos anos 20 para vê-lo sair à rua.
Havia uma fábrica de espartilhos na Amadora
Não vale a pena apanhar o metro para ver o que resta da antiga Fábrica de Espartilhos a Vapor Santos Mattos & Cª, porque no lugar dela, hoje, só vai encontrar blocos de apartamentos. Fundada em 1895 na antiga Porcalhota, a pequena oficina familiar cresceu e no início do século XX era já uma fábrica com maquinaria francesa movida a vapor. Em 1914, foi construído um moinho junto à fábrica que abastecia o edifício com energia elétrica.
Até ao encerramento, já no final dos anos 60, a fábrica manteve-se um negócio familiar. Dos três sócios, José dos Santos Mattos, José Augusto Roubaud e António Rodrigues Corrêa, só o terceiro não pertencia à família, cujas mulheres ocupavam os cargos de contramestras. Durante décadas, esteve dividida em dois pisos. Em baixo, os homens trabalhavam com barbas metálicas e ilhós. No andar de cima, as costureiras e modistas manipulavam toda a espécie de tecidos. É que da Amadora saiam espartilhos para todos os bolsos, dos mais baratos em sarja de algodão, às peças com rendas, brocados e sedas puras. Parte do sucesso da Santos Mattos deve-se ao facto de ter sido pioneira na normalização dos tamanhos, algo que só viria a tornar-se prática comum com a difusão do pronto-a-vestir, em meados do século XX. Produzia medidas para todos os corpos e chegou mesmo a exportar para a ex-colónias.
Chegou a empregar 300 pessoas nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, por sinal, a época dourada da produção de espartilhos na Amadora. Na edição de 8 de maio de 1911, a revista Ilustração Portugueza dedicou sete páginas à Santos Mattos. Além da referência à fábrica que laborava a todo o vapor, a publicação empenhou-se no elogio ao uso do espartilho. A peça era na época tão indispensável ao quotidiano de uma mulher de classe média ou alta como as restantes peças de roupa. “A decadencia plastica da mulher retardou-se vinta annos com o espartilho. Este beneficio bastava para o absolver de todos os seus maleficios. Graças a elle, a mulher pode prolongar a linha airosa do seu corpo juvenil, conservar a flexibilidade elegante da mocidade, manter no aconchego d’esse cofre de seda a erecção do collo e a finura da cinta”, lê-se. Lidas as palavras do dotado redator, a conclusão é só uma: o que seria da mulher sem espartilho.
Dentro da fábrica, que se intitulava a maior da Península Ibérica, a carga horária diária chegava a ser de 12 horas nos longos dias de verão. Os trabalhadores, sobretudo as mulheres, laboravam ali como um complemento à atividade agrícola e percorriam a pé longas distâncias, vindos de localidades como Belas e Venda Nova. Na Casa dos Espartilhos, a loja da fábrica na Rua do Ouro, o cenário era outro. Aí só trabalhavam mulheres, que garantiam um atendimento atencioso e recatado às clientes, sempre no primeiro andar.
Segundo Anabela Becho, Portugal só deixaria de acompanhar a par e passo as tendências de Paris com a ditadura. Até então, a sintonia com o último grito da moda parisiense era total. “No início do século, nas primeiras duas décadas, a moda em Lisboa estava muito alinhada com a moda internacional, sobretudo a de Paris. O ‘atraso’ veio com a ditadura, embora na década de 40, com as refugiadas, as mulheres portuguesas adquiriram maiores hábitos de higiene e de embelezamento, e também de ousadia, lingerie incluída”, afirma a investigadora.
O negócio começa a esmorecer depois da guerra. O espartilho começa a entrar em desuso e, dez anos depois, já só as senhoras mais conservadoras continuavam a usar a peça. Ao longo do século XX, a Santos Mattos foi diversificando a produção, à semelhança do que aconteceu um pouco por todo o mundo. Chegou a fazer cintas medicinais e até roupa de criança. Palmira Bastos terá sido uma das clientes mais fiéis. Até à sua morte, em 1967, a atriz portuguesa usou os espartilhos feitos na Amadora.
A guerra. No campo de batalha e na roupa interior
Anabela recorda A Pompadour, loja da Rua Garrett, em Lisboa, que nos anos 20 e 30 arrojou exibir as primeiras montras com peças de lingerie. Com a primeira guerra, as mulheres assumiram um relevo sem precedentes no mercado de trabalho e o vestuário teve de acompanhar o novo quotidiano. “Nos anos 20, a silhueta é praticamente direita, sem curvas, com o peito dissimulado. As peças de roupa interior eram as combinações, que acompanhavam o corpo mas não marcavam nem a cintura nem o peito. É a silhueta longilínea de Jean Patou e de Coco Chanel”, refere.
O espartilho distanciava-se cada vez mais do guarda-roupa feminino. Foi substituído pelas combinações e mesmo nos anos 30 e 40, altura em que a cintura voltou a ficar mais insinuada, surgiram versões mais pequenas, muito semelhantes a cintas. “O início do século XX representa uma mudança de paradigma na relação do vestuário com a real fisicalidade do corpo feminino, que durante séculos foi restringido, quase alienado da sua forma. Nos anos 50, volta-se às silhuetas mais estruturadas”, afirma Anabela Becho. A mulher ficou mais livre, ao passo que, durante os conflitos, a indústria preferiu canalizar as componentes metálicas das peças mais estruturadas para a produção de armamento, e não só. “Comecei a trabalhar numa fábrica de espartilhos com 14 anos, em 1939. Seis meses depois, tivemos de mudar dos espartilhos para paraquedas, máscaras de gás e capas de revólveres.” O relato é de Kathleen Mary Partridge, uma operária fabril de Bristol que partilhou a sua história com a BBC.
Então e o soutien? Embora haja registos de peças semelhantes na Grécia Antiga e na Idade Média, o soutien como hoje o conhecemos nasce em 1914, pelas mãos de Mary Phelps Jacob. “Traga-me dois lenços de bolso e um pedaço de fita cor-de-rosa”, terá dito para a sua empregada enquanto se preparava para ir a um baile. Registou a patente da brassiere, mas acabou por vendê-la à Warner Brothers Corset Co., uma empresa do Connecticut, por 1500 dólares, atualmente o equivalente a 37 000 dólares.
Nos anos 30 e 40, a descoberta de fibras artificiais revoluciona o setor. A lingerie deixa de se resumir a duas únicas possibilidades — algodão ou seda — e caminha para a produção em massa. Encolhe e a culpa não é só das guerras. “Não podemos excluir os fenómenos socais e tudo o que a mulher conquistou no século XX. As transformações aconteceram por causa das guerras mas também pelo lazer, pela vida ao ar livre, pelos desportos e pela praia. Perante este novo modo de vida, a lingerie tinha de ficar mais pequena”, completa Anabela Becho.
Em Hollywood, quanto mais para cima melhor
Do recato do lar para as páginas de revistas e jornais, em meados do século passado, Hollywood dispensa o vestuário exterior. Atrizes, pinups, it girls mostram as curvas ao mundo. A lingerie passa a ser sinónimo de sensualidade, ao mesmo tempo que Christian Dior recupera a silhueta de outros tempos: cinturas marcadas e peitos proeminentes. Bralettes e cuecas de cintura subida dão lugar a peças bem mais próximas da lingerie que conhecemos hoje.
Então e se os atributos naturais da mulher não fossem suficientes para a tão desejada figura? É aí que entra um senhor chamado Frederick Mellinger. Foi com o seu alto patrocínio que as bombshells da época se tornaram ainda mais vistosas. Como? Mellinger não só cria o primeiro soutien almofadado em 1947, altura em que funda a marca Frederick’s of Hollywood, como, um ano depois, lança o famoso The Rising Star, o primeiro soutien push-up da história. Qual foi a inspiração? Frederick limitou-se a pedir conselhos aos seus colegas do exército sobre que tipo de lingerie é que gostavam que as suas namoradas usassem. Eles responderam e desde então o mundo nunca mais foi o mesmo.
“Free the nipple” e os soutiens que valem milhões
Quem diria que, 20 anos depois, haveria mulheres a queimar soutiens. O gesto foi mais político do que outra coisa (afinal, um soutien não é um espartilho assassino), ainda assim houve quem lhes chamasse “instrumentos de tortura das mulheres” durante o protesto feminista de 7 de setembro de 1968, em Atlantic City, nos Estados Unidos. Na verdade, as ativistas do Women’s Liberation Movement lutavam precisamente contra o que tinha acontecido lá atrás: a exploração comercial do corpo da mulher. Muitos direitos foram conquistados, o soutien ficou sossegado no sítio dele, mas não por muito tempo.
Em 1977, Roy e Gaye Raymond fundavam a Victoria’s Secret, em São Francisco. Viria a ser a próxima marca espetáculo, depois da Frederick’s of Hollywood começar a perder pujança. De certa forma, a vulnerabilidade da lingerie converteu-se no poder da mulher. “É um paradoxo: ao mesmo tempo que espartilha, é também um símbolo de feminilidade”, conclui Anabela Becho, investigadora do CIAUD. No romper dos anos 90, Madonna apontou os seus seios cónicos ao mundo e transformou a roupa interior numa farda performativa.
Dos Roxy Music a Kate Moss, a ausência do soutien nunca mais deixou de pairar, fosse uma provocação em tom roqueiro ou a manifestação suprema daquele effortless cool. No fim do século XX e tal como no resto da moda, a lingerie já era um mundo. Um mundo com referências para revisitar (é olhar para as obras-primas Jean-Paul Gaultier, Thierry mugler e Alexander McQueen e tentar encontrar o espartilho) e cheio de linguagens diferentes. Onde a logomania da Calvin Klein ganhou popularidade ao mesmo tempo que a Victoria’s Secret construía soutiens de 10 milhões de dólares, curiosamente, semelhantes aos adereços que Mata Hari usava há 110 anos. Afinal, nem tudo mudou.