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Seis meses separam o último Orçamento de Leão do primeiro de Medina. E se na sua maioria o documento que gere as contas públicas se mantém praticamente igual face ao que foi chumbado em outubro do ano passado, há algumas alterações a ter em conta. Desde logo por causa da guerra na Ucrânia, que está a puxar a inflação para níveis dos anos 90 e a obrigar o Governo não só a refazer as projeções anuais do indicador como a pôr em marcha pacotes para mitigar os efeitos do aumento dos preços nas famílias e nas empresas, ou para apoiar os refugiados vindos do leste europeu.
Mas nem tudo é fruto da guerra. No novo documento, o Executivo decidiu marcar outras diferenças, nomeadamente como uma referência à concentração no edifício-sede da Caixa Geral de Depósitos dos gabinetes governamentais e dos serviços e organismos da Administração Pública para melhorar a “eficiência” na “gestão de equipas” ou a taxa anual de dois euros paga pelos operadores de televisão por cada subscrição — que, afinal, não vai ser duplicada.
O efeito guerra, que o Governo acredita ser temporário
A resposta aos efeitos da guerra e da aceleração da inflação são a marca mais evidente que Fernando Medina introduziu na proposta herdada de João Leão. O ministro das Finanças espera que estes efeitos sejam temporários, tal como o impacto na subida dos preços, justificando assim a manutenção da política salarial no Estado.
Mas há um conjunto de medidas, anunciadas como temporárias para conter preços e apoiar famílias e empresas e descritas como de “mitigação do choque geopolítico”, que tem um custo global de 1.800 milhões de euros. Nesse pacote, há 1.200 milhões que correspondem ao impacto financeiro direto dessas medidas em despesa e em perda de receita fiscal. Os apoios ao preço dos combustíveis com a baixa do ISP (para já por dois meses em substituição do Autovoucher) e o congelamento da taxa de carbono são os mais significativos e deixam mossa na previsão de receita. O documento prevê uma queda de 2% na receita do imposto petrolífero, face a 2021, quando a proposta de outubro previa uma subida. O desvio é de quase 200 milhões de euros.
Governo tenta conter perda fiscal nos combustíveis e prevê baixar imposto apenas 2 meses
O Orçamento também tem quase 400 milhões de euros para ajudar as empresas que usam mais energia a suportar o aumento da fatura energética — 160 milhões de euros em ajudas a fundo perdido para os custos do gás, 150 milhões do Fundo Ambiental para as tarifas elétricas e 75 milhões para apoios a empresas de transportes. Há ainda apoios dirigidos aos setores agrícola e das pescas, o diferimento do pagamento de contribuições fiscais e Segurança Social e um cheque de 60 euros mensais para mais de 800 mil famílias de rendimento mais baixo para ajudar a suportar a subida dos preços.
As medidas de “mitigação do choque geopolítico” são as que saltam mais à vista, mas há outras novidades.
O mundo mudou — e as projeções também
Muito mudou desde que o Governo apresentou a primeira proposta de Orçamento do Estado para 2022: a guerra na Ucrânia puxou a inflação (em março) para níveis que não se viam desde junho de 1994, o barril de petróleo passou a barreira dos 100 dólares pela primeira vez desde 2014, a cotação de cereais como o milho e o trigo subiram na ordem dos dois dígitos.
Perante o cenário de incerteza, as previsões do Governo plasmadas no programa de estabilidade, apresentado duas semanas antes da nova proposta de OE, não chegaram sem surpresa: aí, o Executivo apontava para uma inflação de 2,9% em 2022 (na proposta chumbada era de 0,9%), um crescimento do PIB de 5% (em vez de 5,5%) e um défice de 1,9%.
Não será demasiado otimista? Na altura, João Leão disse que não. Sobre as previsões do PIB, defendeu que “houve uma forte recuperação durante o ano passado“, o que por si só “dá um forte contributo para a dinâmica de crescimento deste ano”. E defendeu o valor da inflação como o “efeito base relacionado com a inflação já muito elevada no final de 2021” e o efeito esperado das medidas para mitigar o aumento dos preços.
Mas a intensidade do choque na oferta levou a uma reavaliação do cenário macroeconómico. Duas semanas depois de conhecido o programa de estabilidade, já com Medina nas Finanças, as previsões do Governo mudaram e a mais significativa foi ao nível da inflação. O índice harmonizado de preços no consumidor (IHPC) — o indicador que costuma ser usado para comparações internacionais — já antes revisto de 0,9% em outubro para 3,3% em março, voltou a sê-lo para 4% em abril.
A nova projeção do IHPC está praticamente em linha com as projeções das instituições de referência: o Banco de Portugal (4%) e o Conselho das Finanças Públicas (3,9%). Já o índice de preços no consumidor (IPC) passou de 0,9% em outubro para 2,9% em março e, agora, 3,7%.
O cenário macroeconómico foi também revisto no crescimento do PIB, ainda que ligeiramente. No espaço de duas semanas, entre o programa de estabilidade e o novo Orçamento, a estimativa caiu uma décima, de 5% para 4,9%. Medina disse estar confiante com este novo número, nomeadamente devido ao crescimento de 2021 ter sido superior ao esperado (4,9%) e a outros sinais positivos na economia no primeiro trimestre, como com os aumentos de contribuições, pagamentos multibanco, receita de IVA e redução da taxa de desemprego. “Temos confiança nesse valor. Pode ser atingido”, acredita Medina.
Um Governo de malas feitas para o Campo Pequeno
A mudança já era falada desde maio do ano passado, quando Luís Marques Mendes avançou, no seu comentário semanal na SIC, que o Governo estava a negociar a transferência de ministérios para a sede da Caixa Geral de Depósitos, no Campo Pequeno, em Lisboa. A ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, confirmou, em entrevista ao Novo, que estavam em curso “conversas preliminares” nesse sentido. Mas no Orçamento apresentado em outubro por João Leão, nem uma menção à empreitada.
A versão de Fernando Medina oferece um primeiro vislumbre daquele que será um dos temas desta legislatura. “A concentração num único espaço físico (no edifício-sede da Caixa Geral de Depósitos) dos gabinetes governamentais e dos serviços e organismos da Administração Pública contribuirá para desenvolver novos modelos de trabalho, potenciar sinergias, estimular a criação de redes de comunicação mais próximas e sedimentar o trabalho colaborativo, permitindo reduzir tempos de resposta e reforçar a capacidade de atuação e decisão, potenciar ganhos de eficiência na gestão dos imóveis utilizados pelo Estado, bem como implementar um modelo de gestão dos serviços da Administração Pública, assente na otimização de processos comuns a vários organismos através da sua execução partilhada, em linha com a reforma funcional e orgânica da Administração Pública prevista no PRR”, lê-se na única frase que o OE dedica ao tema.
Questionado sobre a mudança na conferência de imprensa de apresentação do OE, Medina não adiantou mais detalhes. “A transferência dos ministérios para o edifício da CGD é um processo que se está a iniciar agora, já com a realização de uma parte de ações, e depois com a transferência dos primeiros ministérios, os mais ligados à execução do PRR”, adiantou. Serão eles, segundo o Público, os ministérios da Presidência, Economia, Infra-estruturas, Ambiente, Coesão e Agricultura.
Significa que vão ficar livres imóveis em zonas nobres da capital como a Estrela, Chiado ou Praça do Comércio. O destino que lhes será dado ainda é uma incógnita. “Ainda não está fechado o destino de cada um dos imóveis que ficará vago. É um processo que iremos fazendo. Os grandes ganhos nesta matéria, mais que os ganhos financeiros estritamente com o património, terão a ver com os ganhos na gestão de termos as equipas concentradas, de reduzirmos muitas deslocações, de termos mais facilidade no trabalho conjunto das equipas”, ressalvou o ministro das Finanças.
O impacto da mudança nos cofres do Estado só deverá começar a ser desvendado no Orçamento de 2023. Esperam-se, no entanto, poupanças significativas. Atualmente, segundo o Expresso, a Caixa paga de renda cerca de um milhão de euros ao Fundo de Pensões da CGD, proprietário do edifício. “A situação patrimonial é algo que resolveremos sem particular dificuldade. O edifício é do fundo de pensões da CGD, que é uma instituição 100% detida pelo Estado, pelo que teremos abertura para procurar diferentes modelos para que se possa realizar esta operação”, destacou Medina.
Taxa para operadores de TV não duplica
Estava prevista no Orçamento de outubro mas, para alívio dos operadores de televisão paga (e dos seus clientes), a taxa anual de dois euros que pagam por cada subscrição não vai ser duplicada.
“Os operadores de serviços de televisão por subscrição encontram-se sujeitos ao pagamento de uma taxa semestral de dois euros por cada subscrição de acesso a serviços de televisão, a qual constitui um encargo dos operadores”, lia-se no documento apresentado por João Leão. O Governo pretendia que metade da receita da taxa passasse a financiar a RTP, que assim receberia anualmente mais 8,6 milhões de euros, que se somariam à contribuição audiovisual.
No entanto, no Orçamento apresentado esta quarta-feira por Fernando Medina, a proposta desapareceu, o que significa que os operadores vão continuar a pagar uma taxa anual de dois euros por cada subscrição, ao invés de uma taxa semestral de dois euros, ou anual de quatro euros, como chegou a estar previsto.
A medida tinha sido fortemente contestada pelo setor, que chegou a classificá-la como “ilegal”. Na altura, a Associação dos Operadores de Telecomunicações Eletrónicas (APRITEL) considerou a proposta como “totalmente despropositada e inaceitável”, e deu a entender que poderia resultar em aumentos de preços para os consumidores. A medida “fere qualquer previsibilidade regulatória/jurídica, essencial à manutenção de planos de investimento em Portugal, e condiciona inexoravelmente a evolução de preços do setor”, referiu então a associação.
A contestação terá surtido efeito, já que a medida não vai, afinal, avançar. A RTP vai continuar a ser financiada pela contribuição audiovisual, que em 2022 deverá totalizar 191,7 milhões de euros, uma subida face aos 183,7 milhões de 2021.
50 milhões para apoiar refugiados ucranianos
A guerra na Ucrânia motivou também alterações a nível dos apoios sociais aos refugiados. Na proposta de Orçamento do Estado para 2022, o Governo inscreveu uma verba de 50 milhões de euros para os refugiados vindos da Ucrânia, nomeadamente para os custos com alojamento.
O Executivo explica, no documento, que vai reforçar “a resposta aos cidadãos ucranianos e seus familiares de outras nacionalidades que pretendem, por razões de conflito armado e humanitárias, residir em Portugal”. As autarquias têm respondido a este desafio, averiguando as condições locais para acolhimento de refugiados e articulando-se com entidades locais, privadas e públicas, e apelado ao apoio da sociedade civil”, indica ainda, prometendo mobilizar fundos europeus para apoio “em particular com custos de alojamento”.
É ainda intenção garantir a integração de “deslocados beneficiários de proteção temporária” e assegurar a continuidade dos estudos de ensino superior a quem o frequentava quando a guerra teve início, “através de vias de ingresso apropriadas e a atribuição dos apoios sociais adequados”.
Portugal tem atualmente em vigor vários apoios para os refugiados ucranianos, nalguns casos disponibilizados em parceiros com câmaras municipais. Há protocolos em municípios para alojamento temporário, que vão buscar verbas ao Porta de Entrada, um programa destinado a imprevisibilidades, como a guerra na Ucrânia.
Segundo a Segurança Social estão também a ser atribuídos apoios como o rendimento social de inserção, abono de família, subsídio social de parentalidade e prestação social para a inclusão.