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[Este artigo foi publicado inicialmente a 12 de fevereiro — é essencial lê-lo para entender a decisão da União Europeia de banir o canal de televisão RT e a agência noticiosa Sputnik]
Quando Vladimir Putin assumiu o cargo de Presidente da Federação Russa pela primeira vez, em 2000, levou um novo objeto para a sua secretária no Kremlin. Foi isso mesmo que o político russo — que se viria a tornar um crítico de Putin e que acabaria assassinado — Boris Nemtsov viu, na primeira vez que foi ao gabinete do Presidente recém-nomeado: “Estávamos a conversar e no meio da conversa Putin perguntou-me se me importava que ele visse as notícias das 3h da tarde. Foi estranho. Olhei em volta para o gabinete que me era familiar. Nada parecia ter mudado, a não ser um pequeno detalhe. O único objeto que [Boris] Yeltsin mantinha na sua secretária vazia era a sua caneta — a caneta que deu a Putin quando assinou a sua demissão. A secretária de Putin também estava vazia, mas a caneta já não estava lá. Em vez disso, em cima da mesa estava um comando de televisão.”
A história foi contada pelo próprio Nemtsov ao jornalista Arkady Ostrovsky, que a reproduziu no livro The Invention of Russia (sem edição em português). Para o autor, o caso ilustra bem a obsessão de Putin com a televisão, visível desde cedo na sua carreira como político. Ostrovsky garante que o Presidente russo todos os dias vê televisão ao final do dia, para ver como foi a cobertura da sua presidência. A obsessão com o controlo da mensagem mediática é um dos legados que Putin parece ter aprendido com a sua experiência durante o regime soviético, onde o jornal oficial do Partido tinha nada mais nada menos do que o nome “Verdade” (Pravda, em russo). O poder da televisão num país como a Rússia hoje em dia é imenso, mas estamos longe da censura rígida e propaganda formal dos tempos da União Soviética. Os tempos são outros.
O Canal Um (Pervyi Kanal) é o mais visto, chegando a reunir as preferências de 80% dos telespectadores na Rússia (números de 2014). Atualmente, a sua audiência está em queda — em 2019 só foi visto por 47% dos telespectadores, segundo dados do Centro Levada citados na tese de doutoramento de Irina Grigor. Continua, porém, a ser a fonte de informação que chega a mais gente no país. “O Canal Um chega a todo o lado”, resumiu a investigadora russa, que trabalha na Universidade de Helsínquia. “Mesmo para quem não veja televisão, o canal é citado nos jornais. Para quem não lê jornais, ouve os amigos e conhecidos a falar sobre as notícias.”
A sua cobertura noticiosa não é, no entanto, exatamente marcada pelos valores de rigor e isenção. A oposição política raramente tem espaço no Canal Um (e nos restantes canais, com exceção do independente TV Dozhd). O Presidente é habitualmente tratado com um tom positivo. E a política internacional é apresentada numa linha única, sempre próxima dos comunicados emitidos pelo Kremlin e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov. Tudo embrulhado num estilo próprio. Para muitos no Ocidente, como o ministro dos Negócios Estrangeiros da Letónia Edgars Rinkēvičs, a televisão russa faz mais “guerra de informação e propaganda” do que jornalismo.
E os resultados são visíveis quando se trata de moldar a opinião pública. “Muita gente nos Estados Unidos quer desvalorizar a televisão russa, dizendo que é controlada diretamente pelo Kremlin e, por isso, é propaganda óbvia”, começa por dizer ao Observador Cynthia Hooper, professora de Estudos Russos no Massachusetts. “Mas o que os dados nos revelam é que ela é muito eficaz. Até mesmo quando alguém tem noção de que está a ser manipulado, pode continuar a ser manipulado.”
Nos media ocidentais, os telejornais dizem-nos que há tropas norte-americanas a caminho do leste da Europa, conversações diplomáticas frenéticas envolvendo Putin, Joe Biden, Emmanuel Macron e Olaf Scholz, e avisos de “sério risco” de uma invasão russa à Ucrânia e de uma Europa “em perigo”. E, na televisão russa, o que se diz? Ou, talvez mais importante ainda: como se diz?
A história do menino crucificado. A cobertura “de loucos” da guerra na Ucrânia em 2014
Alexey Kovalyov é jornalista e editor de Investigação num dos poucos sites russos independentes que ainda resistem, o Meduza, que foi entretanto declarado um “agente estrangeiro” pelo Kremlin, à semelhança do que aconteceu com quase todos os órgãos de comunicação independentes no país. Nos últimos anos, Alexey tem-se dedicado a analisar a cobertura jornalística das televisões russas, tendo acompanhado de perto a forma como foi reportada a tomada da Crimeia e o início da guerra na Ucrânia, em 2014. “Foi de loucos. Nos primeiros anos desde a invasão havia uma histeria intensa [nos media russos]”, resume ao Observador a partir de Moscovo.
Como exemplo, aponta a peça televisiva que ficou conhecida como “a história do menino crucificado”. Em julho de 2014, o exército ucraniano reconquistou a cidade de Sloviansk aos rebeldes separatistas (apoiados pela Rússia). Na altura, o Canal Um emitiu uma história sobre as retaliações que teriam sido exercidas pelos soldados sobre a população. Uma mulher entrevistada dizia na peça que o exército ucraniano tinha crucificado uma criança de três anos e forçado a mãe a assistir.
RUSSIA'S CRUCIFIED BOY HOAX: SIXTH ANNIVERSARY
Today marks 6 years since Kremlin TV broadcast a highly detailed and entirely fictitious account of a young boy being crucified by Ukrainian soldiers. This imaginary crucified boy is now known as the patron saint of Kremlin fakes. pic.twitter.com/JDUK6hxkfU
— Business Ukraine mag (@Biz_Ukraine_Mag) July 12, 2020
“Não havia nada que corroborasse aquela história, a não ser a entrevista daquela senhora”, conta Alexey Kovalyov. “E eles mesmo assim avançaram com ela. E continuaram a defendê-la, mesmo quando confrontados depois com o facto de não ser possível provar nada daquilo. Nunca se retrataram. Oito anos depois, esta história ainda é um meme da internet. Não há melhor exemplo daquilo que acontece nos media russos.”
Joshua Yaffa, correspondente da New Yorker em Moscovo, questionou o CEO do Canal Um, Konstantin Ernst, sobre esta história para o seu livro Between Two Fires: Truth, Ambition, and Compromise in Putin’s Russia (sem edição em português). “Ele insistiu que o pivô do Canal Um disse ao público que a informação não tinha sido verificada e que o canal não podia garantir a sua autenticidade. Isso não era verdade; à medida que a peça continuou a ser reemitida, acrescentou-se uma voz-off que dizia que ‘o coração recusa acreditar’ numa história assim, uma frase que claramente servia para reforçar o efeito dramático e não reduzi-lo. Ernst acabou por sugerir que a mulher ‘não estaria psicologicamente bem’ e que, como Sloviansk tinha passado a ser controlada pelos ucranianos, os jornalistas do Canal Um não conseguiam confirmar a história”. Yaffa acrescenta que Ernst estava “claramente desconfortável” a falar deste episódio, mas que não conseguia deixar de defender a decisão de emitir a peça. “São estas as regras de ser um chefe da televisão russa”, comenta o jornalista.
“Em 2014, todo o discurso era de que a situação na Ucrânia era prejudicial para a Rússia e que era necessário uma reação imediata”, explica a professora Cynthia Hooper. “Os media russos carregaram no discurso: falavam numa perseguição étnica aos ucranianos de origem russa e faziam referências à II Guerra Mundial, comparando os ucranianos a nazis e fascistas, que teriam um ódio inexplicável aos russos.”
Os horários de emissão foram alterados, com programas de comentário a estenderem-se para o dobro do tempo habitual. Imagens de atrocidades de guerra, crianças a chorar, homens escondidos em trincheiras passavam em loop. Arkady Ostrovsky fala numa guerra tornada numa série de televisão, “com episódios de uma hora preenchidos com sangue, violência e suspense”. “Os programas noticiosos usavam ferramentas cinematográficas e efeitos especiais: clips, flashbacks dramáticos, montagens, música”, pode ler-se em The Invention of Russia. “Pela primeira vez na História da Rússia, os programas de notícias tornaram-se os mais vistos, ultrapassando as novelas e séries. Como sempre, o Canal Um e o [programa] Vremya ficaram à frente dos outros.”
Alexey Kovalyov crê que a estratégia era clara: “Mobilizar a população em relação àquela guerra”. “Não se esqueça de que a Rússia e a Ucrânia são países muito próximos, sentiam-se quase como nações fraternas. No verão de 2013, a opinião dos russos em relação aos ucranianos era muito favorável. Como é que se faz com que um irmão odeie o irmão? É preciso usar algo realmente horrível, como um rapazinho crucificado.” A estratégia, diz o jornalista, resultou: “Em 2015, as sondagens já mostravam que a opinião dos russos em relação aos ucranianos era negativa. A propaganda fez bem o seu trabalho.”
Sete anos depois, já não há comparações de ucranianos a nazis na televisão russa. Os talk shows a comentar a situação na Ucrânia prolongam-se noite dentro, cheios de peritos, por vezes até ucranianos, mas sempre próximos da linha do Kremlin. Não se fala muito das tropas russas colocadas na fronteira. “A maior mensagem que retiro é de que ‘A Rússia é a favor da paz’ e que são os EUA que estão a ‘inflamar a situação e a inventar histórias sobre o risco de uma invasão russa’”, resume Cynthia Hooper, que nas últimas semanas tem ocupado grande parte do seu tempo livre a ver televisão russa — já que é fluente na língua.
No final de janeiro, um artigo da agência Reuters sobre a cobertura televisiva na Rússia apontava para o maior destaque dado aos Jogos Olímpicos de Inverno, em Pequim, e ao aumento dos casos de Covid-19 face a uma potencial invasão militar da Ucrânia. A acusação de “histeria” feita pelo jornalista Kovalyov já não faz sentido. “Tudo agora é mais calmo. Eles compreenderam que quando promovem algo louco não atingem tão facilmente o objetivo”, aponta. Agora está tudo na “subtileza”.
A professora Hooper considera que os media russos se tornaram mais “sofisticados” nos últimos sete anos e diz que a cobertura sobre a Ucrânia é exemplo disso mesmo. “Em vez de se retratar a Ucrânia como uma força diabólica proto-nazi, agora assistimos a um lento caudal de vago desprezo pelo país. Referências à ‘fraqueza’ do Presidente Volodymir Zelensky, aos ‘níveis de pobreza’ no país, à ideia de que a Ucrânia é ‘um peão’ nas mãos dos EUA”, elenca. Zelensky é um alvo recorrente. Quando é mencionado, é comum aparecerem imagens de um antigo número de stand up dele, quando era comediante, em que simula estar a tocar piano com o pénis. “Não há outro objetivo senão o de o denegrir como líder”, afirma.
De inimigo poderoso e ameaçador, a Ucrânia foi reduzida a uma anedota na televisão russa. “Em 2014, eles eram retratados como um país fascista, mas pelo menos era um país que ainda tinha algum controlo sobre a sua ação. Agora, a Ucrânia já não é o inimigo e é retratado como se nem fosse um país soberano. O verdadeiro combate é contra a NATO e os Estados Unidos”, resume Alexey Kovalyov.
Tropas no telejornal? Só se forem as da Ucrânia — ou da NATO
No passado dia 3 de fevereiro, os principais órgãos de comunicação social norte-americana reproduziam declarações de um funcionário da Casa Branca à Associated Press que dizia haver suspeitas entre o governo norte-americano de que a Rússia poderia usar um vídeo falso para justificar uma invasão à Ucrânia — ou seja, uma encenação para justificar um ato de guerra. A fonte falava num vídeo com “cenas gráficas de uma explosão falsa, com cadáveres, atores a representarem pessoas de luto e imagens de locais e equipamento militar destruído”.
Na edição das 21h do Vremya (que, em russo, significa “Tempo”) desse dia, nem uma palavra sobre essa acusação à Rússia. O telejornal abriu com uma reportagem com a equipa de patinagem artística russa que vai competir nos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim. Seguiu-se uma longa peça sobre um encontro de Vladimir Putin com representantes de empresas do país, a cobertura sobre a situação da Covid-19 no país e o resumo da reunião entre Putin e o Presidente da Argentina, Alberto Fernández.
https://www.youtube.com/watch?v=PIQUy2139YU
Só aos 24 minutos se ouviu, pela primeira vez, a palavra “Ucrânia”. A peça arranca com a visita do Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, a Kiev. Seguem-se declarações de um dos representantes das “Repúblicas independentes” de Lugansk e Donetsk, no leste da Ucrânia. De seguida, entra em cena o secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken. Mas as declarações não são do próprio dia: são de afirmações que tinha feito há quase um mês, quando disse que a ideia de que a Rússia se estaria apenas a defender ao colocar tropas na fronteira “é como uma raposa dizer que teve de atacar o galinheiro porque os habitantes eram uma ameaça”.
A peça incluía ainda excertos de vídeo de galinhas a cacarejar, para ilustrar uma Ucrânia que recebe armamento norte-americano, como é elencado na peça. Seguem-se imagens de tropas, sobretudo ucranianas. Os únicos militares russos que entram neste telejornal são os que protagonizaram os exercícios militares em território bielorrusso, com grande aparato.
A ideia é comum à narrativa habitual: a Rússia diz estar a ser atacada pelos seus inimigos, nomeadamente a NATO (com a sua expansão para os países do leste da Europa) e os Estados Unidos. O Kremlin, garante, está apenas a defender-se. As imagens de tanques, soldados e armamento preenchem largas horas das emissões, mas são normalmente ou de forças ucranianas ou da NATO.
E, além das imagens, o que é dito? Socorremo-nos de quem percebe russo. “É uma linguagem imaginativa, que fala dos pesadelos obscuros que podem vir de Ocidente e com alguma histeria ao falar sobre as fantasias que o Ocidente tem em relação à Rússia”, resume Cynthia Hooper. “O país é sempre retratado como uma nação que quer a paz, mas que não pode ser vítima de bullying e que tem de responder a uma Washington que quer ditar as regras mundiais.”
H´á mais exemplos que ajudam a perceber como a cobertura é montada, neste caso depois de uma reunião entre o líder russo e o Presidente francês: grande foco no encontro de Vladimir Putin com o Presidente francês Emmanuel Macron, sim, mas centrado mais em questões como o facto de ambos os líderes se terem tratado por “tu” — em vez de um mais formal “você” (na ty, em vez de vy) — e menos na Ucrânia. As tropas russas paradas na fronteira nunca foram mencionadas.
A NATO continua a ser apresentada como o braço armado dos americanos — “por isso, os comentadores fazem uma ligação em que acabar com a NATO ou lutar contra a NATO é como se fosse promover a paz”. A Rússia, diz esta professora da College of the Holy Cross, é apresentada como “o adulto na sala”. “A América representa as respostas às paixões da multidão, é como uma criança birrenta, enquanto a Rússia é personificada num líder estável, forte e racional”.
Esta ideia não é sequer nova. Em 2015, Margarita Simonyan, diretora da RT (a ex-Russia Today, canal russo internacional que emite em inglês e em várias outras línguas em diferentes países e na internet), dizia isso mesmo a um jornalista da revista norte-americana Atlantic. Falando dos bombardeamentos da NATO em Belgrado, aquando da Guerra da Bósnia, Simonyan diz ter sido esse o momento de viragem: “Vocês tinham a Rússia na mão. E depois, por algum motivo feio, bombardearam o nosso pequeno irmão. Desde então que vos odiamos, mais ou menos, como país”, disse. “Se falar com qualquer pessoa na Rússia, todos lhe vão dizer que a América nos quer tramar, quer expandir a NATO até às nossas fronteiras, quer que a Ucrânia e a Geórgia entrem na NATO.”
“Questiona mais”. Como a televisão russa e a RT se sofisticaram
É esse o ponto de vista já propagado pela RT há muito e que agora está a estender-se ao discurso interno na Rússia. A RT, fundada inicialmente como instrumento de soft power para propagar uma boa imagem da Rússia no mundo, tornou-se ao longo dos últimos anos uma arma de ataque ao Ocidente. Com uma audiência de mais de 100 milhões de espectadores (na TV e online), presente em 47 países, a RT transformou-se aquando da invasão russa da Geórgia em 2008. Nessa altura, produziu o seu primeiro pedaço de desinformação, ao propagar a ideia de que a Geórgia estaria a cometer um genocídio na Ossétia do Sul, o que foi usado para justificar a invasão russa. No terreno, o retrato era outro.
Desde então, o seu orçamento, financiado inteiramente pelo Kremlin, inchou para os 300 milhões de dólares anuais. O canal começou a contratar para comentadores estrelas ocidentais, como Julian Assange, da WikiLeaks, ou o veterano do jornalismo americano Larry King. O objetivo não era reproduzir um discurso mais à esquerda ou à direita, contratando quer o académico de esquerda Noam Chosmky quer o apresentador de rádio de direita Alex Jones. O propósito era o de apresentar uma visão crítica do Ocidente, apontar as suas falhas, dar voz aos mais aguerridos.
Bons jornalistas e talentos promissores foram contratados em cidades como Londres e Washington para trabalhar na RT, com salários francamente acima da média. “É claro que todos se perguntavam se a RT ia acabar por ser um canal de propaganda”, ilustra Peter Pomarentsev, que trabalhou em tempos como produtor televisivo na Rússia e é hoje investigador na London School of Economics, no seu livro sobre a TV russa Nothing Is True and Everything is Possible (sem edição em português): “Aqueles miúdos de 23 anos sentavam-se no [restaurante] Scandinavia depois do trabalho e falavam sobre isso: ‘Bem, é tudo uma questão de expressar o ponto de vista russo’, diziam, algo incertos.”
Na RT, as peças jornalísticas sérias e rigorosas alternam com segmentos onde são propagadas verdadeiras teorias da conspiração. Como resumiu em tempos ao The Guardian Misha Glenny, autor de vários livros sobre a Rússia, “a coisa mais irritante na RT é que algum do jornalismo é muito bom e genuíno”. “A RT está desenhada para misturar as coisas. A mistura entre o genuíno e o disparate deixa-nos espantados e desorientados e creio que é esse o objetivo”, acrescentou. As afirmações mais bizarras são justificadas com o slogan do canal: “Questiona mais.”
Um dia a ver o canal de propaganda do Kremlin. Como é o mundo na televisão de Putin?
A RT assume cada vez mais o papel de peão na propaganda: na semana passada, foi banida da Alemanha por não se ter candidatado à licença televisiva necessária; o Kremlin prometeu retaliar expulsando os media alemães do país. E os especialistas ouvidos pelo Observador consideram que o tom e estilo dos canais de televisão russos, como o Canal Um, estão cada vez mais próximos daquilo que apelidam de “subtileza” da RT. “Em 2014, estes eram instrumentos muito crus e brutos. Agora, tanto a RT como a televisão russa são muito mais sofisticadas”, resume Cynthia Hooper.
Isso não significa, porém, que haja um controlo absoluto sobre a opinião pública. As sondagens revelam que, por enquanto, a mensagem está a produzir efeito na população: 50% dos russos consideram os EUA e a NATO responsáveis pelo aumento da tensão e só 5% culpam o Kremlin.
Mas o jornalista Alexey Kovalyov crê que, em caso de invasão da Ucrânia, a televisão russa teria agora muito mais dificuldades em conseguir mobilizar a população em torno da sua mensagem, como aconteceu em 2014: “Uma invasão seria muito impopular. Mais sanções, mais isolamento, numa altura em que os preços já estão a disparar… Não conseguimos suportar outra crise económica aqui”. Para o jornalista, Putin está a fazer bluff e a deixar o país numa posição complicada. “Não temos o maior exército do mundo nem a maior economia do mundo, mas comportamo-nos como se tivéssemos e isso deixa-nos numa posição complicada. Não podemos avançar para uma invasão que não queríamos, mas também não podemos recuar. É insustentável.”
Cynthia Hooper, por seu turno, não exclui que possam ser as próprias dificuldades internas na Rússia a condicionar a ação do seu Presidente, incluindo no campo dos media: “O Kremlin está a tentar cada vez mais sincronizar a mensagem mediática dentro do país, talvez até a tentar imitar o modelo chinês. Só não sei se o está a fazer porque Putin se sente fraco ou, pelo contrário, porque se sente numa posição de maior força.”
Boris ridicularizado, Alemanha elogiada e Tucker Carlson como “ativo” russo
Toda esta nova estratégia da televisão russa utiliza cada vez mais duas táticas que a RT já experimenta há alguns anos, com resultados sólidos: ridicularizar os líderes ocidentais, por um lado, e explorar as divisões e hipocrisias internas do Ocidente, por outro.
O foco em qualquer discurso que crie fissuras no projeto europeu é evidente no palco dado ao Brexiteer Nigel Farage na RT, por exemplo. Também a replicação de teorias da conspiração que surjam em solo americano sobre a atuação do governo dos EUA é recorrente, como peças que sugerem que o 11 de setembro teria sido levado a cabo pelo próprio governo americano.
A crítica mordaz está sempre presente. “Os líderes europeus são sempre retratados como fracos ou corruptos. Sobre a primeira-dama francesa, dizem que é na verdade um homem. E Boris Johnson é sempre o bobo da corte”, resume Alexey Kovalyov. Nas últimas semanas, vários comentadores da televisão russa têm aproveitado o tumulto interno em Westminster para descredibilizar o primeiro-ministro britânico. “É a figura mais odiada, desrespeitada e ridicularizada no Reino Unido”, “Até as crianças se riem dele”, “Dizem que está sob o controlo da mulher, mas mantém a ambição de um imperador romano”, “Londres devia ser destruída”, foram algumas das frases ditas ao longo das últimas semanas em programas do Canal Um — que o Daily Mail não deixou escapar em branco.
Curiosamente, o jornalista do Meduza aponta que a televisão russa sempre manteve algum nível de respeito para com Angela Merkel — “Havia esta ideia de que, por causa da estratégia alemã de apaziguamento, ela era mais justa para com a Rússia”, resume. Uma tendência que se mantém com o atual governo, na ótica de Cynthia Hooper, devido a decisões como o facto de não exportar armas para a Ucrânia: “A Alemanha é retratada em termos nobres, sempre com alusões à II Guerra Mundial, como se a Alemanha se tivesse arrependido em termos históricos e tentasse agora ser um ‘bom vizinho’”. Cada peça de opinião na imprensa norte-americana onde se critica a postura alemã é “uma prenda para um estratega mediático russo”, diz a professora de Estudos Eslavos.
Outra prenda têm sido os mais recentes programas de Tucker Carlson, conhecido comentador da Fox News que tem sugerido que os EUA não deviam comprometer-se tanto com a Ucrânia. “Porque é que é desleal uma pessoa alinhar-se com a Rússia, mas ao alinhar-se com a Ucrânia já é leal? São ambos países estrangeiros que não querem saber dos Estados Unidos”, disse o famoso apresentador recentemente, numa posição que contrasta com a visão da maioria dos congressistas republicanos neste tema
As suas declarações são exibidas quase diariamente na televisão russa, em particular no programa “Domingo à Noite com Vladimir Solovyov”, exibido no Canal Um. “Ele é engraçado, tem o seu ponto de vista, odeia o Biden, gosta do Trump, e então?”, disse o próprio Solovyov à CNN, quando perguntado sobre a presença constante de excertos do programa de Carlson no seu talk show.
Para Cynthia Hooper, essa é parte da “sofisticação” dos media estatais russos neste momento. “Eles devem ter equipas inteiras que se dedicam só a ver a televisão americana. Recorrem a excertos da Fox News, de programas de comédia, de tudo”, diz, dando como exemplo a exibição recente de um excerto do programa de sátira Daily Show. Nele, o apresentador Trevor Noah dizia como piada que os ucranianos que colaboraram com o governo americano devem estar já a arranjar maneira de fugir para os Estados Unidos para evitar uma evacuação caótica como a de Cabul, em caso de guerra.
A professora continua a explicar o seu raciocínio: “Pessoalmente, não gosto do Tucker Carlson, mas acho que ele tem todo o direito a questionar a nossa posição face à Ucrânia — às vezes, até o faz de uma forma muito engraçada, como quando fez um segmento nas ruas de Washington a perguntar às pessoas se conseguiam identificar o país num mapa e a maioria não conseguia”, afirma. “Só que para mim, é desconcertante ver como a nossa sociedade, onde há liberdade de expressão, é usada por media estrangeiros de forma a parecer que o país é mais disfuncional do que realmente é e amplifica vozes que na verdade estão mais nas franjas. É perigoso, distorce o caminho para a verdade, que aqui consideramos que é atingida precisamente através dessa liberdade de expressão.”
O jornalista Kovalyov confirma que Tucker Carlson é presença frequente na televisão russa e vai mais longe num ponto: “Acho que eles adorariam contratá-lo, mas só têm dinheiro para pagar a uns zés-ninguém que fizeram sucesso nos anos 90.” Quanto ao apresentador norte-americano, não tem dúvidas de que a sua motivação não tem nada a ver com o assunto Ucrânia em si, mas é apenas para “chatear os democratas”. “Mas, de qualquer das formas, torna-se num ativo valioso para a televisão russa”, conclui.
As grelhas de programação vão sendo preenchidas com noticiários onde os alinhamentos destacam as ações mais básicas do Presidente Putin em longos segmentos e as afirmações de Joe Biden e Anthony Blinken são cortadas em excertos mínimos — e se possível até cómicos, como a referência à raposa e ao galinheiro. A NATO ameaça a Rússia, que se limita a defender-se de um Ocidente hipócrita, que escolhe as suas guerras a dedo, onde abundam os escândalos, os problemas e as lutas internas. “A Rússia é sempre a vítima e a televisão nunca se desvia dessa linha”, suspira Kovalyov. “É claro que psicologicamente é mais fácil aceitar que se é vítima de uma maquinação dos outros do que se é alguém que também pode ser um agressor.”
É assim na Rússia, numa televisão controlada pelo Estado — não através da censura direta, mas da auto-censura de quem aprendeu a sobreviver e a ser recompensado neste sistema, que herdou métodos dos tempos soviéticos, mas soube renovar-se. A ironia, para Cynthia Hooper, é que a televisão russa é em casa exatamente o oposto daquilo que a RT fora de portas tenta transmitir. Na Rússia, há “uma frente unida, uma única mensagem repetida de respeito por Putin e de repetição de ideias que servem o establishment político”; na versão internacional, há jornalistas retratados como “pessoas corajosas que ousam dizer a verdade” contra os grandes poderes.
“E, sim, às vezes fazem um excelente jornalismo de investigação, como por exemplo sobre a poluição de grandes empresas norte-americanas. E, sim, têm excelentes programas de comédia, sabem muito bem gozar connosco, americanos. E, sim, expõem brilhantemente as desigualdades do capitalismo ocidental. Mas é importante lembrarmo-nos de uma coisa: toda a crítica e todo o gozo só vão numa direção”, declara. A ideia de que a RT ou o Canal Um possam exibir peças sobre as vidas de luxo dos filhos dos oligarcas, a corrupção nas grandes empresas russas ou a fraude eleitoral em províncias longe de Moscovo não passa de uma miragem. Do outro lado do espelho “está uma visão do mundo onde a democracia liberal está podre e a Rússia é um país estável e seguro”, resume Hooper. E há algum problema com essa visão? “Há. Porque não é inteiramente verdade.”