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[Este é o último de uma série de seis artigos sobre Donald John Trump. Os anteriores podem ser lidos aqui:]

A política como transacção

Trump em campanha é um camaleão: é um cristão devoto quando se dirige a uma audiência cristã, um defensor intransigente da Segunda Emenda quando fala num evento promovido pela National Rifle Association, um apaixonado por cães se se dirige ao público do Westminster Dog Show.

Em Maio passado, numa altura em que o Partido Libertário (Libertarian Party) – que defende o Estado mínimo e o capitalismo sem freio – ainda hesitava sobre que candidato iria apoiar nas eleições presidenciais, havendo quem se inclinasse pelo apoio a Trump e quem argumentasse em prol do independente Robert F. Kennedy Jr., Trump teve a arte de insinuar-se na Convenção Nacional do partido. Ao mesmo tempo que se furtou a um debate com RFK Jr. (que faria todo o sentido, pois permitiria que os delegados e militantes libertários avaliassem as propostas de ambos), logrou que lhe fosse concedido espaço para discursar no evento, o que teve lugar a 25.05.2024. Nesta alocução, além de se ter comprometido a nomear um membro do Partido Libertário para a sua administração, deixou outra promessa:

“Se votarem em mim, no primeiro dia [de mandato] comutarei a sentença de Ross Ulbricht. […] A grande libertação da América começa a 5 de Novembro de 2024. Será o mais importante dia na história do nosso país e os homens e mulheres esquecidos não mais serão esquecidos. […] Nós queremos os votos dos Libertários porque vocês partilham os mesmos valores que nós”.

O nome de Ross Ulbricht (n. 1984) será desconhecido para a maioria dos portugueses, mas goza do estatuto de mártir junto dos libertários americanos. Acontece que Ulbricht foi, em 2015, condenado a prisão perpétua por ter fundado e explorado, entre 2011 e 2013, o Silk Road, um website de comércio na darknet, devotado à venda de drogas (70% do volume de negócios) e de várias substâncias, produtos e documentos de natureza ilícita (nomeadamente cartas de condução falsas) e que apenas aceitava bitcoins como meio de pagamento (sim, é sobretudo para este tipo de negócios que servem as tão incensadas criptomoedas). Em 2013, o FBI deteve Ulbricht e encerrou o Silk Road, que, em dois anos e meio de existência, gerara um volume de negócios de 183 milhões de dólares e comissões de 13 milhões de dólares.

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Historial de resultados do Partido Libertário, em votos e em percentagem

Ulbricht, um ardente defensor dos ideais libertários mais radicais – em particular da filosofia política de Ludwig von Mises – via o Silk Road como um meio para “abolir o uso [pelo Estado] da coerção e da agressão contra a humanidade”. Este “amigo da humanidade” tornou-se uma vedeta nos meios libertários americanos, que têm promovido várias angariações de fundos para financiar campanhas destinadas a pressionar as autoridades a perdoá-lo.

Poderá parecer estranha a disponibilidade de Trump para pedinchar votos ao Partido Libertário, cujos resultados eleitorais ficaram, durante muitos anos, sempre abaixo de 1%, mas a verdade é que os resultados do partido registaram subida acentuada nas duas últimas eleições presidenciais e as idiossincrasias do sistema eleitoral americano fazem com que alguns milhares de votos a mais ou a menos num “swing state” possam decidir quem é o próximo presidente; para mais, a “causa” do perdão a Ulbricht tem tido o condão de conquistar simpatia generalizada entre os entusiastas das criptomoedas (“les grands esprits se rencontrent”). É evidente que o Partido Libertário e o Partido Republicano (mesmo na sua versão MAGA) não “partilham os mesmos valores”, nem Trump está minimamente interessado nos valores do Partido Libertário e é provável que nem saiba exactamente quais são. O autor de The art of the deal tem da vida uma concepção estritamente materialista e transaccional, pelo que terá olhado para os libertários como uma possibilidade de negócio: o Partido Libertário entregar-lhe-ia os votos dos seus simpatizantes e Trump recompensá-lo-ia com um lugar na Administração Trump 2.0 e o perdão para o “mártir” Ulbricht.

Todavia, a Convenção Nacional do Partido Libertário acabou por não correr bem a Trump: foi repetidamente vaiado durante o discurso e o partido acabou por decidir não apoiar nem Trump nem RFK Jr.

No passado, RFK Jr. fez sérias críticas a Trump, considerando a sua política de ambiente “catastrófica” e classificando-o como “um ser humano horrível” e um “sociopata”. Em Maio de 2024 as sondagens atribuíam 10% das intenções de voto a RFK Jr., mas as suas declarações erráticas e os bizarros episódios do seu passado que foram sendo revelados revelaram um quadro de excentricidade e instabilidade mental que terá afastado simpatizantes.

Robert F. Kennedy Jr. numa conferência de imprensa conjunta com César Chavez, da United Farm Workers of America (sindicato que representa os trabalhadores agrícolas dos EUA, maioritariamente constituídos por imigrantes vindos da América Latina), em Fresno, Califórnia, a 26.01.2017. A conferência de imprensa tinha por título “Se os trabalhadores agrícolas forem deportados, quem alimentará a América?” e, na ocasião, RFK Jr. teceu duras críticas à política migratória de Trump

Ainda assim, numa corrida eleitoral renhida, uns milhares de votos num “swing state” podem decidir uma eleição, pelo que Trump considerou que valia a pena tentar obter o apoio de RFK Jr. e, em Julho passado, fez-lhe um telefonema, que foi (sub-repticiamente) gravado e divulgado pelo filho de RFK Jr. No telefonema – um monólogo em que RFK Jr. contribuiu apenas com um “yup” – o camaleão Trump manifestou acordo com RFK Jr. no que toca aos inconvenientes da vacinação, numa manobra de aliciamento descarada, já que antes de ter anunciado a candidatura às eleições presidenciais, RFK Jr. era sobretudo conhecido como ferrenho antivaxxer. Trump começou por declarar “Concordo contigo, há alguma coisa errada em todo o sistema [de vacinação]”; afirmou que as doses de vacinas aplicadas em bebés são adequadas para cavalos e causam “mudanças radicais nos bebés. Vi isso acontecer muitas vezes”; e pôs em causa os profissionais de saúde que promovem a vacinação e garantem que ela é eficaz e segura. Após dar a entender que estava em sintonia com a mundividência de RFK Jr. e apoiava as suas causas, Trump propôs-lhe um “deal” de contornos nebulosos: “Gostaria que fizesses algo. Acho que iria ser bom e grande para ti. Vamos ganhar”.

Apesar da aparente indiferença de RFK Jr., o telefonema foi seguido por vários encontros entre elementos das duas campanhas e, após vários avanços e recuos, no passado dia 23 de Agosto RFK Jr. suspendeu a sua campanha, anunciou o apoio a Trump e surgiu de imediato como convidado especial num comício de Trump.

À decisão de RFK Jr. não terá sido alheio o facto de, uns dias antes e após a divulgação de rumores sobre uma eventual desistência de RFK Jr., Trump ter declarado, numa entrevista à CNN: “É um fulano brilhante. É um fulano muito esperto. […] Não sabia que ele estava a pensar desistir, mas se pensa desistir, certamente que estou disponível para [aceitar o seu apoio]”. E admitiu que seria provável nomear RFK Jr. para um cargo na sua administração: “Gosto de [RFK Jr.] e respeito-o. Provavelmente [nomeá-lo-ia] […] Ele é um fulano muito especial, um fulano muito esperto. Claro que ficaria honrado com o seu apoio”.

Falta mencionar que, entre as posições pouco ortodoxas que RFK Jr. tem assumido ao longo da vida, há uma que certamente terá a concordância de Trump: desde 2004 que RFK Fr. tem vindo a produzir considerações alarmistas sobre a vulnerabilidade do sistema eleitoral dos EUA à fraude.

“Strange bedfellows”: Robert F. Kennedy Jr. e Donald Trump num comício em Glendale, Arizona, 23.08.2024

Interlúdio cósmico: Rumo a Marte

Num comício em Wilmington, North Carolina, a 23.09.2024, Trump prometeu que, com ele como presidente, os EUA fariam forte aposta na conquista do espaço: “Lembrem-se, eu criei a Space Force. Fiz isso. Reconstruí os militares. Fiz imenso. Mas nós temos a Space Force, pela primeira vez em 79 anos desde a Força Aérea. A primeira vez, pensem nisso, Space Force. E, no espaço, estamos à frente da Rússia e da China. Eles estavam a dar-nos um arraso, quando eu tomei posse, mas agora somos nós que vamos à frente. Mas militares, vamos alcançar. O meu plano é este: vou falar com o Elon. Elon apronta esses foguetões porque eu quero chegar a Marte antes do fim do meu mandato”.

A Space Force, criada pela Administração Trump em Dezembro de 2019, é, para já, uma entidade essencialmente burocrática e cujas atribuições e poderes pertencem sobretudo ao domínio da ficção científica, mas Trump refere-se a ela como se fosse uma força formidável e finge que a exploração do espaço é um velho sonho seu.

Joint Base Andrews, Maryland, 20.12.2019: Após assinar o documento que cria oficialmente a Space Force, Trump cumprimenta o general Jay Raymond, nomeado como primeiro comandante daquela unidade

Muito provavelmente, com esta promessa de fazer astronautas americanos caminhar em Marte até 2028, Trump está, com a sua visão transaccional da política e da vida, a retribuir o apoio que lhe tem sido dado por Elon Musk, hiperbilionário, dono da Tesla, SpaceX, X/Twitter, Neuralink, Starlink, The Boring Company e um longo etc., e rival do “space cowboy” Jeff Bezos na corrida ao espaço. Os muito difundidos e comentados projectos marcianos de Musk não passam de uma mescla de fantasias adolescentes, alimentadas por um excesso de exposição a ficção científica, e de uma aterradora inconsciência sobre as dificuldades que a vida enfrenta fora da Terra (ver Um safari em Marte), mas encaixam bem na visão espectacular e hiperbólica da política (e dos negócios) cultivada por Trump. Encaixam também na visão predadora e irresponsável das megaempresas que vivem do hiperconsumismo e do consumo perdulário de recursos naturais: se a colonização do espaço é viável, a humanidade não precisa de preocupar-se em preservar a Terra.

No céu sobre as instalações da SpaceX em Hawthorne, Califórnia, vê-se o rasto de um foguetão Falcon 9 da SpaceX, lançado da Vandenberg Space Force Base, a 22.12.2017

Quatro dias depois de ter formulado a sua ambição de pôr um americano em Marte, Trump anunciou, num comício em Walker, Michigan, a intenção de dar um lugar na sua Administração a Elon Musk: “Vou ter Elon, ele é bom nisto, vai ser o nosso ‘cortador de despesas. […] Tu és o campeão dos ‘cortadores’. Quer dizer, olho para o que fazes: entras e dizes, ‘Querem sair?’. Eles entram em greve – não vou dizer o nome da empresa – mas entram em greve. E tu dizes, ‘Muito bem, estão todos despedidos’” (uma ideia que claramente delicia Trump, cuja frase emblemática no tempo de The Apprentice era “You’re fired!”).

[“You’re fired!”:]

Trump estará a pensar criar um Department of Government Efficiency (DOGE) e confiá-lo a Musk, que o dirigirá a “custo zero”. Não é difícil imaginar quem pagará os custos e quem colherá os benefícios desta contratação a “custo zero”.

A aliança Trump-Musk é um “casamento feito no céu”: ambos provêm de famílias abastadas; são movidos por ambições megalómanas; têm nítidas inclinações autocráticas; são destituídos de escrúpulos e de empatia; são casos terminais de narcisismo patológico; têm simpatia por ideologias ultraliberais (Musk diz ter votado em Clinton em 2016 e em Biden em 2020 e, ainda que tenha inflectido nitidamente para a direita, continua a descrever-se como “um Democrata moderado”); opõem-se à sindicalização dos trabalhadores, ao direito à greve e a outros direitos laborais (Trump até admitiu, num comício, quanto lhe repugnava pagar horas extraordinárias aos seus empregados); as suas intervenções no espaço público são invariavelmente arrogantes, acintosas e instigadoras de conflitos; têm gosto em difundir teorias conspiracionistas de extrema-direita; e fazem poucos esforços para disfarçar a sua misoginia.

Desde Agosto passado que Musk tem feito contribuições substanciais para a campanha de Trump (mas não no montante de 45 milhões de dólares por mês que chegou a ser noticiado) e na entrevista que fez a Trump a 12.08.2024 e foi transmitida em directo no X/Twitter, Musk foi sempre submisso e aquiescente, sublinhando cada frase de Trump com um “yeah!” ou uma casquinada cúmplice. Na “entrevista”, que consistiu basicamente em mais um longo e errático monólogo de Trump, houve também lugar a copiosos elogios mútuos. Deve também lembrar-se que, em Novembro de 2022, logo após ter adquirido o Twitter, Musk readmitiu Trump na rede social, de onde fora expulso após o ataque ao Capitólio em Janeiro de 2021.

O entendimento perfeito entre este par de sociopatas poderia ser ensombrado pela sua visão divergente sobre veículos eléctricos: Trump tem exprimido insistentemente a sua oposição à mobilidade eléctrica (e aos aerogeradores) e o mais lucrativo negócio do império Musk é a Tesla. Porém, poucas semanas depois de Musk ter anunciado o seu apoio a Trump, este mudou o discurso e nem sequer se deu ao trabalho de disfarçar que o fazia por razões estritamente interesseiras: “Sou a favor dos carros eléctricos, tenho de ser, já que Elon me apoia fortemente. Por isso não tenho escolha” (comício em Atlanta, Georgia, 04.08.2024). Uma das coisas fascinantes nos narcisistas patológicos é que, por serem destituídos de um referencial moral e não terem a mais pequena consciência das deformações do seu carácter, por vezes protagonizam momentos de extraordinária candura.

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Cabo Canaveral, Florida, 30.05.2020: Donald Trump e Elon Musk celebram o lançamento do foguetão Falcon 9 da SpaceX

Na aparência, Musk e Trump têm também visões divergentes sobre as alterações climáticas: Musk afirma que estas são a maior ameaça à humanidade a seguir à inteligência artificial e Trump considera que não passam de um “disparate”, de uma “treta”, ou de uma impostura “criada pelos chineses de forma a prejudicar a competitividade da indústria americana” (ver capítulo “O ambientalista” em Donald Trump pelas suas próprias palavras). Em consonância com esta crença, em 2017, Trump retirou os EUA do Acordo de Paris, e já prometeu que se for reeleito presidente, irá intensificar a extracção de combustíveis fósseis nos EUA para níveis nunca vistos.

Mas a verdade é que a preocupação de Musk em relação às alterações climáticas e à sustentabilidade do planeta ou é hipócrita ou resulta de uma grave dissonância cognitiva, uma vez que boa parte dos produtos e serviços idealizados por Musk e produzidos e comercializados pelo seu império empresarial representam o apogeu do futurismo pueril e irresponsável, do consumismo exuberante e da dissipação de recursos naturais (ver capítulo “Isto parece-lhe um deserto?” em Temperaturas recorde, fenómenos extremos, seca global: Seremos capazes de mudar o nosso comportamento?, o capítulo “Tesla” em Tesla, Rivian, Lucid: Serão estas marcas o futuro da mobilidade eléctrica?, e Promessas, ilusões e falácias da mobilidade eléctrica). A concretizarem-se plenamente, os desígnios de Musk teriam efeitos tão danosos sobre o ambiente e consumiriam tantos recursos que é tentador ver o seu insensato e inexequível projecto de “terraformar” Marte (recorrendo a armas nucleares!) como a maneira de ter um planeta B para onde fugir, com os seus cortesãos e fâmulos, depois de o seu império empresarial ter tornado a Terra inabitável (ver capítulo “A ilusão da omnipotência” em “A Natureza nem sempre é amiga”: Vírus, livros e metáforas).

Em síntese, também na questão ambiental pouco ou nada separa, na essência, Trump e Musk. Não tivesse Musk uma agenda tão sobrecarregada e teria sido a escolha ideal para vice-presidente de Trump.

Uma “visão artística” do processo de “terraformação” de Marte

Onde se situa Trump no espectro político?

Trump é recorrentemente apodado de “fascista”, mas ele recorre a esta mesma palavra para atacar a Administração Biden e os Democratas, que, em simultâneo, acusa de serem “comunistas” e “marxistas”. Nestas circunstâncias, “fascista” e “comunista” são insultos esvaziados de significado político e visam apenas transmitir a ideia de que o adversário é odioso. Não há dúvida de que Trump tem inclinações autocráticas e já tentou manter-se no poder após perder as eleições recorrendo a artimanhas, pressões e violência, mas “fascismo” não é sinónimo de “autocracia”, pois esta tem múltiplas modalidades e pode basear-se em diferentes ideologias (ver capítulo “Trump é fascista?” em Um mundo cheio de porcos fascistas?). No final de 2023, Trump incrementou a agressividade da sua retórica, empregando o termo “vérmina” para designar os seus adversários políticos e acusando os imigrantes de estarem “a envenenar o sangue do nosso país” (ver capítulos “O anjo vingador” e “O guardião da pureza do sangue americano”, respectivamente, em Donald Trump pelas suas próprias palavras), o que levou a que fosse criticado por usar uma linguagem similar à empregue por Adolf Hitler contra os judeus.

O judeu como verme que ameaça destruir o mundo: ilustração no jornal de propaganda nazi Der Stürmer, Setembro de 1944

Trump respondeu à crítica num comício no Iowa, a 19.12.2023, declarando não ter lido Mein Kampf e reiterando que “é verdade que [os imigrantes] estão a destruir o sangue da nossa nação. É o que estão a fazer”. É irrelevante que Trump tenha lido ou não Mein Kampf; na verdade, conhecendo a conhecida aversão de Trump a textos com mais de uma página, ninguém no seu juízo pensaria que ele teria lido um cartapácio tão insuportavelmente enfadonho como Mein Kampf. O que importa é que a linguagem é similar, ainda que tal não prove que Trump é “o Hitler da América” (como escreveu em tempos J.D. Vance) ou se identifica com o nazismo. A obsessão de encontrar indícios de que Trump é nazi ou fascista assenta numa concepção simplista, preguiçosa e equivocada da ideologia e da história, que presume que o nazismo é o nec plus ultra do Mal, como se, ao longo de milénios, os seres humanos não se tivessem torturado e exterminado mutuamente em nome das mais variadas ideologias e credos.

Trump não é nazista nem fascista, tal como “não é Republicano nem é Democrata, nem é independente. Ele é Donald Trump”, como afirma o seu ex-advogado Michael Cohen (ver capítulo “Ideologia e carácter” em Donald Trump: Anatomia de um génio muito estável). Trump não possui uma ideologia estruturada e congruente, possui interesses, conveniências, opiniões (pouco informadas), obsessões, embirrações, rancores e ódios, que, uma vez que é tremendamente autocentrado, julga serem as balizas, não só do seu mundo interior, como de todo o universo. O “trumpismo” é simplesmente a forma que essa conjugação de interesses, conveniências, opiniões, obsessões, embirrações, rancores e ódios assume num dado momento. Acontece que, na conjuntura política americana pós-2008, Trump (que, em tempos, esteve registado como eleitor Democrata) percebeu que poderia arrebanhar eleitores no sector mais à direita no espectro político, portanto, foi aí que foi recolher temas e causas para o seu discurso.

Se Trump e o Partido Republicano estão irmanados desde 2016, não é porque Trump tenha perfilhado a ideologia Republicana. Pelo contrário: Trump tomou conta do partido e reajustou a sua configuração ideológica, puxando-o para a direita, expulsando, silenciando ou submetendo os “velhos Republicanos” e concedendo praticamente todo o protagonismo e favor a figuras da ala mais radical da alt-right – a sua “protegida” mais recente é Laura Loomer, uma “activista da Internet” com ideias tão radicais e estapafúrdias que foram rotuladas de “pavorosas e extremamente racistas” por Marjorie Taylor Greene, que é conhecida por fazer declarações pavorosas e racistas (e que, antes, apoiara Loomer na sua candidatura à Câmara dos Representantes, pela Florida).

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Laura Loomer expressa apoio a Trump no exterior do tribunal em Miami, Florida (Junho de 2023), onde o ex-presidente estava a ser julgado no caso de desvio de documentos top secret

Entre o catálogo de argumentos da extrema-direita populista que Trump utiliza mais frequentemente está a denúncia das corruptas elites políticas e empresariais, que concentram todo o poder e riqueza e vivem como nababos à custa dos sacrifícios do povo trabalhador e honesto. Este discurso é paradoxal na boca de um milionário nascido numa família milionária, que sempre viveu no meio do luxo e do privilégio, que faz questão de mostrar que vive como um nababo, cujas amizades fazem também parte deste meio privilegiado e cujos (duvidosos) negócios beneficiaram de uma extensa rede de contactos, influências e favores nos meios da elite financeira, empresarial e política. O facto de os seus seguidores não se darem conta de que ele é um dos máximos representantes da elite que vitupera, diz menos dos dotes de Trump como ilusionista do que do fraco discernimento de boa parte da turba MAGA.

A negociata com RFK Jr., tal como a tentativa de aliciar o Partido Libertário, não têm, portanto, nada de ideológico: foram uma mera barganha para obter uns votos adicionais. Se, por absurdo, o partido Socialist Alternative tivesse peso eleitoral relevante (está longe de o ter: embora seja o maior partido trotskista dos EUA, não chega a um milhar de militantes), Trump também seria capaz de descobrir que “partilhavam os mesmos valores” e também estaria disposto a mercadejar a promessa de um lugar na sua administração em troca dos votos trotskistas.

Como escreve de Cliff Sims, em Team of vipers: My 500 extraordinary days in Trump White House (2019), Trump acredita “que tudo na vida é uma negociação e que toda a negociação é um jogo de soma zero. Não existem situações de ‘win-win’; alguém irá ganhar e alguém irá perder”.

Trump e a TV: estrela e fazedor de estrelas

No mesmo livro, Cliff Sims deixava outra pista crucial para compreender a psicologia e personalidade de Donald Trump: “Ele consumia TV como o falecido Roger Ebert deve ter visto cinema. […] [No que respeita] à programação dos canais televisivos noticiosos, Trump comentava os cenários, as escolhas de guarda-roupa, a iluminação e praticamente todos os aspectos visuais da emissão. […] Ele tornara-se um mestre na televisão como meio de comunicação”.

Trump pode ser um orador maçador e caótico, capaz de deixar exasperado um ouvinte com um módico de inteligência ao fim de dois minutos, mas não pode negar-se que possui um bom sentido do espectáculo de massas, sabe como dirigir-se ao seu público-alvo e sabe tirar partido dos recursos da televisão. Ele próprio está consciente dessas suas aptidões e em Julho de 2021, numa entrevista realizada em Mar-a-Lago, discorrendo sobre a visibilidade mediática ganha pelos membros da sua administração, afirmou que, se estas pessoas tivessem ocupado os mesmos cargos nas administrações de Jimmy Carter ou dos Bush, os media não lhes prestariam atenção: “Com Trump, todos se tornam em estrelas. Sou o maior fazedor de estrelas da história”.

Trump está plenamente consciente de que detém o poder absoluto no Partido Republicano e de que a carreira de todos os políticos Republicanos depende da sua bênção (ver capítulos “Como o Partido Republicano se tornou no partido de Trump” e “O MAGA Squad” em Donald Trump pelas palavras dos seus correligionários) e isso deixa-o visivelmente deleitado. Os anos passados a apresentar The Apprentice (2004-2015), tal como os anos em que foi proprietário dos concursos Miss Universo, Miss USA e Miss Teen USA (1996-2015), deram-lhe um formidável traquejo na gestão das ambições individuais dos candidatos a um lugar ao sol e das expectativas do público, conhecimento que transferiu com sucesso dos concursos de “talentos” para a arena política.

Interlúdio recreativo: Concurso de talentos

Uma das demonstrações da aptidão de Trump para a política-espectáculo está na forma como geriu a escolha do seu vice-presidente ao longo de 2024, multiplicando e baralhando pistas e aguilhoando a curiosidade dos mass media e a ansiedade dos candidatos. Um dos momentos de suspense neste processo teve lugar a 05.05.2024, num evento com doadores para a sua campanha presidencial, na sua mansão kitsch de Mar-A-Lago, para o qual Trump também convocou 11 putativos candidatos a vice-presidente. No decurso de um repasto, Trump emitiu juízos sumários e comentários impregnados de frivolidade, sarcasmo e cinismo e calculados para manter oculto o seu jogo, sobre cada um deles, como se fossem concorrentes a The Apprentice ou a Miss Universo:

Doug Burgum (governador, North Dakota): “Não sabia disto: ele financiou as minhas duas campanhas. É um homem muito rico”.

Marco Rubio (senador, Florida): “O seu nome tem sido mencionado muitas vezes para vice-presidente” (ver capítulo “Marco Rubio” em Donald Trump pelas palavras dos seus correligionários).

Elise Stefanik (Câmara dos Representantes, Nova Iorque): “Uma pessoa muito esperta”.

Mike Lee (Senado, Utah): “Adoro o teu corte de cabelo! E também é boa pessoa”.

Wesley Hunt (Câmara dos Representantes, Texas). “Outro amigo meu […] Faz os melhores anúncios […] Uma bela família”.

Byron Donalds (Câmara dos Representantes, Florida): “Alguém que criou algo muito especial politicamente […] Eu gosto de diversidade. ‘Diversité’ como vocês diriam. [Há financiadores] que valem milhões de dólares […] e que querem um naco do Byron”. Nota: a “diversité” está, quiçá, ligada ao facto de Donalds ser um afroamericano oriundo de um meio desfavorecido.

Marsha Blackburn (Senado, Tennessee): “[Na sua campanha de 2018] parecia o coelho da Energizer [um parente do coelho incansável da Duracell]. Ia de um ponto, para outro, para outro”.

Michael Waltz (Câmara dos Representantes, Florida): “Um homem que sabe mais sobre as forças armadas. Quando quero saber algo sobre as forças armadas, falo como ele”.

Tim Scott (Senado, South Carolina): “Como candidato fez um bom trabalho, mas como suplente é incrível”. Esta foi a apreciação mais cruel do lote, mas, quando instado a comentá-la, Scott, cuja absoluta subserviência perante Trump é confrangedora, não deu mostras de se sentir ofendido, respondendo que a sua relegação para suplente era justa: “Quero desesperadamente cumprir a missão que o Senhor me confiou e qualquer posição que me seja atribuída [por Trump] ajudar-me-á a cumpri-la, em nome do povo americano”.

Tim Scott e Donald Trump, Casa Branca, Setembro de 2017

Kristi Noem (governadora, South Dakota): “Alguém que eu adoro. Ela tem estado comigo, uma apoiante minha, e eu tenho sido apoiante dela desde há muito”. Apesar destes encómios, o brilho da estrela de Noem estava, por esta altura, irremediavelmente desmaiado, após a divulgação, poucos dias antes, de excertos da sua autobiografia, No going back: The truth on what’s wrong with politics and how we move America forward, que estava prestes a chegar às livrarias, numa manobra obviamente destinada a promover a sua candidatura a vice-presidente, até porque Noem publicara uma autobiografia, Not my first rodeo: Lessons from the heartland, apenas dois anos antes. Embora as autobiografias de políticos no activo não tenham outro propósito do que dar gás às suas ambições políticas, a inépcia e a obtusidade dos autores leva, por vezes, a que, na senda do intento de Zagalo em “glorificar a memória de Alípio Abranhos”, em O Conde d’Abranhos, o enaltecimento resulte em desdouro. Nos excertos divulgados, Noem contava que, um dia, ao concluir que um dos seus cães, com 14 meses, era imprestável para a caça e mal comportado e que era difícil dissuadi-lo do hábito de matar galinhas, levara-o até uma vala e abatera-o a tiro. Conta Noem que “não foi um trabalho agradável, mas tinha de ser feito. E quando o dei por terminado, percebi que tinha outro trabalho desagradável para fazer”. A vítima seguinte foi o bode com que se deparou na quinta quando regressou da primeira execução – a criatura tinha, segundo Noem, um temperamento maldoso e emanava um fedor “nojento e rançoso”, pelo que também o arrastou até à mesma vala e o abateu a tiro. Noem tornou público este episódio não como forma de expiar qualquer remorso, mas por crer que ele a daria a ver como uma mulher de acção, decidida e que não foge aos problemas. Como acontece frequentemente com os sociopatas, Noem equivocou-se no juízo dos seus semelhantes e a dupla execução, em vez de lhe conferir vantagem na disputa para ser a parceira eleitoral de Trump, suscitou uma onda de repúdio entre eleitores de ambos os partidos. O facto de Noem ter também “aditivado” as suas memórias com episódios forjados para lhe conferir aura de estadista experiente, nomeadamente ao evocar encontros com Kim Jong-un e Emmanuel Macron que nunca tiveram lugar, e de ter reagido à denúncia destas intrujices com rematada sonsice contribuiu ainda mais para o seu descrédito.

Kristi Noem: Uma mulher que não recua perante trabalhos desagradáveis

J.D. Vance (senador, Ohio): “No princípio, ele não era meu apoiante […] Dizia coisas como ‘o fulano é um completo desastre’ […] De qualquer forma, acabei por conhecê-lo um bocadinho […] Como não-político, é um dos grandes senadores” (ver capítulo “J.D. Vance” em Donald Trump pelas palavras dos seus correligionários). Apesar de ter partido de uma posição desfavorável, Vance foi, como é sabido, o vencedor da edição de 2024 de The Apprentice Vice-President.

O dia em que os EUA estiveram a centímetros da Segunda Guerra Civil

O instinto para o espectáculo de Trump tornou-se nele numa segunda natureza e não o abandonou sequer num momento extremo: a tentativa de assassinato de que foi alvo durante um comício em Butler, Pennsylvania, a 13.07.2024.

Trump escapa com um arranhão a uma tentativa de assassinato, 13.07.2024

Quando estava a ser retirado do palco pelos elementos da segurança, Trump ergueu o punho e gritou para a multidão “Fight! Fight! Fight!”, propiciando aos numerosos fotógrafos e operadores de câmara presentes no local imagens perfeitas para primeiras páginas de jornal, aberturas de noticiário e material de propaganda. A campanha de Trump apressou-se a imprimi-las em T-shirts, ténis e canecas e a Trump Fragrances lançou a água de colónia Fight Fight Fight, “para Patriotas que nunca recuam […] Para homens que lutam para vencer e nunca se rendem […] Não é apenas uma colónia, é um símbolo de resiliência. Inspirada pela incansável determinação de Trump, deves usá-la com orgulho e confiança”.

Água de colónia Fight Fight Fight

A tentativa de assassinato de Trump foi quase unanimemente apontada como consequência do clima de polarização política nos EUA, que tem vindo a intensificar-se desde a eleição de Barack Obama (ver capítulo “Na América, tudo corre de feição” em A Rússia e o sonho imperial pt. 5: Inimigos, cúmplices, não-alinhados, sonsos e cínicos). O candidato a vice-presidente de Trump, J.D. Vance, não esperou pela divulgação de qualquer informação sobre a identidade do atirador e as circunstâncias do atentado e, minutos após os acontecimentos, já colocava um post na rede social X: “A premissa central da campanha de Biden é que o presidente Donald Trump é um fascista autoritário que deve ser parado a todo o custo. Esta retórica conduziu directamente à tentativa de assassinato do antigo presidente Donald Trump”. Para começar, esta atitude de Vance revela uma impulsividade, uma irreflexão e uma irresponsabilidade que bastariam para o desqualificar como candidato a um cargo cimeiro no Governo dos EUA; por outro, mostra que Vance terá sérios problemas de memória e que se terá esquecido do tempo em que via Trump como “o Hitler da América” (ver capítulo “J.D. Vance” em Donald Trump pelas palavras dos seus correligionários), uma equiparação também ela susceptível de instigar uma alma mais voluntariosa a entender que a eliminação de Trump seria um serviço prestado à Humanidade.

Marjorie Taylor Greene, uma das figuras mais radicais no Partido Republicano e uma das incondicionais admiradoras de Trump (ver capítulo “MAGA Squad” em Donald Trump pelas palavras dos seus correligionários), também correu para a rede social X pouco depois do atentado, afirmando que “Os Democratas queriam que isto acontecesse. Há anos que querem ver-se livres de Trump e estão dispostos a tudo para o conseguir”. Voltaria ao X no dia seguinte para afirmar que “A esquerda quer uma guerra civil. Há anos que estão a tentar começá-la. Essa gente é doente e maldosa” e “O Partido Democrático é o mal absoluto e ontem tentou matar o presidente Trump”. Pouco depois alargaria a acusação de homicídio aos media “liberais”, que seriam “responsáveis por o presidente Trump quase ter sido assassinado”.

O filho mais velho do ex-presidente, Donald Trump Jr., garantiu que o pai “nunca deixará de lutar para salvar a América, seja o que for que a esquerda radical atire contra ele”. No debate de 10 de Setembro com Kamala Harris, o próprio Trump também atribuiu o atentado contra si ao discurso demonizador dos Democratas: “Provavelmente ia levando com um tiro na cabeça por causa de coisas que disseram sobre mim”. Nas manifestações de desvario e sectarismo do lado Republicano, quem foi mais longe foi Mike Collins, representante da Georgia na Câmara dos Representantes, que exigiu que “o procurador distrital Republicano de Butler County, Pennsylvania, deve imediatamente formular acusação contra Joe R. Biden por incitação ao homicídio”.

“Fight! Fight! Fight!”, por Jon McNaughton

Mas não foi só entre a ala direita do Partido Republicano que se atribuiu a tentativa de assassinato de Trump à crescente polarização da política americana: jornalistas, comentadores e politólogos de todas as inclinações políticas, nos EUA e no resto do mundo também o fizeram. Entre inúmeros exemplos possíveis, tomem-se as palavras de Bernardo Pires de Lima no Público de 15.07.2024: “Para [o autor do atentado] agir desta maneira teve de fazer um processo de radicalização individual”, acrescentando “isto também é terrorismo”. Ou as de Miguel Poiares Maduro, no Expresso de 26.07.2024: “[Trump foi] a vítima. E, não apenas, como pretendem alguns, vítima do discurso político que pratica e fomentou. Foi vítima desse discurso ter encontrado simetria do outro lado. De existir quem o veja como um inimigo e não como um mero adversário político”.

Muitos comentadores sugeriram que, dada a tensão existente entre Democratas e Republicanos, se o atirador tivesse melhor pontaria, poderia ter sido o início da Segunda Guerra Civil Americana. Quanto às redes sociais, essa fértil alfurja onde as sementes da estultícia humana se convertem, em poucas horas, em árvores altaneiras e frondosas, encheram-se de acusações e teorias conspirativas para todos os gostos, umas insinuando ter-se tratado de uma encenação (populares entre a extrema-esquerda chalupa), outras vendo no episódio a mão do FBI ou do Deep State (populares entre a extrema-direita chalupa).

No dia 18 já se sabia o suficiente sobre o atirador, Thomas Matthew Crooks, e as circunstâncias do atentado, para que o Observador alinhasse argumentos que removiam a extrema-esquerda do cenário (ver Fact-Chek: Autor do ataque contra Donald Trump estava ligado à extrema-esquerda dos EUA?). Porém, a “narrativa” do atentado de Butler como reflexo da “polarização da política americana” não foi alterada.

O magnata e o assassino

Entre os comentadores que interpretaram o atentado contra Trump como acto terrorista, houve quem trouxesse à colação Don DeLillo, em Mao II (1991): “Numa sociedade superabundante, cheia de repetição e de consumo, o terror é o único acto com significado”. É o autor certo, pois a escrita de DeLillo vive na sombra do apocalipse iminente, está impregnada por “uma sensação de perigo omnipresente” (DeLillo dixit) e trata obsessivamente de magnicídios (em particular do assassinato de John F. Kennedy), de conspirações retorcidas, de consumismo infrene, da ascensão do terrorismo (e da substituição do artista e do escritor pelo terrorista enquanto foco de interesse das massas), da televisão-catástrofe, da sobrecarga informativa gerada pelos media, da desumanização, entorpecimento e desagregação da sociedade americana e da promessa da sua renovação através da violência.

Don DeLillo (n.1936), um dos escritores que mais tem reflectido sobre terrorismo e violência na América, numa foto de 1988

Porém, a citação de Mao II é um tiro de raspão numa orelha – a citação que acerta no alvo pode ser encontrada no artigo “In the ruins of the future”, publicado na Harper’s Magazine, em Dezembro de 2001, sobre terrorismo e os atentados de 11 de Setembro. Nele, DeLillo contrapõe os terroristas focados, convictos, duros e inflamados pelo fanatismo que planearam e cometeram os atentados de 11 de Setembro ao “rapaz branco, inerme e suspenso, que dispara sobre alguém para tentar não sumir-se dentro de si mesmo”. O termo “suspenso” não faz jus ao original “dangling”, que tem também o significado de pendente, balouçante, oscilante, que está preso precariamente, e com o qual DeLillo pretende dar a ideia de alguém que flutua pela vida, sem rumo definido, sem ligações afectivas sólidas, sem uma qualidade, um talento ou uma vocação capazes de estruturar uma identidade e apontar um destino.

Na verdade, este trecho de “In the ruins of the future” tem uma origem mais antiga e que se ajusta ainda mais precisamente aos trágicos eventos no comício em Butler: “O outsider que constrói uma maquinação em torno do seu desespero. Absorto na contemplação de si mesmo, um rapaz solitário, vivendo uma ficção que não se deu ao trabalho de verter no papel. O que não quer dizer que seja desorganizado, ele organiza tudo. É assim que ele evita sumir-se dentro de si mesmo. A sua cabeça está cheia de segredos perigosos e talvez ele consiga arranjar uma forma de se evadir do seu quarto. Inventa um nome falso, encomenda uma arma pelo correio e começa à procura de alguém famoso sobre quem disparar” – são palavras de DeLillo no documentário The word, the image and the gun (1991), realizado por Kim Evans.

Salvo revelações inesperadas, Thomas Matthew Crooks (2003-2024), residente em Bethel Park, Pennsylvania, não era agente do FBI nem do Deep State, nem agiu a mando de um nem de outro, nem da República Islâmica do Irão (como Trump sugeriu), e também não militava num grupúsculo de extrema-esquerda. Na verdade, até agora não emergiram indícios de que possuísse convicções políticas firmes ou sequer convicções políticas de qualquer tipo (ou, se as tinha, nunca as manifestou).

Thomas Matthew Crooks

O “rasto político” de Crooks é escasso e ambíguo: no dia seguinte a ter atingido a maioridade, registou-se como eleitor Republicano, embora, oito meses antes, tivesse contribuído com 15 dólares para a Progressive Turnout Platform, um grupo de inspiração liberal (no sentido americano do termo) ligado ao Partido Democrata. Não tinha registo criminal nem problemas de saúde mental conhecidos. Nasceu numa família de classe média, era um rapaz calmo e discreto, com aproveitamento escolar acima da média. Mas a escola parece não ter sido uma experiência agradável para Crooks, pois era alvo sistemático de bullying, o que considerando o seu perfil e olhando para sua foto, não é de estranhar. Entre os motivos por que era gozado e importunado pelos colegas estavam os duvidosos hábitos de higiene e o hábito de envergar camuflados. Tinha interesse por armas de fogo – o que é absolutamente corriqueiro nos adolescentes dos EUA – e tentou ingressar na equipa de tiro da escola secundária, mas foi rejeitado por ter má pontaria (Donald Trump confirma-o e agradece). Em 2023, o pai passou para seu nome uma espingarda semi-automática do tipo AR-15, que tinha adquirido dez anos antes. As buscas de Crooks na Internet nas semanas que antecederam o atentado incluíram Donald Trump, Joe Biden e outras figuras cimeiras do Estado americano (o procurador-geral, o director do FBI), Kate Middleton (a princesa de Gales) e a Republican National Convention, que iria realizar-se em Milwaukee dentro de dias. Procurou também informações sobre o assassinato de John F. Kennedy e o atentado de Maio de 2024 contra Robert Fico, primeiro-ministro eslovaco. Na véspera do atentado, Crooks esteve a praticar na carreira de tiro em que estava inscrito. E comprou uma escada (para subir ao edifício de onde disparou contra Trump) e 50 balas. Após o atentado, o FBI encontrou bombas artesanais na mala do seu carro.

Salvo um ou outro detalhe pouco relevante (não precisou de encomendar uma arma pelo correio, pois o pai deu-lhe a sua), Crooks é a cara chapada do outsider, do “soft white dangling boy” descrito por DeLillo.

“Defende a tua posição”, de Jon McNaughton. O “patriota” no quadro ostenta uma espingarda semi-automática do tipo AR-15, que é hoje uma das armas de fogo mais vendidas nos EUA e a favorita dos assassinos em massa; estima-se que 16 milhões de americanos possuam pelo menos uma

Um atalho para a fama

A obsessão doentia da América com o sucesso e a sua aceitação da fanfarronice como “default mode” nas relações sociais gera dois tipos de criaturas de características opostas.

De um lado está o bully triunfante, o multimilionário que faz as capas das revistas e as aberturas dos noticiários, coloca o seu nome no topo dos edifícios que ergue pela cidade, viaja num jacto privado e, rezam as “lendas urbanas”, faz as suas necessidades numa sanita de ouro; que se comporta de forma descortês, exuberante e blasonadora e exsuda auto-satisfação e soberba; que é um engatatão em série, a que poucas mulheres resistem, ou porque esperam pingues recompensas da relação sexual ou porque acham os homens poderosos e ricos genuinamente irresistíveis; e que está tão seguro da sua impunidade e da adulação dos seus seguidores que ousa proclamar que “podia estar no meio da Quinta Avenida e abater alguém a tiro que isso não me faria perder votos”.

A sanita de ouro de Donald Trump pode não passar de um boato, mas há que reconhecer que é um boato plausível, dada a sua manifesta paixão por dourados. Na foto, o apartamento de Donald Trump na Trump Tower, quando de uma visita do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, em Setembro de 2018

No outro extremo está o loser anónimo, o rapaz reservado, tímido e apagado, sem amigos, que é vítima de bullying na escola e que não consegue ir para a cama com rapariga alguma, porque estas o acham um nerd e troçam dele. São estes rapazes que, um dia, aparecem na sua escola armados até aos dentes e disparam a eito até serem abatidos pela polícia ou se suicidarem.

Os EUA orgulham-se de serem o país com maior número de milionários: são 24.5 milhões, representando 39% do total mundial, segundo dados de 2022, enquanto a população dos EUA representa apenas 4% da população global. A posição dos EUA é igualmente dominante quando se consideram os “indivíduos com elevado património líquido” (“ultra-high-net-worth individual” ou UHNWI), informalmente designados como “filthy rich” (obscenamente ricos), que possuem pelo menos 30 milhões de dólares em activos líquidos: os EUA possuem 225.000 (dados de 2023), mais do dobro do segundo classificado no ranking, a China.

Ao mesmo tempo, os EUA têm a duvidosa honra de comandarem destacados as estatísticas de tiroteios em escolas: entre 2009 e 2018 foram 288; o segundo país no ranking, o México, contabilizou oito. Os EUA são também o país do mundo com mais armas de fogo per capita.

Número de armas de fogo “civis” por cada 100 habitantes, por país. Os EUA são o único país do mundo onde o número de armas de fogo “civis” excede o número total de habitantes. Note-se que há países em que a percentagem de posse de armas de fogo entre a população é superior à dos EUA, mas como muitos americanos possuem um arsenal em casa, tal prática confere primazia aos EUA no parâmetro armas de fogo per capita. Estimativas de 2017

Aqui chegados, é importante regressar ao contraste, feito por Don DeLillo, entre os terroristas do 11 de Setembro e os “dangling boys” que, subitamente, fazem um massacre numa escola. O termo “terrorismo” diz respeito a atentados contra figuras políticas proeminentes e assassínios em massa e indiscriminados de alvos civis (“mass murders”) e é frequentemente usado de forma demasiado abrangente; a nomenclatura deveria distinguir entre actos cometidos por indivíduos pertencentes a seitas e grupos organizados e que têm intuitos políticos ou religiosos, e actos que são actos arbitrários de violência perpetrados por indivíduos sem motivações políticas ou religiosas e que, nalguns casos, enfermam de desequilíbrios psicológicos. Só os primeiros deveriam receber a designação de “terrorismo”.

As Brigate Rosse, a Facção do Exército Vermelho (Rote Armee Fraktion), também conhecido como Grupo Baader Meinhoff, a ETA, a OLP, a seita Aum Shinrikyo (responsável pelo ataque com gás Sarin no metro de Tokyo em 1995), a Al-Qaeda e o Estado Islâmico/Daesh (e as suas sucursais e “franchises”) são organizações terroristas que facilmente acorrem ao espírito, mas também há terrorismo cometido por “lobos solitários”. Entre os mais célebres estão Anders Breivik (responsável por vários atentados na Noruega em 2011), Ted Kaczynski (o Unabomber, que matou e feriu várias pessoas através de engenhos explosivos enviados por correio, entre 1978 e 1995) e Timothy McVeigh (responsável pelo atentado de 1995 em Oklahoma City). Ainda que não sejam filiados em partidos, seitas ou organizações, os terroristas solitários possuem uma mundividência política e têm o propósito de, através do terror, produzir mudanças na sociedade que a reorientem para essa mundividência. Os três “lobos solitários” acima mencionados redigiram manifestos, “ensaios”, “textos programáticos” e cartas em que explanavam a sua ideologia, delineavam os seus objectivos e justificavam os seus actos e dois deles foram mesmo extraordinariamente prolixos como “filósofos políticos”: Kaczynski exigiu a publicação nos jornais do seu ensaio-manifesto Industrial society and its future, com uma extensão de 35.000 palavras, e Breivik fez milhares de posts no seu próprio website e em websites neonazis, publicou artigos em jornais e redigiu (e difundiu por e-mail) o seu ensaio-manifesto 2083: A European declaration of independence, que se estende por 1518 páginas.

Convém, pois, separar os terroristas propriamente ditos, que são ideologicamente motivados, dos magnicidas e assassinos em massa sem motivações políticas ou religiosas e cujos actos são ditados pelas idiossincrasias das suas mentes e não têm a ambição de alterar a marcha da História nem de impor um diferente modelo de sociedade. São disto exemplo os muitos assassínios em massa que têm por cenário as escolas e universidades dos EUA (e que também podem ocorrer em concertos, clubes nocturnos, centros comerciais e outros lugares com elevada concentração de vítimas potenciais); e também a tentativa de assassinato do presidente Ronald Reagan, em 1981, por John Hinckley Jr., cuja intenção era, não mudar o rumo da política americana, mas impressionar a actriz Jodie Foster, por quem Hinckley tinha uma obsessão de natureza erotomaníaca.

Meter no mesmo saco estes dois grupos de fenómenos dificulta a sua compreensão e baralha as estatísticas: por exemplo, quando se apura a razão entre o número de vítimas de assassínios em massa e o número total de habitantes do país no período 2009-15, a Noruega é n.º 1 no ranking, a França é n.º 3 e os EUA são n.º 11, mas as posições da Noruega e da França resultam, basicamente, de dois mortíferos ataques terroristas isolados, o de Breivik em 2011 e o do Daesh, em Paris, em 2015. Já os números dos EUA resultam, neste período, quase exclusivamente da ocorrência regular de tiroteios em escolas, perpetrados por adolescentes ou jovens adultos solitários (quase sempre com perfil próximo do traçado por DeLillo). Estes tiroteios são um fenómeno tipicamente americano e, embora o seu impulso primário tenha as raízes sociopsicológicas acima explanadas, não teria a expressão avassaladora que tem (82 episódios com pelo menos um morto ou um ferido só em 2023) sem o culto das armas entre a população e os frouxos controlos na aquisição de armas e munições que campeiam nos EUA, para proveito da National Rifle Association (NRA) e seus associados e com o beneplácito dos legisladores, governantes e líderes Republicanos, generosamente financiados pela NRA.

Percentagens de lares nos EUA que possuem pelo menos uma arma de fogo (estimativas de 2016)

Por todo o mundo desenvolvido multiplicam-se os casos de crianças e jovens que executam (ou pelo menos planeiam) actos de violência, premeditados e espectaculares, quase sempre com as suas próprias escolas como alvo preferencial (o que é um sintoma da tacanhez e autocentramento dos seus autores). A este fenómeno não são alheios 1) a frustração, ansiedade, depressão, isolamento, desconexão e autocentramento que grassam hoje entre as gerações mais novas; 2) a desumanização e falta de empatia induzidas pela substituição das relações presenciais pela “vida online” e pela imersão prolongada no mundo dos videojogos hiperviolentos; e 3) a proliferação (na Internet “regular” e na Dark Web) de websites, chat rooms, vídeos e podcasts que veiculam as atoardas mais desvairadas, as teorias mais extremistas e as formas mais expeditas de semear destruição e caos. Porém, nos países com regras estritas de aquisição, posse e porte de armas de fogo e onde não há espingardas semi-automáticas e respectivas munições à venda nos hipermercados, os “dangling boys” vêem-se frequentemente obrigados a recorrer a facas, bestas, petardos de fabrico caseiro e outros recursos de limitado poder letal.

No gráfico, que exprime as espingardas semi-automáticas do tipo AR-15 como percentagem da produção total de armas de fogo nos EUA, é visível um rápido incremento a partir do termo, em 2004, da interdição por dez anos da venda ao público de armas semi-automáticas, imposta pelo Governo federal durante a Administração Clinton

Em síntese: salvo revelações sensacionais que alterem tudo o que sabemos sobre a tentativa de assassinato de Donald Trump em Butler, Crooks não era um terrorista, nem passou por “um processo de radicalização individual”, nem pretendia impedir a vitória do candidato Republicano nas eleições de Novembro e talvez fosse incapaz de enunciar dois ou três temas em que Republicanos e Democratas divergem, ou nomear os representantes da Pennsylvania no Congresso. É muito provável que nunca saibamos quais eram as suas motivações, mas é provável que, imaginando-se condenado a uma vida anódina, invisível, solitária e lúgubre, tivesse concebido o plano (não muito elaborado) de conquistar a fama que os seus compatriotas tanto prezam através de um “atalho”: matando uma celebridade. Uma qualquer. Acontece que Donald Trump era a única que estava a pouco mais de uma hora de carro da sua casa.

Mortes em assassinatos em massa nos EUA. É instrutivo comparar este gráfico com o gráfico acima, que exprime a AR-15 como percentagem da produção total de armas de fogo nos EUA

Interlúdio: Cristo regressa ao Calvário

A 05.10.2024, Trump voltou a discursar num comício em Butler, Pennsylvania. A Pennsylvania é um dos “swing states” que irá decidir as eleições, mas Butler é um lugarejo insignificante pelos padrões demográficos dos EUA e perde população desde a década de 1920 – o condado tem hoje apenas 13.500 habitantes. Claro que a motivação do retorno de Trump a Butler foi reavivar a aura crística que lhe foi conferida pela tentativa de assassinato: “Neste mesmo local, um assassino de sangue frio tentou silenciar-me a mim e ao maior movimento – MAGA – da história do nosso país […] Mas, pela mão da Providência e pela graça de Deus, o vilão não logrou o seu intento. Ele não travou o nosso movimento. […] Daqui em diante, quem visite este lugar consagrado recordar-se-á do que aconteceu e ficará a par do carácter e da coragem que tantos patriotas americanos demonstraram”. Depois de se autocanonizar, o mártir Trump recordou que, “nos últimos oito anos, os que pretendem impedir-nos de alcançar este futuro têm-me caluniado e processado judicialmente e tentado remover-me dos boletins de voto e, quem sabe, até matar-me. Mas eu nunca deixei de lutar por vós e nunca deixarei”.

Feita esta evocação dramática do passado, chegou a altura de Trump chamar ao palco do comício o homem “que vai ajudar-nos a construir este futuro incrível e que é um fulano verdadeiramente incrível – eu não digo isto muitas vezes – ele é um grande cavalheiro […], ele salvou a liberdade de expressão […], ele criou tantas coisas diferentes”: Elon Musk. O Profeta do Futuro Radioso, TechnoKing da Tesla e AstroBoy da SpaceX entrou em palco saltitando com a graça e leveza de uma Simone Biles e, assim que começou a falar, percebeu-se que deixara cair definitivamente qualquer simulacro de isenção ou racionalidade e aderiu integralmente às atoardas e aleivosias da propaganda trumpista, pontuando o discurso com a sua típica risada maníaca, onde se mescla o narcisismo de quem fica deslumbrado com as coisas inteligentíssimas e divertidíssimas que jorram da sua mente, e o nervosismo e desconforto de quem, aos 53 anos, ainda não aprendeu a interagir com seres humanos.

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Comício de 05.10.2024 em Butler, Pennsylvania: Musk tenta chegar a Marte, mas, infelizmente, a impulsão não é suficiente para lhe permitir escapar à gravidade terrestre; ao fundo, em baixo, ao centro, JD Vance aplaude o esforço

Depois de celebrar o martírio e o espírito indómito de Donald “Jesus” Trump – “A América é a terra dos bravos e não há maior prova do que a coragem sob fogo” – e de reproduzir o gesto destemido de Trump, de punho no ar, e a palavra de ordem “Fight! Fight! Fight”, passou ao apelo à união em torno de Trump: “Esta é a eleição mais importante das nossas vidas. Não é uma eleição qualquer. O outro lado quer tirar-vos a liberdade de expressão, quer tirar-vos o direito a possuir armas [de fogo], quer tirar-vos o direito de voto, efectivamente”. Após ter insinuado que os Democratas estão a tomar medidas que tornam o processo eleitoral cada vez menos transparente e mais vulnerável a fraudes, explicou que a Segunda Emenda à Constituição dos EUA (que garante o direito à posse de armas) existe para proteger a Primeira Emenda (que garante a liberdade de expressão e de culto religioso), o que revela um entendimento perverso do que é a democracia. E fez um vaticínio ominoso: “O presidente Trump tem de ganhar para preservar a Constituição, tem de ganhar para preservar a democracia na América. […] Se não votarem [pausa dramática] esta vai ser a última eleição. É a minha predição”. Usou o resto do tempo para apelar repetida e enfaticamente a que os eleitores pró-Trump se registassem para votar e concluiu com as palavras de ordem “Fight! Fight Fight! Vote! Vote! Vote!”.

[Trump e Musk no comício de 05.10.2024 em Butler, Pennsylvania:]

Musk, que apresentara a sua aquisição do Twitter, iniciada em Abril de 2022, como uma forma de promover a imparcialidade, “sem favorecer qualquer ideologia política”, não tem primado pela imparcialidade nas suas intervenções políticas nas redes sociais, que, deve sublinhar-se, têm forte repercussão na opinião pública, já que o homem mais rico do mundo tem 200 milhões de seguidores no X/Twitter. Por exemplo, a 07.11.2022 Musk escreveu no Twitter que, “dado que a partilha do poder contém os piores excessos de ambos os partidos, recomendo que se vote Republicano para o Congresso, uma vez que a presidência é Democrata”. Antes, a 15.06.2022, já manifestara apoio a Ron DeSantis, o Governador Republicano da Florida, no caso de ele entrar na corrida presidencial, e, nesse mesmo dia, desvalorizou a candidatura de Trump: “Teria 82 anos no fim do mandato, o que é demasiado para se liderar seja o que for, muito menos os EUA”; “Não detesto o homem, mas é tempo de Trump pendurar o chapéu e desaparecer em direcção ao pôr-do-sol”. Trump reagiu a estas considerações durante um comício no Alaska, em Julho, em que classificou Musk como “artista da treta” (“bullshit artist”, no original), e na rede Truth Social, onde escreveu: “Quando Elon Musk veio à Casa Branca pedir-me ajuda para todos os seus projectos fortemente subsidiados, sejam eles carros eléctricos sem autonomia suficiente, carros sem condutor que têm acidentes, ou foguetões para lugar nenhum, subsídios sem os quais ele vão valeria um chavo, e veio dizer-me que era um grande fã de Trump e um Republicano, poderia ter-lhe dito ‘põe-te de joelhos e suplica’ e ele tê-lo-ia feito”. A limitada imaginação de Trump está subjugada à sua natureza de macho-alfa e de bully, pelo que quando alguém lhe faz uma desconsideração (ou o que ele perceba como uma desconsideração), logo evoca uma situação em que o ofensor rasteja a seus pés e suplica pelo seu favor.

Estas arrufos são coisa do passado, como comprovam os elogios trocados em Butler e a postura bajuladora de Musk perante Trump (atente-se à sucessão de servis acenos de cabeça que faz a Trump após terminar a sua intervenção). Vendo bem, estavam fadados a entenderem-se, pois Trump acertou no centro do alvo quando qualificou Musk como “bullshit artist”, ou não fosse ele também um “bullshit artist” – como reza o ditado inglês, “It takes one to know one”.

A tese da polarização e a voragem dos media

Apesar de os factos apurados sobre Thomas Matthew Crooks cedo terem invalidado a radicalização da política americana como explicação para o atentado contra Trump, os Republicanos que se tinham apressado a lançar acusações gravíssimas sobre os Democratas nunca se retractaram. Analogamente, os preclaros comentadores e politólogos que atribuíram o atentado à polarização da política americana não voltaram ao assunto, uma vez que, entretanto, na impetuosa voragem da agenda mediática, o atentado contra Trump já caíra no olvido, soterrado, sucessivamente, pelo espalhafato da convenção Republicana, pelo anúncio do nome do candidato Republicano a vice-presidente, pela desistência de Joe Biden da corrida, pela sua substituição por Kamala Harris, pelo espalhafato da convenção Democrata, pelo anúncio do nome do candidato Democrata a vice-presidente, pelo debate entre Donald Trump e Kamala Harris, pelo anúncio do apoio de Taylor Swift a Harris, pela detenção de um suspeito de preparar um segundo atentado contra Trump, e assim sucessivamente, na imparável torrente de eventos febricitantes da moderna política-espectáculo, onde tudo é motivo de espanto, polémica e indignação, mas nada é matéria para reflexão. E, uma vez que a tese da polarização da política americana foi maciçamente propalada no dia do atentado e nos dias seguintes e os seus promotores não a reviram ou corrigiram e muito menos admitiram terem-se deixado levar pela precipitação, por ideias feitas ou por assunções levianas (não são só os papas que são infalíveis, os comentadores da actualidade possuem o mesmo dom), foi essa a “explicação” do atentado que ficou impressa na memória da opinião pública e irá perdurar.

Os mass media, na sua presente configuração e modo de operação, estão a contribuir para empurrar a humanidade para um estado de torpor intelectual e erosão da memória (ver Na Era do Zettabyte pt.1: Em toda a parte e em parte alguma). O Alzheimeroceno é uma era (não geológica, mas epistemológica) caracterizada pelo bombardeamento maciço de notícias, opiniões e opiniões sobre as opiniões, versando dois ou três assuntos vistos como sendo de capital importância (ainda que, muitas vezes, não passem de faits divers), durante alguns dias (quase sempre menos de uma semana), seguido pelo abrupto abandono do tema em favor de frioleiras mais “frescas”, e assim sucessivamente, sem que neste torvelinho insano se descortine algum nexo ou se produza no leitor/espectador/ouvinte alguma compreensão, iluminação ou aquisição de conhecimento. Sobrecarga informativa, fragmentação, cacofonia, descontextualização, vertigem non sequitur, dispersão da atenção, superficialidade estridente, ansiedade omnipresente, medo difuso – são estas as marcas definidoras do mundo mediático (ver capítulos “Um grande buraco no centro da vida” e “A globalização da estupidez” em A filosofia da Antiguidade tem alguma utilidade no século XXI?).

Evolução da percentagem de população total que usa a Internet, por região do mundo, 1990-2022

Um conhecimento profundo dos dossiers

Talvez não seja coincidência que o discurso de Trump tenha afinidades com os noticiários televisivos do século XXI. Trump, que é avesso a livros e jornais, sempre foi consumidor ávido dos canais televisivos que difundem (e empolam e fabricam) notícias 24 horas por dia e é plausível que estes tenham moldado a sua forma de pensar e a sua oratória. O discurso de Trump caracteriza-se pela justaposição de assuntos de natureza e relevância completamente díspares, pelo carácter extremamente vago das afirmações e pelo tom bombástico. Alguns temas e frases-chave são repetidos de comício para comício e de entrevista para entrevista, mas sempre em tom exasperantemente vago, e cada regresso ao tema não acrescenta informação adicional, apenas traz a repetição das mesmas generalidades e lugares-comuns (e das mesmas falsidades). Eis alguns exemplos:

● Após anunciar, na campanha eleitoral de 2016, ter um plano para substituir o Obamacare (designação informal do Affordable Care Act, uma medida legislativa, assinada por Barack Obama em 2010, que alargou a cobertura de saúde dos americanos) e ter passado toda a sua presidência a anunciar que estaria iminente a revelação de um programa de assistência médica, “muito melhor, mais sólido e muito menos dispendioso” do que o Obamacare (mas sobre o qual nunca adiantou qualquer detalhe), Trump voltou, na presente campanha presidencial, a anunciar esse mirífico plano. Quando no debate com Kamala Harris, um dos moderadores tentou extrair-lhe uma resposta objectiva sobre ele, Trump limitou-se a dizer, em tom presunçoso: “Tenho conceitos de um plano”.

● Numa entrevista ao programa Full Measure, com Sharyl Atkisson, em 24.09.2024, à pergunta sobre os passos específicos que daria para conter a inflação, caso fosse reeleito, respondeu: “Antes de mais, ela [Kamala Harris] não seria capaz de dar uma entrevista, ela nunca faria esta entrevista, porque você faz perguntas, tipo, dê-me uma resposta específica, e ela fala do relvado da casa onde cresceu, esta mulher não está equipada para ser presidente, não está equipada para negociar com o presidente Xi [Jinping] de que era muito, tirei biliões de dólares com ele, e Putin, nós não tínhamos uma guerra com Putin, lembre-se, e eu vou só dizer isto, com Bush, eles fartaram-se de ganhar, Rússia, com Biden, estão a tentar ficar com tudo, com Obama, ganharam muito, com Trump, a Rússia não ganhou nada. Lembre-se só disto. É um graficozinho”. A resposta de Trump acabaria por tocar o tema inflação, mas apenas para atribuí-la às restrições à extracção de combustíveis fósseis impostas pela Administração Biden, uma ideia sem fundamento, quanto mais não fosse por a produção de combustíveis fósseis nos EUA ter superado todos os recordes históricos durante a presidência de Joe Biden – apesar de este se ter comprometido a adoptar políticas conducentes à redução das emissões de CO2 em 50-52% até 2030 e a atingir a neutralidade carbónica em 2050.

● Num “town hall” em La Crosse, Wisconsin, em 29.08.2024, à pergunta da moderadora, Tulsi Gabbard (sua apoiante), sobre rumores, (supostamente) espalhados pelos seus opositores, de que Trump pretenderia banir a procriação medicamente assistida, disse: “É um assunto duro, certo? A vida pode ser muito dura, pode ser bela, mas pode ser difícil. Estamos a fazer algo com a procriação medicamente assistida porque a procriação medicamente assistida, como sabe por amigos, pessoas que conhece, tem funcionado muito bem para muitas pessoas, deu-lhes uma criança quando não teriam uma criança e eu disse ao meu pessoal que queria olhar para isto, há umas semanas, e, como sabe, não temos impostos sobre uma coisa chamada gorjetas, sabe disso, e eu disse, digam-me, nós fizemos três coisas, fizemos isso e não taxámos os reformados nos benefícios da segurança social, queremos ter isso, e tenho estado a ver muita procriação medicamente assistida e continua a ouvir dizer que eu me oponho muito a ela, e na verdade sou muito a favor”.

Trump acabou por dizer que, no seu segundo mandato, a procriação medicamente assistida seria paga pelo Estado ou que este instruiria as seguradoras para que suportassem tais despesas, mas sem adiantar qualquer detalhe sobre a forma de funcionamento, a regulação, os custos, o financiamento e o calendário de implementação.

Quando Gabbard comentou que essa notícia seria certamente bem acolhida por muitas famílias, Trump respondeu: “Bem, é grande e, sabe que mais, queremos produzir bebés neste país, certo?, queremos produzir bebés, por isso creio que vai ser uma coisa que nós dissemos, nós fizemos uma espécie de anúncio, um bocadinho, estávamos num grande sítio, o Michigan, todos adoramos o Michigan, certo?, vamos trazer de volta a indústria automóvel e muita dela vai voltar ao Michigan, têm estado a tirar-nos os carros, estão a tirar-nos as fábricas há anos, há décadas, e se se olha para aquilo hoje, é uma casca do que foi há anos, nós vamos trazê-la de volta, o México está agora a construir gigantescas fábricas de automóveis, que na verdade são construídas e financiadas pela China, eles pensam que vão vender os seus carros no nosso país. Isso não vai acontecer, isso não vai acontecer, ouçam, aquilo, isso não vai acontecer. Houve tantas coisas que correram mal na indústria automóvel, as direcções dos sindicatos têm sido horríveis, acho que irei ganhar por 85% o sindicato, porque vamos trazer de volta e vamos ter carros eléctricos e vamos ter carros a gasolina e vamos ter híbridos, vamos ter todo o tipo de carros, não vamos ir apenas com isso, mas senti que era um bom lugar para o anunciar e nós fizemos a espécie de anúncio, lá, um bocadinho, e agora fazemos o grande anúncio esta noite em frente de todas as estações de televisão, todas as ‘fake news’, conhecem as ‘fake’? Estão por todo o lado, estão por todo o lado, não sei o que se passa”.

● Num “town hall” em 17.09.2024, em Flint, Michigan – outrora conhecida como Vehicle City, mas cuja indústria automóvel sofreu um declínio vertiginoso a partir do final da década de 1970 – em resposta à pergunta “Quais são para si as maiores ameaças aos postos de trabalho na indústria automóvel do Michigan e o que faria para as eliminar?” disse:

“Muito bem, vou entrar por um bocadinho de uma longa resposta, porque quando diz ‘maior ameaça’, para mim há uma ameaça realmente grande, chama-se armas nucleares, nós chamámos, há outros países que nos são hostis, eles não têm de ser hostis para connosco, eu digo sempre que se tiveres um presidente esperto nunca terás um problema com a China, Rússia, ou qualquer um deles, OK? Dei-me muito bem com Putin, dei-me muito bem com o presidente Xi, dei-me muito bem com Kim Jong-un, da Coreia do Norte, toda a gente dizia, ‘Não pode dar-se bem com ele’, ele gostava de mim, dei-me muito bem com ele e ele tem muita força nuclear”.

● Para completar esta amostra, vale a pena recordar a resposta que Trump deu, no Economic Club, em Nova Iorque, em Setembro passado, a uma pergunta sobre que medidas legislativas tomaria para tornar as creches acessíveis (ver capítulo “Obrigado, foi uma excelente pergunta” em Donald Trump: Anatomia de um narcisista).

Para cada um dos grandes problemas ou ameaças que pairam sobre os EUA, Trump tem sempre um plano (“espectacular!”) para os enfrentar, mas ao repetir o anúncio pela vigésima vez os contornos do plano continuam tão nebulosos como da primeira vez e há muito se tornou óbvio que Trump não tem qualquer plano, não percebe nada do assunto, nem tem intenção de resolver qualquer problema.

E se nas entrevistas e “town halls” os esforços de entrevistadores e moderadores para manter Trump no trilho raramente são bem sucedidos, nos comícios espinoteia como um solípede atormentado por um enxame de vespas. Como a esmagadora maioria dos políticos do nosso tempo, nos comícios Trump dispõe sempre de telepontos frente à tribuna, mas raramente lhes presta atenção e prefere entregar-se à “improvisação” e à “stream of consciousness. Entre o tema da mortandade que as turbinas eólicas infligem a aves e baleias e o tema da criminalidade violenta resultante da invasão do país por gangs venezuelanos, Trump pode comentar a brisa fresca que se faz sentir, lamentar que os animais de estimação dos americanos estejam a ser comidos por imigrantes haitianos ou evocar o “grande Hannibal Lecter, um homem maravilhoso”.

Questões de moral: Gatos vadios e Tony Soprano

No único debate que opôs Joe Biden a Donald Trump na campanha eleitoral de 2024, realizado a 21 de Junho, o primeiro lançou, a meio de um desempenho desoladoramente letárgico, o que deve ter pensado ser um mot d’esprit acutilante: atribuiu a Trump “a moral de um gato vadio”. A projecção de qualidades cognitivas e espirituais de seres humanos em animais é um exercício de antropomorfização pueril e improdutivo (e cada vez mais intenso e frequente, dadas as pulsões animalistas em voga), pois bondade e maldade são conceitos estritamente humanos e a moral é uma construção civilizacional. Para mais, mesmo considerando a hipótese de os gatos possuiriam uma moral, por rudimentar que fosse, seria duvidoso que a de um gato doméstico fosse superior à de um gato vadio. De qualquer modo, aos que abominam Trump, a escolha do gato como animal ilustrativo da moral de Trump terá parecido demasiado lisonjeira – crocodilo ou tubarão seria mais certeiro.

Prescindindo de metáforas animalistas, o humorista Bill Maher foi quem esteve mais perto de sintetizar o perfil moral de Trump numa frase: “Se alguma vez se perguntaram como é Donald Trump na vida real: Tony Soprano sem a introspecção” (in Real Time with Bill Maher, 30.08.2024). Com efeito, são muitos os pontos de contacto entre Donald Trump e Tony Soprano a nível de carácter: egocêntricos, competitivos, fanfarrões, rancorosos, misóginos, femeeiros, autocratas, incapazes de empatia, desprovidos de escrúpulos e irradiando masculinidade tóxica, mas vendo-se a si mesmos como “a good guy, basically. I love my family” (Tony Soprano).

No que respeita à introspecção, Trump não dá mostras de a praticar, e, por outro lado, a de Tony Soprano é superficial e postiça. Quando Tony é, pontualmente, espicaçado pelo remorso, a introspecção desemboca invariavelmente na conclusão de que, dadas as circunstâncias, agiu de forma correcta e moral; por outro lado, a sua “introspecção com enquadramento profissional”, ou seja, as sessões de psicoterapia com a Dr.ª Melfi, não são mais do que uma reencenação lisonjeira “das suas malfeitorias perante um ‘juiz’ com aura de rigor e isenção, [para] assim emergir, branqueado, como uma ‘boa pessoa’” (ver Tony Soprano não é um gajo porreiro). Tony não vai ao consultório da Dr.ª Melfi para se conhecer melhor, nem para se confrontar lucidamente com os seus erros e transgressões, e muito menos para tentar corrigir aspectos desagradáveis ou tóxicos da sua personalidade, mas para tomar um banho lustral e poder continua a ser exactamente o biltre que sempre foi, mas de consciência limpa.

Tony Soprano no consultório da Dr.ª Melfi

Por egocêntrico e caprichoso que seja o carácter de Trump e por vasto que seja o poder do presidente da maior potência mundial, a verdade é que um presidente dos EUA está mais limitado na sua actuação do que o capo de um pequeno gang mafioso de New Jersey, uma vez que o mandato presidencial se desenvolve no interior de um quadro legal e institucional bem definido e testado e é limitado por um sistema de “freios e contrapesos” (“checks and balances”).

Porém, no seu primeiro mandato, Trump já deu mostras de não se conformar a uma regra fundamental da democracia, que é a aceitação dos resultados eleitorais e, concomitantemente, a transição pacífica de poder. E, na presente campanha eleitoral, já anunciou a sua intenção, caso vença, de assumir o controlo do poder judicial, através da nomeação de juízes de sua confiança, de reforçar os poderes do presidente e de “desmantelar o Deep State”, o que significa fazer uma purga profunda em todas as agências e departamentos do Estado federal, removendo “burocratas velhacos”, “elementos corruptos” e informadores das “fake news” e preenchendo os seus lugares com “patriotas que amam a América” (ver capítulo “O déspota esclarecido” em Donald Trump pelas suas próprias palavras).

Embora David Chase, o argumentista da série The Sopranos, não se tenha poupado a esforços para tornar evidente a natureza execrável e irredimível de Tony Soprano, muitos espectadores e críticos de televisão obnubilados estabeleceram uma relação empática com a personagem e vêem-na como ocupando um “limbo moral” (“é um criminoso, mas é corajoso, é divertido, tem um lado vulnerável e, lá no fundo, é boa pessoa”). Analogamente, embora sobejem provas da total inadequação do carácter de Trump ao desempenho de qualquer cargo político, cerca de metade dos americanos – incluindo muitos que estão conscientes dos seus aleijões morais – deseja tê-lo novamente como presidente.

Interlúdio jurídico: o presidente-imperador

Por esta altura, deveria ser óbvio a quem acompanha a política dos EUA que, se for reeleito, o segundo mandato de Trump será diferente do primeiro, em que os “freios e contrapesos” conseguiram circunscrever a sua governação a limites legais e razoáveis. Para tal contribuirá a decisão de 01.07.2024 do Supremo Tribunal de Justiça dos EUA, que determinou que o presidente dos EUA possui imunidade total no que respeita a actos oficiais, o que poderá inactivar um dos mais fortes travões ao poder presidencial.

Esta decisão deverá ser lida à luz de três considerações:

1) Graças à nomeação para o Supremo Tribunal de Justiça dos juízes Neil Gorsuch, Brett Kavannaugh e Amy Coney Barrett, efectuadas por Trump (e inspiradas por Deus, segundo Trump), aquele tribunal deixou de ser uma instituição independente e tornou-se num instrumento de luta partidária. E acontece que, na configuração pós-Trump, ele é controlado pelos Republicanos, que contam com seis juízes (os três mencionados acima mais Samuel Alito Jr. e Clarence Thomas, todos eles ultraconservadores, mais o conservador moderado John Roberts, presidente do tribunal), contra três Democratas (Sonia Sotomayor, Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson).

O Supremo Tribunal de Justiça dos EUA na sua presente configuração (em vigor desde Junho de 2022). Da esquerda para a direita, sentados: Sotomayor, Thomas, Roberts, Alito, Kagan; de pé: Barrett, Gorsuch, Kavanaugh, Jackson

2) A posição do Supremo Tribunal neste domínio não é subscrita pelo povo americano: num inquérito de opinião de 2024, a frase “O presidente deveria ter imunidade contra os crimes que cometa como presidente” recebeu a discordância de 63% dos eleitores Republicanos e de 81% dos eleitores Democratas.

3) Nem sempre é claro quando deve a actuação de um presidente ser incluída no âmbito das suas funções oficiais ou da sua vida pessoal. Onde enquadrar, por exemplo, as pressões e diligências ilícitas de Trump para alterar o resultado das eleições presidenciais de 2020 e a instigação do ataque ao Capitólio? Considere-se, por exemplo a questão posta por Sonia Sotomayor, juíza do Supremo Tribunal, a John Sauer, advogado de Trump: “se o presidente entender que um seu rival é corrupto e der ordem para que seja assassinado, será que isso cabe nos actos oficiais que lhe conferem imunidade?”. Sauer respondeu “Depende da hipótese, mas creio que tal bem poderia ser um acto oficial”, o que abriria as portas a todo o tipo de arbitrariedades.

Seja como for, é irónico que o Supremo Tribunal de um país forjado na luta contra uma monarquia e que se afirmou como a primeira república democrática moderna tenha, no século XXI, equiparado os poderes do presidente do país aos de um monarca absolutista dos séculos XVII ou XVIII ou aos de um imperador romano. Nesta decisão do Supremo Tribunal podem ouvir-se ecos da máxima “Princeps legibus solutus est”, formulada no século III pelo jurista romano Ulpiano (Eneo Domitius Ulpianus), que estabelece que “o monarca está acima das leis”. O presidente dos EUA ainda não goza de infalibilidade, como o papa, mas já alcançou a inimputabilidade. Tudo isto torna mais inquietante a insinuação feita por Trump, durante um comício, de que, se os eleitores lhe dessem a vitória nestas eleições, não teriam de voltar a votar.

Turbas e populistas

Abraham Lincoln, o presidente com quem Donald Trump gosta de medir-se, sempre foi avesso a demagogos: logo no seu primeiro discurso político relevante, “The perpetuation of our political institutions”, proferido a 27 de Janeiro de 1838 (quando tinha apenas 28 anos), no Young Men’s Lyceum de Springfield, Illinois, considerou a possibilidade de um homem com a ambição de “um Alexandre, um César, ou um Napoleão” conseguir assumir o poder nos EUA e advertiu contra os perigos das paixões políticas, da demagogia e dos discursos capazes de inflamar as multidões. Segundo Lincoln, até o mais forte Governo “pode ser quebrado e destruído” pelo “espírito turbacrático” (“mobocractic spirit”, sendo “mob” a palavra inglesa para “turba” ou “multidão”). E concluía: “A paixão tem-nos ajudado; mas não mais o fará. No futuro será nossa inimiga. A razão, a razão fria, ponderada e desapaixonada, deverá fornecer todos os materiais para nosso arrimo e defesa”; à razão, segundo Lincoln, deveria somar-se “o senso comum, uma moral sólida e, em particular, a reverência pela Constituição e pelas leis”.

Não é difícil imaginar o que pensaria Lincoln de um presidente dos EUA que, entre outros desmandos e torpezas, conspirou activamente para subverter uma eleição presidencial, nomeadamente pressionando o seu vice-presidente para “usar a sua autoridade como supervisor da contagem do Colégio Eleitoral para rejeitar ou devolver votos” (Mike Pence dixit) e pressionando Brad Raffensperger, o secretário de Estado (Republicano) do estado da Georgia, a “desencantar 11.780 votos” adicionais em seu favor (exactamente os necessários para vencer as eleições naquele Estado), e que, não tendo tido sucesso nestas manigâncias, incitou uma turba de apoiantes, por si convocados, a assaltar o Capitólio, bloquear a certificação dos resultados eleitorais e perpetuá-lo no poder.

Abraham Lincoln quando jovem, numa litografia de 1860 por Leopold Grozelier, a partir de uma pintura de Thomas Hicks

Em 1859, 21 anos depois do discurso no Young Men’s Lyceum e dois anos antes de se tornar presidente, Lincoln interrogava-se: “Durante quanto tempo, sob a supervisão de Deus, poderoso quanto baste para fazer e manter este universo, haverá canalhas a vender – e tolos a engolir – tão reles peças de demagogia?”.

Não foi no século XXI que surgiram os políticos que se estribam em discursos populistas e os eleitores que se deixam iludir por promessas demagógicas e rumores descabelados. Porém, dantes, quem dava crédito aos discursos populistas era sobretudo o povo rural, pobre, iletrado, que nunca se tinha afastado mais de 30 quilómetros do local onde nascera e a quem as notícias sobre a vida política na capital chegavam em quarta ou quinta mão, deturpadas, mutiladas, remisturadas e com muitos dias de atraso. Hoje, são pessoas que já perderam conta às viagens de avião que efectuaram, que fazem compras online regularmente e têm acesso instantâneo a uma infinidade de estações de televisão e rádio, jornais e agências noticiosas e websites especializados em “fact-checking” em todo o mundo. Têm também contas no Facebook, no Twitter/X, no Instagram, no WhatsApp e no TikTok, no Snapchat, no Telegram, e talvez parte substancial do problema esteja aí.

Na eleição presidencial americana de 2008, os tecnólatras de inclinações liberais elogiaram o inovador e astuto uso das potencialidades da Internet pela campanha de Barack Obama, que terá contribuído para alcançar uma vitória confortável sobre o candidato Republicano John McCain.

Barack Obama responde a perguntas de eleitores no Twitter, numa acção de campanha na corrida presidencial, Junho de 2012

No seu deslumbramento com a novidade tecnológica, não perceberam a real índole dos novos meios tecnológicos, nem lhes ocorreu que qualquer força política poderia fazer eficaz uso deles. Muito menos poderiam adivinhar – ninguém poderia adivinhar – as mudanças avassaladoras que estavam para vir nesta área e que confeririam poder avassalador às redes sociais. À data, estas estavam ainda na primeira infância: o Facebook, fundado em 2004, tinha 100 milhões de utilizadores activos em todo o mundo, hoje tem mais de 3000 milhões; o Twitter/X, fundado em 2006, tinha 100.000 utilizadores, hoje tem 335 milhões; WhatsApp, Instagram e TikTok ainda não existiam em 2008 (foram fundados em 2009, 2010 e 2016, respectivamente) e possuem hoje, respectivamente, 3000 milhões, 2400 milhões e 1800 milhões de utilizadores. Hoje, existem 5200 milhões de utilizadores de redes sociais (muitos deles com contas em mais do que uma rede), que representam 64% da população mundial e 95% dos utilizadores da Internet, e, em média, o utilizador típico das redes sociais passa nelas duas horas e 20 minutos por dia.

Turbas e redes sociais

A imersão prolongada no oceano digital não trouxe, hélas!, mais sabedoria à maioria dos habitantes do planeta. Em vez de os abrir à assombrosa diversidade de ideias, mundividências, conhecimentos, talentos, realizações e perspectivas, encerrou cada um deles num casulo em que só é admitida a informação que confirma os seus preconceitos. Exacerbou o pior da natureza humana e tornou o narcisismo não só aceitável como louvável. Fez de cada desmiolado presunçoso um “influencer” poderoso. Substituiu a ignorância involuntária, humilde e envergonhada pela ignorância auto-infligida, arrogante e extrovertida. Transferiu energias da participação cívica para o “activismo” (leia-se: tribalismo) digital, levando à diminuição da participação eleitoral, da confiança na isenção e legalidade do processo eleitoral e do respeito entre adversários políticos. Acenou com a fraternidade universal e fomentou o nacionalismo, a xenofobia e o culto identitário. Prometeu mais transparência e democracia e fomentou a mistificação e a turbacracia (ver capítulo “Ofuscados por LEDs, néons e écrans” em A Idade de Ouro da ciência árabe pt.3: Um longo sono, capítulo “O triunfo da indignação e o colapso da realidade” em “Somos perfeitos sem ter de fazer nada”: O wokismo e as redes (ditas) sociais e capítulos “Os computadores e as redes estão a minar a democracia?”, “Os computadores e as redes estão a criar populistas?” e “Interlúdio apocalíptico” em Nexus: As redes de informação, a humanidade e as (revira)voltas de Yuval Noah Harari).

Quando Lincoln alertou contra os perigos da turbacracia não podia imaginar o que seria o populismo da primeira metade do século XX, estribado na rádio, no cinema, na imprensa, nos cartazes e nos megacomícios aparatosos, e muito menos seria capaz de antever a turbacracia de fibra óptica do século XXI.

Comício organizado pela German American Bund, uma organização nazi americana, no Madison Square Garden, em Nova Iorque, a 20 de Fevereiro de 1939: O fascínio da América com o populismo de extrema-direita não começou com Trump; mas deve dizer-se, em abono da verdade, que enquanto o comício reuniu 20.000 pessoas, no exterior do edifício juntaram-se 100.000 contramanifestantes

Na turbacracia digital há muitos milhões de “vigilantes” que patrulham o ciberespaço em busca de quem ouse desviar-se dos padrões da “correcção política” (ver Há turbas de linchamento à solta na Internet) e o seu poder é tal que mesmo as figuras mais famosas e poderosas se sentem intimidadas e apressam-se a pedir desculpas e a retractar-se assim que são tomadas por alvo.

Há também uma turba 100% digital, formada por muitos milhões de bots ao serviço de forças políticas e de governos que, simulando ser criaturas de carne e osso, se encarregam de difundir desinformação “maliciosa” em tal quantidade que simulam genuínos movimentos na opinião pública e criam gigantescas bolhas de realidade alternativa, que contribuem para deixar a turba de carne e osso ainda mais desorientada e susceptível à manipulação.

Os media tradicionais sob suspeição

O que é irónico é que a maior parte da (des)informação (maliciosa, estólida, espúria ou simplesmente irrelevante) que provém de influencers, de celebridades, de podcasters que vivem num anexo ou cave na casa dos pais e de fontes anónimas na Internet seja aceite pelo receptor como inquestionável, desde que se conforme à sua mundividência, mas que a informação e a opinião proveniente dos media tradicionais esteja cada vez mais desacreditada, sendo os artigos que contrariam a mundividência do receptor automática e inapelavelmente atribuídos a jornalistas e articulistas a soldo de interesses ocultos (e que, sendo sumamente matreiros, logram ocultar do conhecimento público as moradias luxuosas, os automóveis topo de gama, as refeições em restaurantes Michelin e as férias em lugares exóticos que o “trabalho mercenário” lhes proporciona).

Uma sondagem Gallup de 2022 revelou que apenas 7% dos americanos deposita forte confiança nos mass media tradicionais, com 27% a expressar uma razoável confiança. O grupo dos que têm muita ou razoável confiança nos media (34%) está em declínio desde 1976 (quando era de 76%) ao mesmo tempo que subiu o grupo dos que expressam escassa confiança (de 22% em 1976 para 28% em 2022) e o grupo dos que não confiam nada nos media (de 4% em 1976 para 38% em 2022). O que é ainda mais revelador  é que a confiança nos media tradicionais difere nitidamente consoante a identificação partidária: enquanto a dos Democratas em 2022 (70%) é apenas um pouco inferior à que era em 1976 (75%), a dos Republicanos caiu de 63% em 1976 para 14% em 2022 (no mesmo intervalo, a dos “independentes” caiu de 60% para 27%). É de realçar que a confiança nos media pela parte de Republicanos é baixa em todos os grupos etário (16% nos 18-34 anos, 6% nos 35-54 anos, 14% nos que têm mais de 55 anos), enquanto Democratas e “independentes” confiam tanto menos quanto mais jovens são: 79% de confiança nos que têm mais de 55 anos, 71% nos 35-54 anos, 51% nos 18-34 anos. Os EUA não estão sós no crescente descrédito dos mass media junto da população: o Digital News Report 2024 do Reuters Institute for the Study of Journalism revelou que na Hungria e na Grécia a confiança dos media é de apenas 23%.

Primeira página do número de 17 de Dezembro de 1786 da Gazette de France (depois rebaptizada La Gazette), considerada pelos especialistas em media como o primeiro jornal francês e que começou a ser publicado em 1631 por Théophraste Renaudot. Uma vez que Renaudot era médico de Luís XIII e que a Gazette de France era financiada por este, é improvável que o jornal publicasse notícias ou opiniões desfavoráveis ao Governo da Nação

Será a desconfiança justificada e ter-se-ão os media tradicionais tornado mais facciosos ou mais disponíveis para cozinhar notícias por encomenda? Haverá cada vez mais jornalistas que fazem, não as perguntas que são do interesse público, mas as que lhes são “sopradas” nos auriculares ou enviadas para os seus telemóveis, como insinuou recentemente Luís Montenegro? Ou aquilo a que se chama “desconfiança nos media” será, na verdade, a aversão a sermos confrontados com algo diferente daquilo em que escolhemos acreditar? Será que passámos a entender “as notícias” não como uma janela para o mundo mas como um espelho para o ego? O século XXI deu-nos não só a selfie, o culto da auto-estima e uma montra (as redes sociais) para exibirmos a nossa deslumbrante personalidade, como a possibilidade de cada um talhar uma visão da realidade à medida dos seus caprichos e inclinações e a rejeitar todas as outras. A capacidade de personalizar a informação a que acedemos tem sido apresentada como uma bênção e uma “conveniência”, mas está a esboroar o “chão comum” sobre o qual assenta toda e qualquer possibilidade de diálogo.

A par do crescente descrédito nos media, assiste-se também a uma “saturação noticiosa”: a percentagem de pessoas que dizem estar muito interessados em notícias caiu de 63% em 2017 para 46% em 2024; em contrapartida, no mesmo período, a percentagem de pessoas que diz evitar deliberadamente inteirar-se de notícias subiu de 29% para 39%.

Os relatórios anuais do Reuters Institute dão testemunho da diminuição do número dos que têm como fonte noticiosa digital preferencial os media tradicionais (no Reino Unido, no escalão 18-24 anos caiu de 50% em 2015 para 25% em 2024) e do aumento do número dos que obtêm as notícias nas redes sociais. Há que realçar que a importância relativa das diferentes redes está em rápida mudança: o Facebook, que em 2020 representava a fonte preferencial de 36% dos que recorrem às redes sociais como fonte noticiosa caiu para 26% em 2024; no mesmo período, o YouTube passou de 21% para 22%, o Instagram de 11% para 15% e o TikTok de 1% para 8%. Não é de estranhar que políticos de todos os quadrantes tenham corrido a marcar presença no TikTok, mesmo não tendo afinidade pelo meio e correndo o risco de protagonizarem momentos “cringe” (como agora soi dizer-se) e tornarem-se motivo de troça pelos habitués, maioritariamente jovens, desta rede social.

Número de 1611 do Mercure de France, considerado como a primeira revista publicada em França

A perda de confiança nos media tradicionais não é meramente uma consequência não planeada das alterações nos fluxos de informação induzidas pela Internet e pelas redes sociais – é também deliberadamente atiçada por figuras públicas que não vêem com bons olhos o papel dos órgãos de comunicação social no escrutínio do poder político e empresarial. Donald Trump, quiçá o mais acirrado difamador dos media tradicionais (“the fake news”), não age assim apenas pela arrelia que lhe causa ver as suas balelas e bazófias sistematicamente desfeitas pelos mecanismos de fact-checking dos media – solapar a confiança nos media é também um elemento crucial da sua estratégia para a tomada do poder. Mas os media não são o único alvo das campanhas de descrédito dos populistas: eles visam também o próprio regime democrático e as instituições que o sustentam.

Há que considerar que, embora a Internet seja utilizada por partidos e movimentos de todo o espectro ideológico (com eventual excepção dos luditas), a fim de iludir, aliciar e arregimentar as massas, acontece que as características intrínsecas da Internet – e, em particular, a arquitectura e o “modelo de negócio” das redes sociais – favorecem a propagação das proclamações sensacionalistas, dos boatos intoxicantes, das provocações grosseiras e de absurdas teorias conspiracionistas, que sempre foram o combustível favorito dos populistas. Parte da desinformação disseminada pelas redes sociais tem alvos específicos e pretende produzir determinados resultados, mas subjacente a toda ela existe o propósito mais vasto de lançar o descrédito sobre as instituições democráticas e os media independentes.

O caos como estratégia

Os constantes e assanhados ataques dos populistas às instituições podem parecer erráticos, estultos e contraproducentes do ponto de vista do jogo democrático tradicional, mas o seu objectivo não é marcar o máximo de pontos segundo as regras do jogo democrático, é desacreditar o jogo democrático. O historiador Yuval Noah Harari explica assim a estratégia populista: “A democracia baseia-se na confiança, a ditadura baseia-se no terror. Perante a destruição sistemática da confiança e as instituições – destruindo a confiança nos mass media, na academia, nos tribunais, e assim por diante – há pessoas que pensam que isto permite libertar as pessoas dessas instituições. Mas não é assim: quando se destrói toda a confiança, a única coisa que consegue funcionar é a ditadura. É isto que os candidatos a ditador fazem: destruir sistematicamente a confiança” (no programa Real Time with Bill Maher, 27.09.2024).

Donald Trump e a promoção do descrédito no sistema eleitoral americano: Evolução do total acumulado de declarações de Trump sobre a possibilidade de as eleições serem fraudulentas, no período que antecedeu as eleições de 2016, 2020 e 2024; no eixo vertical, n.º de declarações; no eixo horizontal, dias antes da data da eleição; a contabilização referente à eleição de 5 de Novembro de 2024 detém-se em Maio de 2024

A democracia floresce na ordem, o populismo precisa do caos – ou da percepção de caos pela população – para crescer. Como escreve Cliff Sims, em Team of vipers: My 500 extraordinary days in Trump White House, Trump acredita “que criar o caos é vantajoso para ele, porque se sente mais à vontade no meio do sarrabulho do que qualquer outra pessoa”. Daí que os populistas se empenhem em pintar um cenário catastrófico do estado da nação: afluxo descontrolado e selvático de imigrantes, diluição da identidade nacional, paralisia da administração pública, corrupção generalizada, criminalidade galopante, insegurança crescente, justiça inoperante, economia em ruínas, sistema de educação sequestrado por ideologias radicais, a sagrada instituição da família e a religião cristã sob ataque, subversão da ordem social pela atribuição de direitos e privilégios inauditos e iníquos a certas minorias e grupos, descrédito do país no panorama internacional.

Donald Trump refere-se insistentemente aos EUA como “uma nação em declínio”, “uma nação falhada”, “um país do Terceiro Mundo”, “um país que se tornou numa anedota”, um país cuja “indústria automóvel está a falir, está a falir, mas eu não tenho culpa alguma nisso. Querem saber a verdade? Todo o país acabará como Detroit [a decadente e outrora florescente capital da indústria automóvel mundial] se [Kamala] for presidente”. A América urbana descrita por Trump parece saída de um filme pós-apocalíptico, com “cidades onde as pessoas têm medo de viver”, onde “as mercearias estão a ficar sem comida”, onde “se atravessa a rua para comprar pão e leva-se com um tiro, é-se assaltado, é-se violado”, cidades que, “do ponto de vista estatístico, no número de tiroteios, no número de crimes, no número de tudo, […] são piores do que as Honduras” (sobre Baltimore), que são uma “armadilha mortal, imunda e infestada de crime”, com “estradas todas esburacadas […] e o lixo se acumula nas ruas, com contentores por esvaziar durante muitos meses” (sobre Washington DC), “uma Zona de Guerra com índices recorde de homicídio e crime violento” (sobre Atlanta). A América descrita por Trump torna-se um pouco mais macabra de cada vez que ele regressa ao tema, como atesta o seu recente comício em Aurora, Colorado, em 11.10.2024: “A América é conhecida em todo mundo como a América Ocupada […] Estamos a ser ocupados por uma força criminosa. […] Kamala importou um exército de estrangeiros ilegais membros de gangs e de criminosos imigrantes vindos das masmorras do Terceiro Mundo e alojou-os, muito confortavelmente, na nossa comunidade, para que eles rapinem cidadãos americanos inocentes. […] Eles estão muito muito muito doentes com doenças altamente contagiosas e foram conduzidos para o nosso país para o infectar. […] Os nossos criminosos são como bebés ao pé desta gente. Estes criminosos são as pessoas mais violentas do mundo e trazem drogas e trazem crime e são violadores. […] Temos tido de viver com estes animais, mas não iremos viver com eles por muito mais tempo. Vão ver”. Perante este cenário dantesco, não resta senão concordar com a lúgubre proclamação de Trump de que “o sonho americano morreu!”.

Este caos tem, para os populistas, culpados facilmente identificáveis: as elites políticas incompetentes e corruptas que se têm perpetuado no poder e que têm de ser escorraçadas, juntamente com os gangs de criminosos estrangeiros, para que o país reencontre o seu rumo. É por isso que Trump descreve todos os líderes Democratas e todas as acções e medidas de governantes Democratas como “a disgrace”; é por isso que, para André Ventura, tudo na “terceira República” é “uma vergonha, uma ver-go-nha!”.

“Obamanation”: retrato da América de desordem, corrupção e desespero criada pela presidência de Barack Obama, segundo Jon McNaughton

Este apetite pelo caos e por teorias conspirativas não nasceu na segunda década do século XXI: já em 1980, Frank Donner (1911-1993), advogado e activista das liberdades civis nos EUA, alertava para o fenómeno: “em tempos de tensão, explicações febris e exageradas de realidades indesejáveis ascendem à superfície da vida americana e conquistam seguidores”. A contínua renovação de movimentos conspiracionistas revela, segundo Donner, “um contraste flagrante entre as proclamações sobre a nossa superioridade e o nosso papel, como nação redentora, de erguer uma nova ordem mundial, e a extraordinária fragilidade da nossa confiança nas nossas instituições”, contraste que “tem levado alguns comentadores a concluir que nos sentimos, subconscientemente, muito inseguros quanto ao valor e continuidade da nossa sociedade” (citado em “Why are we addicted to conspiracy theories”, in The Guardian, 05.05.2019).

Se as massas pouco esclarecidas ou propensas ao pensamento paranóico se deixam facilmente enredar em teorias incongruentes, já do ponto de vista de quem propaga desinformação catastrofista não existe dissonância cognitiva: o caos que denunciam – ou melhor, a sensação de caos que promovem – é um meio, não um fim: o “caos” é o pretexto que justifica a entrada em cena do Homem Providencial. Uma vez conquistado o poder, o Homem Providencial costuma arrogar-se poderes extraordinários, supostamente para pôr termo ao “caos”, mas, na verdade, para assumir o controlo do aparelho de Estado e para tentar suprimir liberdades e direitos cívicos, a pretexto de evitar o regresso da balbúrdia. Perante o cenário lúgubre traçado pelos populistas, o povo aceita de bom grado que um Homem Providencial tome as rédeas da nação: numa sondagem da PBS NewsHour/NPR/Marist, de Abril de 2024, perante a afirmação “O país está tão fora de controlo que precisa de um líder capaz de infringir as regras”, 41% dos respondentes concordaram, percentagem que foi de 56% entre os Republicanos, 37% entre os “independentes” e 28% entre os Democratas. É uma perspectiva que vai alastrando a outras democracias liberais do Ocidente: em Portugal, 50 anos depois do 25 de Abril, 34% dos portugueses manifestam preferência por “um líder forte que não tivesse de preocupar-se com o parlamento nem com eleições” e 23% que, “se os políticos portugueses seguissem os ideais de Salazar, Portugal reconquistaria a sua grandeza” (é o equivalente luso do conceito MAGA).

Em síntese: sem as redes (ditas) sociais, Donald Trump, Jair Bolsonaro e André Ventura seriam, muito provavelmente, políticos populares, mas a sua ascensão teria sido mais lenta, a sua implantação menos abrangente e a devoção dos seus fãs menos intensa.

“Remendando a nação”, por Jon McNaughton: A ideia de que os EUA são um país em farrapos domina o discurso de Trump

A América de Lincoln e a América de Trump

Os EUA, que já tinham uma inusitada propensão para avistar OVNIs, serem raptados por extraterrestres e acreditarem que Elvis Presley não faleceu em 1977, foram o primeiro país a mergulhar nas redes sociais e tornaram-se no maior foco mundial de ciberestultícia e são quem tem ditado ao mundo as “tendências” asininas e vãs da Era Digital. São hoje um país que, apesar de possuir uma formidável constelação de universidades de excelência, de ser um poderoso íman para as mais brilhantes mentes de todo o mundo, de possuir uma economia pujante, de ser líder em muitos domínios tecnológicos, nomeadamente nas Indústrias 4.0 e de ser um prolífico e influente gerador de arte e cultura, é também alfobre de crendice, obscurantismo e sectarismo ideológico, é palco de mesquinhas e estéreis “guerras culturais”, e assiste à acelerada erosão da confiança dos cidadãos nas instituições democráticas (ver capítulo “Uma confederação de néscios” em A Rússia e o sonho imperial pt. 5: Inimigos, cúmplices, não-alinhados, sonsos e cínicos).

No discurso no Young Men’s Lyceum de Springfield, Lincoln afirmava não ter receio algum de que os EUA sucumbissem aos exércitos de uma potência estrangeira, “ainda que tivessem um Bonaparte a chefiá-los” – a ameaça à continuidade dos EUA “não pode vir de fora. Se a destruição for o nosso fado, seremos nós os seus autores. Como nação de homens livres, viveremos perpetuamente ou morreremos por suicídio”.

Talvez esta dicotomia fosse válida no mundo compartimentado, pachorrento e insular de 1838, mas não o é no mundo globalizado, hiperacelerado e hiperconectado de 2024: às sandices, momices, pantomimas, piadolas e atoardas despejadas caoticamente nas redes sociais por amadores anódinos e dispersos por todo o planeta, soma-se a desinformação “maliciosa” e direccionada, produzida na Rússia e na China por organismos estatais, controlados pelo Estado ou financiados pelo Estado, multiplicada por baterias de programas automatizados (“bot farms”) e, nalguns casos, enviada para alvos com os perfis seleccionados por algoritmos alimentados com as informações sobre si próprios que os cidadãos comuns disponibilizam graciosa e espontaneamente na Internet (este ataque “cirúrgico” ainda está num estádio de desenvolvimento incipiente, mas tem imenso potencial).

Resulta daqui que as forças destrutivas internas e externas podem trabalhar para o mesmo fim: a supressão da “nação de homens livres” em que Lincoln acreditava (ver capítulo “Na América, tudo corre de feição” em A Rússia e o sonho imperial pt. 5: Inimigos, cúmplices, não-alinhados, sonsos e cínicos). E nem sequer é necessário que as forças destrutivas internas estejam conluiadas com os inimigos externos, basta que desempenhem o papel de idiotas úteis. O que é de uma amarga ironia é que o caminho para a destruição se faça a coberto do lema “Make America great again”.