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A 20 Dezembro de 2013, Justine Sacco tinha 170 seguidores na sua conta do Twitter, um número irrisório se considerarmos que Katy Perry – a personalidade mais popular do Twitter – tem actualmente 108 milhões de seguidores e é seguida de perto por Justin Bieber (105 milhões) e Barack Obama (100 milhões) e que o último lugar do top 100 do Twitter – o saudita Aid al-Qarni, um erudito islâmico e autor de um livro de auto-ajuda que se tornou um sucesso, sobretudo entre muçulmanos – tem 18 milhões. Se Sacco estava longe de ser uma celebridade no mundo virtual, também não era uma figura proeminente no mundo real: era directora de comunicação na IAC (InterActiveCorp), uma empresa na área dos media e da Internet.

Sacco trabalhava em Nova Iorque e ia a caminho da África do Sul, o seu país de origem, para umas férias, e durante o longo percurso de avião, com escala em Heathrow, foi deixando no Twitter o tipo de comentários presunçosos, sarcásticos, inanes e supostamente divertidos que representam boa parte dos conteúdos desta e outras redes (ditas) sociais: “Um fulano alemão esquisito: Viajas de 1.ª classe. Estamos em 2014. E se usasses desodorizante?”; “Frio de rachar, sanduíches de pepino, maus dentes – de regresso a Londres!”. Antes de embarcar em Heathrow, tweetou: “A caminho de África. Espero não apanhar SIDA. Estou a brincar. Sou branca!”.

Quando, 11 horas depois, Justine Sacco aterrou na Cidade do Cabo era uma das pessoas mais famosas do mundo – era mesmo o trending topic n.º1 do Twitter – e tinha sido despedida pela IAC. Milhões de pessoas pelo mundo fora aguardavam com expectativa sádica que ela aterrasse na Cidade do Cabo e consultasse o seu telemóvel e descobrisse a tempestade que o seu tweet irreflectido desencadeara – foi mesmo criado o hashtag “#HasJustineLandedYet”. No aeroporto da Cidade do Cabo, um membro da turba digital deu-se ao trabalho de a esperar na zona de chegadas para a fotografar e difundir a sua imagem pela Internet.

Justine Sacco teve, inadvertidamente, os seus 15 minutos de fama – pelos quais pagou um preço exorbitante – mas, como é usual num mundo cada vez mais desprovido de memória, o seu nome foi rapidamente esquecido, até porque entretanto novas denúncias e polémicas foram sucedendo-se com regularidade nas redes (ditas) sociais. Porém, o seu caso tornou-se emblemático para aqueles que estudam os media digitais e a interacção das pessoas com estes e Francisco Bosco (n.1976, Rio de Janeiro), poeta, filósofo, professor, conferencista e detentor de um doutoramento em Teoria da Literatura, menciona o triste destino de Justine Sacco no seu livro A vítima tem sempre razão?: Lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro, embora, como o sub-título indica, o foco do seu livro seja o Brasil.

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“A Vítima tem Sempre Razão”, de Francisco Bosco (Tinta da China)

A vítima tem sempre razão?, publicado no Brasil no final de 2017 e editado em Portugal pela Tinta-da-China quase sem desfasamento, surgiu em Portugal poucas semanas depois de Odeio a Internet, de Jarett Kobek (ver “Odeio a Internet”: A rede vai salvar-nos ou vai ser o nosso fim?), um livro que embora sendo, formalmente, uma obra de ficção, é um manifesto sarcástico sobre o espaço público digital, que se debruça, entre outros aspectos negativos da vida online, sobre os linchamentos digitais e que, a dada altura, dispara esta ácida definição: “A Internet era uma invenção maravilhosa. Era uma rede informática que as pessoas utilizavam para recordar às outras de que eram uns pedaços de merda horrorosos”.

A vítima tem sempre razão? consagra quase metade das suas 226 páginas de texto à análise – lúcida, sintética e equilibrada – das especificidades históricas e sociais do Brasil, na medida em que estas explicam comportamentos dos sectores tradicionalmente “oprimidos” da sociedade brasileira, que têm diferenças significativas para os que se observam em Portugal e no resto da Europa. Porém, mesmo quem não se interesse especificamente pela realidade brasileira encontrará no livro de Bosco temas e reflexões que têm aplicação universal. Entre os temas discutidos por Bosco, dar-se-á especial atenção neste artigo à apropriação cultural, pois as polémicas em torno de acusações de machismo e abuso sexual e em torno dos atritos entre correcção política e liberdade de expressão forneceriam assunto para artigos autónomos.

Francisco Bosco pergunta: a vítima tem sempre razão?

Bosco sabe que pisa território muito escorregadio e está consciente da inflamabilidade das redes (ditas) sociais, pelo que faz questão de afirmar logo na introdução que “a perspectiva teórica, crítica e política deste livro é a do reconhecimento fundamental da legitimidade e da relevância dos movimentos sociais identitários, dos quais me considero um aliado no sentido mais amplo e decisivo” (nota: nas citações de Bosco neste artigo mantém-se a ortografia brasileira). Porém, há movimentos identitários que não admitem tons de cinzento e não é difícil adivinhar que haverá quem veja na pergunta que dá título ao livro uma provocação vinda dos “opressores do costume”, uma vez que Francisco Bosco é branco, homem, heterossexual e nasceu na elite cultural brasileira – nem o texto nem a nota biográfica na badana do livro o menciona, mas Francisco Bosco é filho do músico João Bosco.

O cabelo de Justin Bieber

Em 2017, em Curitiba, Thauane Cordeiro, de 19 anos, foi alvo de reprovação pública nos transportes públicos por, sendo branca, estar a usar turbante, o que, na perspectiva da sua acusadora, era uma apropriação da cultura negra. Não só a acusação assentava num equívoco como, por azar, Cordeiro tinha um fundamento muito válido para a sua “apropriação”: o turbante servia para ocultar a perda de cabelo resultante da quimioterapia a que estava a ser sujeita para tratar um cancro. E, indignada com esta intromissão na sua vida privada, criou a hashtag “#VaiTerTodosDeTurbanteSim”, que fez com que a polémica alastrasse pelo espaço público brasileiro.

Se quem reivindica o turbante como propriedade exclusiva da cultura negra fizesse uma breve pesquisa descobriria que a palavra tem origem persa (“dulband”) e que, embora as suas origens sejam obscuras, gozou (e goza) de grande voga numa vasta região que vai da Mesopotâmia à Índia, estendendo-se depois à Ásia Central, Sudoeste Asiático e África. Tratando-se de uma peça de vestuário tão genérica e com uso tão alargado, não é possível apurar onde terá surgido primeiro, nem em que locais o seu uso surgiu espontaneamente ou foi uma moda importada.

O sultão Solimão I, o Magnífico, governou o Império Otomano entre 1520 e 1566, período que correspondeu ao seu máximo poder e esplendor. Neste retrato atribuído a Tiziano, c.1530, surge com um turbante adequado ao seu cognome

Há diferenças assinaláveis entre as formas que o turbante assume em diferentes culturas: se na Ásia e no mundo islâmico é usado quase exclusivamente por homens, na África sub-sahariana está associado sobretudo a mulheres e assume frequentemente a forma de um lenço enrolado na cabeça.

Até entre a elite cultural europeia houve quem adoptasse o turbante, como foi o caso do poeta inglês Alexander Pope (1688-1744). Em Creta e Chipre, que passaram séculos sob domínio otomano, o uso de turbante – sariki – pelos homens foi corrente até há pouco tempo.

Alexander Pope

O lenço/turbante das mulheres africanas ganhou novos significados quando, através do tráfico negreiro transatlântico, foi levado para o Novo Mundo: por um lado, muitos esclavagistas impunham o seu uso como símbolo de sujeição, por outro lado, muitas mulheres usavam-no com orgulho como símbolo de pertença a uma cultura.

Daqui se conclui que atar um pano em volta da cabeça é uma prática demasiado difundida e com implicações e contextos demasiado diversos e complexos para que alguém possa reclamar o seu uso exclusivo.

A polémica em torno do turbante de Thauane Cordeiro é um dos casos examinados por Bosco, mas não extravasou as fronteiras do Brasil. Porém, no ano anterior, um outro caso de “apropriação cultural” ligado a adornos da cabeça teve repercussão mundial – o que não é de estranhar, já que o seu protagonista tem 105 milhões de seguidores no Twitter: Justin Bieber. Nas incessantes mudanças de visual que ajudam a disfarçar a pobreza da sua música, o cantor canadiano teve a imprudência de surgir no IHeartRadio Awards, em Abril de 2016, com dreadlocks e logo foi acusado de ser mais um branco a apropriar-se de uma marca identitária dos negros.

https://youtu.be/ASRCc3B0QU8

Tratava-se aliás de uma reincidência, já que, três meses antes, Bieber colocara no Instagram uma foto em que surge com cornrows, uma espécie de trança também associada à cultura africana – os cornrows de Bieber só não incendiaram as redes (ditas) sociais porque ele não gostou do resultado e os desfez no dia seguinte.

O debate sobre a “propriedade” dos dreadlocks conduz-nos até um fresco da civilização minóica em Akrotiri (hoje Santorini), no Mar Egeu, datado de 1600-1500 a.C., que mostra dois rapazes a lutar boxe, nus, com excepção de um cinturão e luvas, e com o cabelo entrançado em longos dreadlocks.

Fresco minóico, Akrotiri

Se a estatuária grega do período arcaico – e em particular os kouroi (singular: kouros), estátuas de jovens do sexo masculino, quase sempre em tamanho natural e numa pose rígida e estereotipada – é um testemunho fiável da moda capilar, poderá concluir-se que metade dos adolescentes gregos de então usavam dreadlocks.

Kouros de Kroisos, c.540-515 a.C.

Apesar da popularidade desta moda entre os rapazes gregos de há 2500 anos, não terão sido eles os “inventores” dos dreadlocks pois há vestígios mais antigos um pouco por toda a bacia mediterrânica e Próximo Oriente, nomeadamente nas civilizações suméria e egípcia, no segundo caso envolvendo também mulheres e no primeiro caso podendo também ser usados na barba. Os dreadlocks também têm tradições antigas entre os indianos, os índios da América do Norte, os aztecas, os incas, os maoris, os aborígenes australianos, os Masai da África do Sul, os Akan do Gana e os Turkana do Quénia. Ou seja, estão disseminados por culturas tão afastadas no tempo e no espaço que só pode concluir-se que a ideia de entrançar o cabelo em mechas encordoadas (com diferentes graus de sofisticação e de frequência de lavagem) surgiu espontaneamente a pessoas de épocas e locais muito diversos.

Em tempos mais recentes os dreadlocks foram associados aos rastafaris, um movimento religioso e social surgido na comunidade afro-americana da Jamaica na década de 1930 e que se baseia em interpretações muito peculiares e retorcidas da Bíblia e que vêm no imperador etíope Haile Selassie (1892-1975) um descendente do rei Salomão e da rainha do Sabá e o Segundo Messias anunciado pelas Escrituras. Da íntima associação dos dreadlocks aos rastafaris nos tempos modernos dá testemunho o uso português da palavra “rastas” para designar quer os aderentes ao rastafarianismo quer o entrançado do seu cabelo.

Os dreadlocks dos rastafaris inspiram-se, alegadamente, nos nazireus, referidos no Antigo Testamento como indivíduos que se consagravam ao serviço de Yahveh e que assumiam diversos votos, um dos quais era nunca cortar o cabelo (outro era a estrita abstinência de ingerir vinho ou qualquer alimento associado a uvas, fermentadas ou não). Os rastafaris têm especial apreço pelo herói bíblico Sansão, cuja força sobre-humana decorria em parte de, na qualidade de nazireu, ter jurado perante Deus nunca cortar cabelo nem barba. Quando Dalila, à má-fé, fez um escravo rapar o longo cabelo de Sansão enquanto este dormia no seu regaço, o pacto com Deus foi quebrado e Sansão perdeu a força sobre-humana, permitindo a sua captura pelos seus inimigos, os filisteus.

Sansão trucida um milhar de homens armado apenas com a queixada de um burro: neste gouache (c.1896-1902) James Tissot escolheu atribuir a Sansão uns dreadlocks bem visíveis

Nas últimas décadas do século XX, os dreadlocks foram apropriados como marca identitária pelos descendentes de africanos (não necessariamente aderentes ao rastafarianismo) nos EUA, Caraíbas, Brasil e Europa. A princípio este gesto de afirmação deparou-se com forte oposição do “sistema”, sendo percebido pela opinião pública como indício de hábitos higiénicos duvidosos e tendo havido patrões que proibiram que os seus empregados os usassem, sob pena de despedimento. Se, a princípio, apenas os brancos ligados a movimentos de contra-cultura juvenil – em particular os hippies – aderiram aos dreadlocks, o mundo da moda, na sua incessante demanda por novidades “transgressivas”, acabou por acolhê-los. Quando os modelos da Christian Dior desfilam numa passerelle exibindo os mais sofisticados e mirabolantes dreadlocks que a arte do hair-styling é capaz de produzir, a ténue (e, em boa parte, imaginária) associação entre dreadlocks e a pertença à comunidade dos descendentes de escravos africanos deveria ter-se dissipado e os dreadlocks deveriam ter-se convertido em apenas-mais-uma-coisa-gira-que-podemos-fazer-com-o-nosso-cabelo.

Porém, ao mesmo tempo, as redes (ditas) sociais estavam a fomentar um fervor identitário e uma hipersensibilidade a “apropriações culturais” absolutamente desproporcionada, pelo que o uso de dreadlocks e cornrows por brancos – famosos ou anónimos – passou a ser alvo de ataques sistemáticos.

[2016, San Francisco State University: uma afro-americana acusa um aluno branco de apropriação cultural por usar dreadlocks]

“O que é natural e fica bem é cada um usar o cabelo com que nasceu”

A genética do povo japonês e a sua longa história de isolamento determinaram que o seu cabelo seja invariavelmente negro e liso, o que contribui para que, aos olhos ocidentais, “os japoneses pareçam todos iguais”. Esta uniformidade capilar não seria algo que incomodasse um povo que privilegia o colectivo sobre o individual e não aprecia quem faz questão de se destacar do grupo . Porém, a cultura juvenil japonesa do nosso tempo viu nas possibilidades de manipulação do cabelo uma forma privilegiada de afirmação contra a pressão padronizadora e supressora da individualidade dos pais e da escola. Na maior parte das escolas do ensino básico e secundário, um aluno que não cumpra as estritas regras de vestuário e cabelo é alvo de uma repreensão e recambiado para casa – e no final de 2017 chegou aos tribunais da prefeitura de Osaka o caso de uma rapariga de 18 anos que, excepcionalmente, tinha como tom natural de cabelo o castanho e que, após anos a cumprir as instruções das direcções das escolas para o tingir regularmente de preto, acabou por rebelar-se contra a imposição.

Por reacção a esta pressão homogeneizadora, terminada a escola secundária, ocorre entre os jovens japoneses uma explosão de cores, ondulações, frisados, caracóis e madeixas, que tem a particularidade de ser tão exuberante, sofisticada e variada entre os rapazes como entre as raparigas. Seguindo o raciocínio que os afro-americanos aplicam aos dreadlocks, poderá então um japonês louro ser acusado de apropriação cultural por um sueco?

Ora, Francisco Bosco introduz na discussão da “apropriação cultural” uma nuance relevante: aquela “não depende de que a cultura lesada seja, originalmente, proprietária exclusiva dos bens simbólicos em questão. É de uma dinâmica de desigualdades que se trata, em que a parte da contribuição de uma cultura inferiorizada, por maior que seja […], não encontra correspondente justo nos modos de circulação social das formas culturais”. Ou seja, só se fala em “apropriação cultural” quando é exercida pela cultura dominante. Afirma Bosco que é na “articulação do capitalismo com o racismo que se produz […] o conceito de apropriação cultural”. Esta “designa o empuxo, tanto no sentido de um whitewashing das formas culturais de forte contribuição negra, quanto no de um protagonismo social branco, fazendo com que os negros não lucrem o quanto deveriam, nem simbólica nem materialmente, com as formas culturais em boa medida inventadas por eles”.

Estas considerações ajudam a compreender que os suecos não se incomodem com os japoneses louros e ruivos mas que os dreadlocks de Justin Bieber suscitem a irritação dos afro-americanos: quando os negros os usavam eram vistos pelos brancos como sinal de higiene duvidosa e pertença a um grupo étnico inferior, quando um miúdo branco, rico, famoso, promovido pela máquina de propaganda da indústria musical e apaparicado pelos media os usa os brancos vêem-nos como cool.

Porém, compreender um raciocínio ou uma lógica de actuação não é o mesmo que aceitá-lo como válido e legítimo: a verdade é que, como acima foi explicitado, a diversidade de ocorrência dos dreadlocks em diferentes culturas impede que possam ser vistos como “formas culturais de forte contribuição negra”. E mesmo admitindo que o fossem, que prejuízo objectivo, simbólico ou material, advém para os africanos e seus descendentes, de que um branco use dreadlocks? E em que medida é que uma hipotética interdição deste tipo de “apropriações culturais” contribuiria para o reconhecimento dos contributos culturais afro-americanos, para a valorização da imagem dos afro-americanos na sociedade, para a promoção da igualdade racial ou para reparar as injustiças sofridas no passado pelos negros às mãos dos brancos?

[O célebre anúncio de 1969 ao Restaurador Olex]

Caçadores de escalpes

É curioso constatar que enquanto alguns afro-americanos se indignam por os brancos usarem dreadlocks e cornrows, a apropriação pelos brancos de um outro corte de cabelo tradicionalmente associado a uma minoria oprimida não encontrou (até agora) contestação: o mohawk.

O corte de cabelo retira o seu nome da tribo índia dos Mohawk, embora nem todos os Mohawks usassem esse corte e cortes similares fossem frequentes entre outras tribos da Confederação Iroquesa (abrangendo o Nordeste dos EUA e o Sudeste do Canadá), como os Mahican/Mohican (moicanos, em português) e os Mohegan, e entre os Pawnee, do Oklahoma.

Retrato do chefe pawnee Sharitarish, por Charles Bird King, c. 1822

Na verdade, tal como os dreadlocks, o corte de cabelo que deixa um tufo central, mais ou menos longo e eriçado, e rapa os lados do crânio foi “descoberto” independentemente por vários povos sem qualquer relação entre si, como atestam artefactos da cultura pazyrik (tribos nómadas que floresceram na Sibéria, Mongólia e Cazaquistão entre os séculos VI e III a.C.), ou o “Homem de Clonycavan”, descoberto numa turfeira na Irlanda em 2003 e que terá morrido entre 392 e 201 a.C. (vale a pena mencionar que a crista de cabelo do “Homem de Clonycavan” era mantida erecta mediante um “gel” à base de óleos vegetais e resina de pinheiro originários da Europa meridional, o que atesta que 1) o penteado era um assunto de importância capital mesmo entre tribos “bárbaras” e que 2) a tão vilipendiada “globalização” não foi inventada pela ExxonMobil, Apple e Amazon).

Cavaleiro pazyrik, peça de feltro, c. 300 a.C.

Nos séculos seguintes, as cristas mohawk foram caindo em desuso nas Ilhas Britânicas, mas conheceram um revivalismo com o punk na década de 1970, sendo depois reconfiguradas por diversas sub-culturas juvenis – góticos, ravers, etc. Talvez por as reivindicações identitárias dos grupos “oprimidos” não terem então expressão, os descendentes dos Mohawk e Pawnees não deram sinal de incómodo pelo uso de mohawks por brancos – terá contribuído eventualmente para tal que, neste caso, os “apropriadores” pertençam a grupos de origens sociais modestas e que se afirmam contra a cultura dominante.

Já as referências aos povos índios nos nomes, logotipos e mascotes dos grandes clubes desportivos americanos têm vindo a ser contestadas desde a década de 1960, num movimento que subiu de tom no século XXI.

Logotipo dos Washington Redskins

Os principais alvos da contestação têm sido os Washington Redskins e os Kansas City Chiefs, clubes que disputam a National Football League (a “I Divisão” do futebol americano) e os Cleveland Indians e os Atlanta Braves, que disputam a Major League Baseball (a “I Divisão” do baseball), e o uso destes nomes e imagens é visto como sendo uma forma de perpetuar a visão estereotipada dos nativos americanos. “Redskin” (“pele-vermelha”) é visto hoje pelos nativos americanos como uma expressão com carga negativa comparável ao uso de “nigga” para designar os afro-americanos. É legítimo o seu uso dentro da comunidade, mas quando é alguém de fora a fazê-lo é visto como um termo insultuoso.

Chief Wahoo, mascote dos Cleveland Indians

É indiscutível que os nativos americanos têm imensas razões de queixa quanto à forma como foram tratados pelos europeus e seus descendentes e, no caso específico dos EUA, é indiscutível que, até há poucos anos, o Estado promoveu activamente o extermínio e a discriminação dos povos indígenas (ver Ainda há americanos na América?), mas é difícil perceber o que ganharão estes se os Washington Redskins mudarem de nome e logotipo.

Manifestação em Minneapolis, em 2014, contra o uso do nome e logotipo dos Washington Redskins. Vale a pena registar que nem todos os manifestantes têm o cabelo negro e liso característico dos ameríndios

Um dos problemas destes movimentos de protesto contra a apropriação cultural é que a sua sensibilidade se vai extremando e rapidamente degeneram numa lógica paranóica que descortina ofensas contra grupos oprimidos nas mais anódinas palavras, imagens e usos. No videoclip do YouTube abaixo, de Alice Phoebe Lou, um jovem e talentosa cantora sul-africana radicada em Berlim, um apreciador de música reparará na elegância da composição, no despojamento dos arranjos, na intensidade e agilidade da voz de Alice Phoebe Lou e na sua presença magnética, onde se misturam inocência e sabedoria.

[“Fiery heart, fiery mind”, de Alice Phoebe Lou, do EP Momentum (2014)]

Porém, os vigilantes da apropriação cultural passam por cima destes aspectos e fazem um exame condenatório: a pintura facial, a trança e o colar remetem para a cultura índia e Lou é branca e loura, e isso basta para que um “vigilante” se sinta autorizado a fazer um comentário ao videoclip advertindo a cantora, em tom paternalista, de que está a cometer “apropriação cultural”, que explica tratar-se de “uma dinâmica de poder em que os membros de uma comunidade dominante se apoderam de elementos da cultura de um povo que tem sido sistematicamente oprimido pelo grupo dominante”.

Aos espíritos animados pela ambição de reparar todas as injustiças do mundo, presentes e passadas, não ocorre quão absurdo é acusar uma sul-africana nascida em 1993 pela opressão histórica dos índios norte-americanos. E a fúria justiceira é tal que não se hesita em lançar acusações irreflectidas e destituídas de fundamento: numa resposta exemplarmente cordata, Alice Phoebe Lou explica que a pintura facial não tem inspiração índia – e, poderia ter acrescentado que, como os dreadlocks, os mohawks e as tatuagens, as pinturas faciais foram e são usadas por povos de todo o planeta e que terá sido mesmo praticada pelos Neanderthal – e que a linha cor-de-laranja que lhe sulca o rosto apenas pretende exprimir visualmente o conceito de “fiery heart” e que a pena que o “vigilante” identificara no pendente do colar era uma folha. De qualquer modo, tantos povos pelo mundo fora usam ou usaram penas como adorno que seria disparatado ver numa pena um vínculo aos índios norte-americanos.

Este é apenas um pequeno e relativamente inócuo exemplo do espírito inquisitorial, paranóico, totalitário e doentio que tomou conta do mundo e, em particular das redes (ditas) sociais. O que é ainda mais lamentável é que esta incessante busca de motivos para polémica e demanda de interdições e reparações seja feita em nome da nobre causa da defesa dos fracos e oprimidos.

Perante esta fúria justiceira, Francisco Bosco vê-se forçado a explicar o que deveria ser óbvio para todos: “A regra das culturas é a apropriação. O que faz com que surjam invenções culturais é a liberdade de apropriação. De contrário, o mundo seria completamente tradicional, com cada cultura fechada em si mesma, os sentidos preservados e inalterados para todo o sempre. Ora, isso é o contrário do mundo moderno, mundo de intensificação das trocas, dos cruzamentos culturais, da desprovincianização, do cosmopolitismo, da relativização dos costumes”.

Os donos do samba

Vale também a pena examinar a afirmação de que “os negros não lucram o quanto deveriam, nem simbólica nem materialmente, com as formas culturais em boa medida inventadas por eles”. Bosco dedica algumas páginas ao samba e cita a perspectiva da sua evolução expressa em Música popular: Um tema em debate, de José Ramos Tinhorão: o samba foi “fixado como gênero musical por compositores de camadas baixas da cidade, a partir de motivos ainda cultivados no fim do século XIX por negros oriundos da zona rural”, mas na década de 1930, o género, que originalmente tinha como base instrumentos de percussão, “passou ao domínio da classe média [branca], que o vestiu com orquestrações logo estereotipadas, e o lançou comercialmente como música de dança de salão”.

Roda de samba num morro do Rio de Janeiro, 1936

Segundo esta perspectiva, a apropriação do samba pelos brancos tornar-se-ia ainda mais completa com a “invenção” da bossa nova no final da década de 1950, que teria incorporado elementos jazzísticos no samba e lhe teria conferido características que permitiram que fosse mais facilmente assimilado por outras culturas e, assim, ser facilmente comercializada e exportada, já sem vínculos visíveis ou audíveis à sua matriz africana. Ou seja, estaríamos perante um caso em que “uma classe social dominante que se apropria da cultura das classes populares, transformando-a segundo seus valores de classe e monetizando o resultado” (Bosco). Por outras palavras, os brancos passam o tempo a roubar e desvirtuar as criações dos negros e ainda fazem dinheiro com isso.

Uma perspectiva análoga poderia ser aplicada ao jazz, nascido como meio de expressão dos negros e que foi apropriado pelos brancos, que o corromperam, “contaminando-o” com influências da música erudita europeia, e o reservaram à fruição das elites brancas. De banda sonora dos prostíbulos, bares e funerais da gente humilde de New Orleans, o jazz passou a ser uma experiência a ser desfrutada em aparelhagens de alta-fidelidade e nos mesmos auditórios requintados em que se escutam sinfonias de Mahler e quartetos de cordas de Brahms e onde os negros raramente põem pé.

A banda do cornetista Buddy Bolden (1877-1931), um dos pioneiros do jazz de New Orleans, c.1905

Até os executantes do jazz, que, nas primeiras décadas, eram quase todos afro-americanos de origens modestas e sem estudos, sofreram uma avassaladora mudança de perfil: hoje são maioritariamente brancos com estudos superiores. Parte deste “branqueamento” resultou de o jazz ter deixado de ser um fenómeno americano e de se ter implantado na Europa (e um pouco por todo o mundo) e de aí muito raramente encontrar adesão junto das comunidades de origem africana – veja-se o caso de Portugal, onde a presença de descendentes de africanos entre os praticantes de jazz é residual.

Todavia, o jazz não costuma suscitar acusações de “apropriação cultural”, talvez porque os ouvidos dos descendentes de africanos nos países ocidentais estejam virados para outro lado. Na Europa, como nos EUA, o meio expressão musical privilegiado para a afirmação da identidade africana é, de alguns anos a esta parte, o hip-hop, sobre o qual Bosco parece ter uma perspectiva desactualizada quando escreve que “o protagonismo cultural de uma forma largamente inventada pelos negros (o hip-hop) não se traduz em benefícios para as pessoas negras”. Bem, poderá não beneficiar as pessoas negras como um todo, mas beneficia seguramente os seus intérpretes: em 2017, a lista de rappers negros com fortuna estimada pela revista Forbes em mais de 100 milhões de dólares incluía Sean Combs (aliás Diddy, aliás Puff Daddy), Jay-Z, Dr. Dre, Master P, Kanye West, 50 Cent, Pharrell Williams, Lil Wayne, Snoop Dog, Ice Cube, Birdman e LL Cool J.

O uniforme dos opressores

Francisco Bosco deixa de fora da discussão sobre apropriação cultural dois dos seus aspectos mais paradoxais. Um deles é que, numa época em que se contesta o próprio conceito de propriedade intelectual e muitos (nomeadamente o Partido Pirata, nas suas várias declinações nacionais) pretendem que criações artísticas, literárias e musicais claramente definidas e com autores perfeitamente identificados e vivos, pertencem a todos, cresça a obsessão em reivindicar a exclusividade de certos grupos sobre penteados, vestuário e géneros musicais de contornos imprecisos e origem remota e nebulosa.

O outro paradoxo é que o uso por brancos de elementos que fazem (supostamente) parte da identidade africana seja visto como prejudicial à valorização da imagem dos africanos, mas nada se diga sobre a rejeição pelos dirigentes, altos funcionários e elite intelectual dos países africanos dos seus trajes e penteados tradicionais, em favor do fato e gravata (o “uniforme” do antigo opressor!) e de cortes de cabelo ocidentais, não só nas visitas ao estrangeiro e em fóruns internacionais como na sua actividade quotidiana nos seus próprios países.

António Guterres (3.º a contar da direita na 1.ª fila), com chefes de Estado e de Governo africanos, numa cimeira da União Africana, em 2017, em Addis Abeba

Psicologia do linchamento

Francisco Bosco dedica várias páginas à análise dos mecanismos do linchamento digital. Os alvos dos linchamentos, realça, são frequentemente “pessoas que pertencem ao mesmo espectro político daqueles que os atacam”, pois os adversários dos movimentos identitários assumem, logo à partida, “aquilo de que poderiam ser acusados” e, assim, “paradoxalmente, permanecem de fora do campo das humilhações”. Os que são “atacados por pessoas do próprio campo tendem a submeter-se à humilhação, porque reconhecem a legitimidade geral da perspectiva dos que os atacam, identificam-se com essa perspectiva, e assim não podem simplesmente mandá-los às favas, por não quererem perder o seu reconhecimento […] Assim, tendem a se desculpar, a admitir pelo menos em parte o seu erro, e ao mesmo tempo tentam se explicar, se justificar, reafirmar seu compromisso com os valores do grupo que os ataca”. Porém, as “desculpas reforçam o sentimento de superioridade moral dos linchadores […], portanto não fazem cessar linchamentos. Esses […] só acabam por exaustão, por já terem obtido prazer suficiente”.

“Prazer” pode parecer uma palavra deslocada neste contexto, mas na perspectiva de Bosco é mesmo disso que se trata: “Há uma dinâmica em curso de formação de laços de identificação grupal em larga escala, propiciada pelas redes digitais. Esses laços produzem grandes recompensas narcísicas, pois estabelecem um sistema de apoio e aprovação recíproca. Produzem certezas inabaláveis, pois o mesmo discurso é ratificado por milhares de pessoas. Atenuam a angústia do individualismo moderno, pois se produz uma sensação psicológica de pertença”.

“Há sem dúvida um gozo perverso nos linchamentos”, escreve Bosco, “autorizado pela crença de superioridade moral” e que “se sustenta por meio de premissas totalizantes, como ‘a vítima tem sempre razão’, que impedem as análises de casos particulares”.

A crença de superioridade moral “é fundada numa lógica maniqueísta que opõe dois grandes blocos supostamente homogéneos: o dos ‘com poder’ e o dos ‘sem poder’”.

O pelourinho de Charing Cross, Londres, numa gravura de 1809. Os pelourinhos estão remetidos ao estatuto de património histórico, pois a exposição dos prevaricadores à fúria da turba faz-se hoje noutras plataformas

Esta lógica justiceira não admite gradientes nem “a diversidade da realidade”: ou se está contra os racistas, os neo-colonialistas, os machistas, os violadores e os homofóbicos ou se está com eles. E se a “estrutura” – isto é, a sociedade – “tende a cometer injustiças machistas [e racistas e homofóbicas], é justo cometer eventuais injustiças” contra os que costumam estar na posição de poder. Conclui Bosco que estamos perante “uma concepção de justiça utilitarista que, como tal, não reconhece direitos individuais fundamentais, como a presunção de inocência” e que entende que a justiça para os grupos minoritários “deve se realizar às expensas dos direitos dos mais privilegiados”.