Com quatro milhões de habitantes é a região mais populosa da Ucrânia — tem mais habitantes do que sete Estados-membros da União Europeia (UE) —, possui a quinta maior cidade do país e quase 27 mil quilómetros quadrados. Donbass, perto da fronteira da Rússia, é composta por duas repúblicas que se querem ver livres do jugo da soberania de Kiev: Donetsk e Lugansk.
O Presidente russo declarou esta segunda-feira apoio à independência destas regiões, algo que viola os acordos de paz de Minsk assinados em 2015. Tendo em conta as posições de Kiev, da UE e da NATO, que já anunciaram que aqueles territórios são ucranianos, esta movimentação poderá espoletar o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, considerada, no seu todo, numa “terra antiga russa” por Putin.
Donetsk e Lugansk já tinham autoproclamado a independência da Ucrânia em 2014, aquando da entrada das tropas russas na Crimeia e no leste do país. Até agora, explica o Financial Times, as duas repúblicas têm recebido apoios financeiros e políticos da Rússia, sendo praticamente dependentes da influência de Moscovo. No entanto, a assinatura dos tratados de Minsk, em 2015, fez com que o Kremlin desistisse de apoiar a independência destes dois territórios (ou de anexá-los, como à Crimeia), convicção que se desfez com o discurso de Putin ao país esta segunda-feira.
No entanto, segundo o Presidente russo, foi a Ucrânia quem não quis “aplicar os acordos de Minsk”, acusando o país de não procurar uma “solução pacífica”. Putin foi ainda mais longe: acusou Kiev de levar a cabo um “genocídio”. “Há crianças e idosos a serem torturados”, denunciou, referindo que não há “fim à vista” para esta situação.
O motivo? Para entender a versão do chefe de Estado russo há que recordar a revolução ucraniana (Maidan), cujo resultado final foi a anexação da Crimeia. À data, a Ucrânia tinha um presidente pró-russo, Víktor Yanukovych, que rejeitou um acordo com a União Europeia e apostou no fortalecimento das relações com Moscovo. Desde novembro de 2013 que a revolta popular tomou conta das ruas e exigia a deposição do chefe de Estado, algo que acabou por se concretizar em fevereiro do ano seguinte.
Ora, Vladimir Putin disse que, desde aí, as aldeias da região têm sido constantemente “atacadas” por não reconhecerem o “golpe de Estado de 2014”. “A Rússia fez tudo o que podia para manter a integridade territorial da Ucrânia”, salientou o Presidente russo, afirmando depois que tinha sido “tudo em vão”. Isto porque os políticos ucranianos optaram pela via da “violência” e a militar: “Os governantes de Kiev têm de parar esta hostilidade e derramamento de sangue em Donbass”.
Trazendo para si a responsabilidade de proteger estes territórios, o Presidente russo deixou ainda uma ameaça. Se Kiev não parar com as “hostilidades” o “derramamento de sangue”, “qualquer consequência terá de pesar nas suas consequências”.
Donetsk e Lugansk: que repúblicas são estas?
É difícil dar uma definição às duas repúblicas, uma vez que há, no mesmo território, regiões que são controladas pelo governo de Kiev e outras pelo governo autoproclamado. Mas as duas reconheceram o russo como língua oficial, apesar de ainda haver populações que falam ucraniano. Além disso, a moeda maioritariamente usada é o rublo, tal como na Rússia, ainda que a hryvnia ucraniana seja também aceite.
Partilham também uma história em comum. Integradas no império russo durante séculos, foram, em 1922, integradas na República Soviética ucraniana, permanecendo sob hegemonia ucraniana após a queda da União Soviética, em 1991. Em termos de nacionalidade, segundo os censos ucranianos de 2001, 58,7% da população que vivia na época em Donetsk identificava-se como ucraniana, havendo, ainda assim, uma minoria considerável russa — 38,2%. Em Lugansk, as percentagens eram idênticas: 58% reconheciam-se enquanto cidadãos ucraniano e 39% como russo.
Geograficamente, a República Popular de Lugansk localiza-se exatamente na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia. Com 1,5 milhões de habitantes, a capital do território também se chama Lugansk. O líder, eleito em 2018 através de eleições — não reconhecidas pela comunidade internacional, nem pela própria Ucrânia —, é Leonid Pasechnik.
Já a República Popular de Donetsk localiza-se mais a oeste. À capital também se dá o nome de Donetsk, que é a quinta maior cidade ucraniana. O líder da região, desde 2018, é Denis Pushilin, que substituiu Alexander Vladimirovich Zakharchenko, que morreu numa explosão num café. Em entrevista ao canal de televisão canadiano CBC, o atual líder afirmou que “a Ucrânia, enquanto Estado, já não existe mais”. “A vasta maioria dos nossos residentes querem estar o mais próximo possível da Rússia.”
Economicamente, as duas repúblicas têm sofrido com o permanente estado de conflito desde 2014. Segundo uma sondagem citada pelo The Washington Post, 11,5% da população não tem dinheiro suficiente para comprar comida, enquanto mais de 54% assumiu que foi afetada diretamente pela guerra. São os cidadãos mais pobres (54%) e os mais jovens (59%) que dão mais importância ao salário que auferem do que propriamente ao país em que vivem. Contudo, os mais afetados pela contenda são os que manifestam uma opinião mais forte sobre se devem ter cidadania russa ou ucraniana.
Esta crise é, contudo, mais profunda do que aparenta. A Ucrânia tem tido dificuldades em prosperar desde a sua independência da União Soviética, principalmente nas áreas em que se concentravam vários setores industriais — tal como em Donbass, que tinha indústrias de carvão. De acordo com o The Washington Post, a estagnação económica teve um impacto negativo na vida das pessoas, algo que se acentuou com a guerra, e que levou potencialmente a um maior descontentamento com o governo central.
Porta de entrada para a Ucrânia?
Do lado ocidental e ucraniano, vê-se a declaração de independência das duas repúblicas com apreensão e preocupação. A procuradora-geral da Ucrânia já divulgou que o Estado ucraniano vai abrir um processo crime relacionado com as ações de Vladimir Putin para mudar as fronteiras do país. Irina Venediktov escreveu no Facebook que se viu forçada a agir depois do reconhecimento da independência das províncias separatistas ucranianas.
Ursula von der Leyen escreveu, na sua conta pessoal do Twitter, que o “reconhecimento de dois territórios separatistas na Ucrânia é uma violação flagrante do direito internacional, da integridade territorial da Ucrânia e dos acordos de Minsk”. À semelhança da presidente da Comissão Europeia, o Ocidente acusa a Rússia de violar princípios do direito internacional e pôr em causa a soberania e a integridade territorial ucraniana. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, também disse que a Rússia violou a carta fundadora da organização.
The recognition of the two separatist territories in #Ukraine is a blatant violation of international law, the territorial integrity of Ukraine and the #Minsk agreements.
The EU and its partners will react with unity, firmness and with determination in solidarity with Ukraine.
— Ursula von der Leyen (@vonderleyen) February 21, 2022
Contudo, os receios são ainda maiores. As autoridades de Kiev temem que a proclamação da independência possa ser um pretexto para uma invasão do resto de território ucraniano. Segundo o The New York Times, o reconhecimento dos territórios podem significar uma ocupação do exército russo nestas regiões — aliás, na noite desta segunda-feira, há relatos de que o exército russo já entrou em Donbass.
Esta movimentação é uma entrada em território reconhecido como ucraniano pela comunidade internacional e também por Kiev, sendo interpretada, assim, como uma invasão à Ucrânia. Adicionalmente, uma presença militar mais reforçada da Rússia já em solo ucraniano representa um perigo para o resto do país, uma vez que é mais fácil para Moscovo entrar em outras regiões do território vizinho, podendo ainda estacionar tropas e aproveitar as infraestruturas das duas repúblicas.
O regresso do Império Russo?
Foi uma das partes que mais ocupou o discurso desta segunda-feira de Putin: a História da Ucrânia, da União Soviética e do Império Russo. Para o Presidente russo, Lenine foi “o criador da Ucrânia”, criticando depois o derrube de estátuas do antigo líder em cidades ucranianas. Mas a Ucrânia não é só um “país vizinho”: “É uma parte inerente da História” russa, disse.
A questão que se coloca é se este raciocínio se pode aplicar a outros países que surgiram após a queda da União Soviética. Terá Putin como objetivo invadir países que foram ‘criados’ primeiro enquanto repúblicas da URSS? Territórios como a Moldávia, o Azerbaijão ou a Geórgia poderão ser atacados se o Presidente russo decidir que são “parte inerente da História”?
A URSS foi composta por 15 repúblicas, mas o Império russo, durante a altura dos czares, ia desde o que é hoje a Polónia até aos limites leste de hoje em dia da Rússia.