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Esta é a história, triste até à noite de sábado, de um jovem lisboeta minimamente simpatizante do Benfica que nunca comemorou a vitória do campeonato no Marquês de Pombal. O Benfica pode já ir na 37ª, mas para mim é a primeira vez. Não por falta de interesse ou curiosidade, nem que as inclinações clubísticas sejam outras. É que eu até amo o Benfica e tenho duas ou três idas à Luz, vividas com fervor, que o atestam (só não sou sócio, da mesma forma que não faço cartões de cliente em todas as lojas de que gosto). Simplesmente, nunca calhou desaguar no Marquês de Pombal para celebrar o fim do campeonato. Pois bem, deste ano não passou e até tive direito a aquecimento.
20h50. O courato da vitória
De repente, ir diretamente para o Marquês de Pombal não pareceu a melhor ideia de sempre. É como entrar, a frio e a seco, numa festa onde, ao que parece, já nem cerveja há. Logo veremos se as suspeitas têm fundamento, mas para já que comece o aquecimento. Onde? Nas imediações do Estádio da Luz, pois claro. Afinal, depois de uma breve reflexão, não achei completamente despropositado ir até ao primeiro epicentro da celebração benfiquista sem ter visto o jogo no estádio. Fui pelo convívio e não me arrependi.
E como não ter saudades daquela vida entre rulotes, sobretudo quando ainda está meio mundo à espera que a equipa erga a taça no relvado e se pode comer de tudo sem desesperar em filas. Eu cá, prefiro o balcão do Barlindo, onde há um senhor que nunca para de tirar imperiais e um aviso que diz “Cuidado, pode Salpicar” (a vírgula foi edição minha) à frente da estação dos fritos. A sandes de courato é, muito provavelmente, o petisco menos consensual do menu. Lamento. Para mim, aquele pedaço de gordura saturada com as extremidades crocantes nunca foi uma má opção. Reconfortante, diria, ainda por cima se vier bem temperado.
Nisto, os cânticos e as primeiras habilidades de motocross. Sempre foi uma das minhas coisas favoritas no Benfica: o cancioneiro. Principalmente, por ser diverso — o tema “Eu amo o Benfica” chega a ser uma malha eurovisiva, o “1904” está mais para hino de intervenção e descobri que até há uma versão de Tom Jobim. Há motores em esforço, porém me gusta la gasolina, logo está tudo bem. Quem passa de carro buzina, único motivo aparente para que não se corte de uma vez aquela estrada. Na maioria dos casos, é inglório — quem vai dentro dos carros anima-se imenso e acaba por não ter o retorno que merece do exterior, a não ser de um adepto suicida que se atravessa à frente da viatura. Não foi problemático.
Tirando um pai e um filho sem o sopro da vida, junto à rulote — estavam de cachecol do Benfica, mas será que vinham de uma consulta nos Lusíadas? — não há motivos para aborrecimento, sobretudo tudo quando um grupo amador de percussionistas começa a improvisar com um caixote do lixo, uma performance entre as batucadeiras de Madonna e os Stomp. O entusiasmo em torno do instrumento é tanto que parece que Luís Filipe Vieira lhes duplicou o prémio. “Deus Nosso Senhor permita que que este nível de euforia vá até ao fim da noite”, penso.
21h20. Fuego
Os primeiros fogos caseiros — todos vermelhos e brancos, à exceção de um azul que deve ter ido para o ar por engano. Poucos minutos depois, o primeiro very light. Sempre achei que o nome desta pirotecnia fazia muito pouco sentido. Apesar do Barlindo não ter Wi-Fi fui googlar sobre o tema. Foi um objeto popularizado por Edward Wilson Very, um oficial da marinha norte-americana, que viveu entre 1847 e 1910. Na altura, não servia para animar festas, só para sinalizar localizações em alto mar, mas pelo menos a origem do nome ficou esclarecida. Foram dados móveis bem empregues.
Lembro-me, entretanto, de que nem sempre fui o mais convicto dos benfiquistas. Acho que a isto se chama pôr a mão na consciência ou então fazer as pazes com o passado, porque houve uma em vez em que, por consideração à minha família sportinguista, pintei a cara de verde e fui ver o jogo em que o Sporting se sagrou campeão, em 2002, na Praça Sony, imagine-se. Era pequeno, não muito esclarecido, por isso perdoo-me, dando uma última dentada na sandes de courato e partindo para a segunda cerveja.
Há fumos vermelhos lindíssimos à medida que o pessoal começa a vir do estádio. Estou à espera de gente e os primeiros amigos a chegarem trazem bandeiras. Usamo-las no ar, acenamos a um cão de cachecol e ficamos de queixo caído com o gabarito da customização automóvel. Também vejo um carrinho de compras todo temático para o caso de a aplicação das trotinetes bloquear. A chapelaria é elevada a outro nível. Um dos exemplares é um boné com uma águia no topo. Os olhos acendem e as asas batem. Diria: cuidado, Ascot que na Luz já estão a usar pilhas.
23h07. Sem metro, mas com a adepta mistério
“Tive de tomar um calmante, já no último jogo ia falecendo”, diz uma adepta solta e de coração aberto. Não lhe arrancamos o nome, mas em contrapartida é um disco rígido cheio de memórias benfiquistas. Já perto do metro, a pensar em rumar ao Marquês, o resto da cerveja tem de ir de penálti. Ou se calhar não, o metro avariou. Quem o diz é a polícia, que está a mandar toda a gente dar meia volta. À partida foi avaria e agora é com o técnicos. Mal de nós se estiverem atracados a uma bifana com bacon extra do Barlindo, para não falar na cerveja.
Vale-me a benfiquista anónima que, na impossibilidade de experienciar a épica viagem de metro até ao centro, só falta estar munida de um dispositivo de realidade aumentada. “Já vivi com cada viagem. Uma vez ficou tudo às escuras e começou toda a gente a cantar. Foi assim entre o romântico e a possibilidade de nos assassinarem sem ninguém ver. Também já pusemos a carruagem a abanar”, conta ela. Chamo um Uber, o metro nunca mais reabre. Chama-se José, é do Barreiro e está a seis minutos. “Quem não está nem aí para a festa vai assim acabrunhado”, continua. Ela também vai para o Marquês. “Ainda sou do tempo em que íamos por impulso, não havia uma festa organizada. No primeiro do tetra [2014, pelas minhas contas] ainda fomos muito selvagens. O trânsito na rotunda não era cortado e houve um senhor que subiu à estátua e vestiu-lhe uma camisola do Benfica”, recorda. Soou tudo distante, tipo mundo pré energia elétrica. A adepta mistério segue o seu caminho, chega o José, o homem que me vai levar ao Marquês.
23h23. Do futebol ao hóquei, somos Benfica
Está tudo bem: o José é benfiquista. “Deixe-nos em cima da estátua”, mas não pegou. Diz que está tudo muito complicado e que o melhor é irmos por Campolide e ficarmos na Rua da Artilharia 1. “Num benfiquista confiamos”. José está a aproveitar a vitória do Benfica como pode, ou seja, a faturar. Quando chegar a casa, retrocede na emissão e vê as reportagens que foram transmitidas durante a noite. “E o Jonas que chorou antes de entrar. Acham que acabou?” — “Ali, só faltou um golo dele. o estádio tinha ido abaixo”, reage o condutor. Numa coisa, todos estão de acordo: fez muito pela equipa nas últimas épocas e, a retirar-se, de certeza que vai continuar a fazer parte da estrutura do clube, tal como aconteceu com Luisão e Rui Costa.
Alto, que afinal a estrutura não é consensual. “Aquilo também não é um asilo”, confidencia José. “É a Casa do Artista dos jogadores de futebol”, alguém no carro completa. Na necessidade de partir para um tema mais pacífico, chegamos aos atributos físicos de Rui Costa. Todos concordam que está enxuto e que a idade — 47 feitos este ano — lhe fez muito bem. Por outro lado, é outro dos nomes que fizeram pelo clube. Perfeito, tudo em sintonia outra vez.
Mas José esperou pela reta final da viagem para fazer uma revelação: “Sabem de uma coisa? Eu já apitei o Benfica muitas vezes.” Nisto, os passageiros congelaram. Afinal, fui conduzido por um ex-árbitro internacional de hóquei em patins e não sabia. “Apitou o Gaidão?” — apitou, sim senhor. “Estive quase para comprar uma casa à mulher dele” — para quem não sabe, Karen Gaidão, ex-mulher de Mário Jardel, é agente da Remax. “Ainda hoje apito o Filipe Gaidão nos veteranos”, esclarece. Fiquei no cruzamento da Artilharia 1 com a Engenheiro Duarte Pacheco. Desci até na direção do Marquês, vi uma tochada quase a rebentar com o vidros da entrada de um prédio e achei normal.
23h50. O campeão voltou, mas preferia estar no Ritz
Antes de sair de casa, vi-me ao espelho e achei que tinha conseguido uma espécie de look mister — calças de fato de treino, uma t-shirt daquelas que privilegiam o logótipo, ténis e um blusão de ganga folgadito. Duas das peças são Adidas, porque sei que é quem patrocina a equipa. Nisto, preciso de ir à casa de banho. E o Ritz aqui tão perto, que sonho. As filas são intermináveis, a polícia está a revistar toda a gente antes de entrar e, lá em baixo, há um palco todo xpto que aguarda a chegada da equipa. A festa está moderna, qualquer dia fazem disto um festival com passes de três dias e com a Ivete Sangalo a levantar poeira, na versão “Benfica, dá-me o 38”.
“Mas não há cerveja lá dentro, isso não te incomoda?”, ouço mesmo ao lado. Incomoda, de facto. Isto no tempo da adepta mistério é que era: uma festa de acesso livre para selvagens. E, se o objetivo é evitar tochadas, tenho a certeza que os mais intensos de espírito acabam por levá-las lá para dentro na mesma. Mas se me querem revistar, revistem, só não de deixem nesta fila a afunilar, à mercê dos suores alheios e de perfumes duvidosos (sinceramente, não sei qual dos dois é pior). Álcool nem vê-lo, só umas pessoas noutra das filas a esbracejarem com garrafas de vodca rasca nas mãos. Quando achei que não podia piorar, dá o hino do Benfica. Posso não ser o adepto mais ferrenho, mas custa ouvi-lo da fila, enquanto estou à espera de uma nesga para entrar. Às tantas percebo que não sei a letra de cor. Pus na cabeça que foi a última ve que tal coisa aconteceu. Até vou deixar o hino aqui para me obrigar a memorizar:
Sou do Benfica
Isso me envaidece
Tenho a genica
Que a qualquer engrandece
Sou de um clube lutador
Que na luta com fervor
Nunca encontrou rival
Neste nosso Portugal.
Ser benfiquista
É ter na alma a chama imensa
Que nos conquista
E leva à palma a luz intensa
Do sol, que lá no céu
Risonho vem beijar
Com orgulho muito seu
As camisolas berrantes
Que nos campos a vibrar
São papoilas saltitantes.
Entro às 00h36, muito pouco saltitante, depois de quase uma hora na fila. A vistoria foi só ao de leve. Para a próxima, alugo um quarto no Fenix. Chegar lá abaixo é impossível. Nem àquele banho de champanhe dado pelo Samaris vou ter direito. Entretanto parece haver um pequeno núcleo transformista — vejo um senhor de idade já avançada com uma peruca vermelha exuberante e, minutos depois, cruzo-me com uma rapariga disfarçada de Zé Manel Taxista. Fiquei impressionado.
A equipa chega por volta da 01h30 e, tal como calculei, encharcaram os adeptos em champanhe. Eu vi de longe, tal e qual como um benfiquista morno, a pender para o frio, merece. Os fumos coloridos e foguetinhos deixam aquele cheiro a bolo de anos no ar. Mas todos os males fossem esses. Se não estou em erro, estavam mais pessoas no Marquês de Pombal no que na Luz. Foi bonito de se ver, mesmo sem ter cumprido a expectativa de ver gente empoleirada em semáforos. O público responsável começa a abandonar e eu sigo-lhes o exemplo, ao mesmo tempo que o fogo de artifício irrompe sobre o Parque Eduardo VII. Nessa altura, passa ao meu lado um dos homens mais trôpegos que vi durante toda a noite. Abriu a boca para dizer: “Que classe”. Nisso, estamos de acordo.