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O que procuram os líderes de outros países que visitam Kiev? Representar o seu povo na manifestação de apoio ao país vítima da invasão? Ver de perto a destruição causada pela guerra? Sentir ao vivo empatia com as vítimas? Conhecer Zelensky, que se transformou num herói mundial? Reconhecer os serviços portugueses que continuaram a funcionar? Trazer ajuda? Discutir novas formas de ajuda? Todas elas, provavelmente.
O que espera Zelensky dos líderes de outros países que visitam Kiev? Agradecer a ajuda? Demonstrar o apoio internacional ao lado ucraniano? Pedir mais ajuda? Tudo um pouco, também.
Quase todos os objetivos de Costa e Zelensky foram atingidos nestas horas que o primeiro-ministro português passou em Kiev, exceto a questão fundamental das novas ajudas. Seria sempre um acordo difícil. Zelensky precisa de mais armas, Costa não tem grande margem, e soa sempre aquém. Zelensky quer que a Ucrânia seja aceite como candidata à UE já em Junho, Costa sabe que não é garantido que os 27 cheguem a um entendimento sobre isso.
É difícil argumentar com indisponibilidades financeiras e resistências institucionais de outros países — Zelensky, líder de um país em que todos os dias morrem militares e civis em bombardeamentos, acaba sempre com qualquer discussão, invocando que as vidas não têm preço.
Voltou a ser assim este sábado, no ponto mais importante da primeira visita de um primeiro-ministro português à Ucrânia. Mas houve um antes e um depois do encontro entre Costa e Zelensky.
A chegada de comboio num colete à prova de bala
A forma mais segura de viajar na Ucrânia ainda é de comboio e é por essa via que a maioria dos líderes tem chegado à capital ucraniana. O comboio especial de duas carruagens que transportou a comitiva de António Costa saiu da fronteira com a Polónia esta sexta ao fim da noite. Estava previsto chegar entre as 9h e as 10h de Kiev (menos duas horas em Lisboa), mas atrasou-se, comprometendo assim o resto da agenda.
O programa partilhado com os jornalistas era sigiloso por questões de segurança e foi feito um pedido expresso para que nada fosse divulgado antes de cada um dos pontos da agenda. Uma cautela do gabinete do primeiro-ministro, a contrastar com o anúncio feito pelo Presidente português, que divulgou na quarta-feira que se esperava que António Costa viesse à Ucrânia este fim-de-semana, contrariando assim a norma que tem sido seguida de não divulgar as datas destas visitas a Kiev. É suposto os líderes aparecerem de surpresa aos olhos do mundo, para diminuir o risco de bombardeamentos russos que coincidam com essas visitas, como sucedeu com o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.
Mais do que o que disse nas breves palavras à chegada, a manifestar o apoio à Ucrânia e a anunciar uma visita a uma das zonas mais afetadas pela guerra, sobressaiu o colete à prova de bala que António Costa envergava.
As pessoas que nem apanharam a roupa do estendal em Irpin
António Costa esteve em Irpin, palco de violentos confrontos em Março, bem perto da capital, a cerca de 25 minutos de carro da estação. Aqui morreram pelo menos 269 pessoas, sete mil ficaram sem casa, só 25 mil dos cem mil habitantes voltaram.
De mangas de camisa por baixo do colete à prova de bala, escoltado por militares armados, e rodeado por jornalistas, o primeiro-ministro português foi recebido por uma secretária do Conselho Municipal de Irpin, que lhe descreveu os horrores da guerra, numa praça rodeada por prédios destruídos, esventrados e incendiados.
Costa ia fazendo perguntas, para perceber se estavam a dar prioridade à reconstrução dos prédios residenciais ou dos serviços.
Em declarações aos jornalistas, admitiu que é mais intenso testemunhar ao vivo o que apenas tinha visto pelos órgãos de comunicação social: “Estou impressionado com a brutalidade do que aconteceu com as populações civis. Sabemos que a guerra é sempre dramática, mas a guerra tem regras. Aqui, já não estamos a falar de uma guerra normal, mas de atos verdadeiramente criminosos”.
No fim da volta ao largo, olhou para uma janela de um apartamento destruído ainda com a roupa estendida e impressionou-se novamente com este contraste entre os vestígios da vida quotidiana e um bombardeamento que muda tudo.
À despedida, chamou heróis aos membros da Força de Defesa Territorial e perguntou à tradutora como se dizia “obrigado” em ucraniano: “Diakuyu”.
Um deslize que Zelensky capitalizou, sobre o tempo da UE e o tempo da guerra
Houve sorrisos simpáticos de parte a parte na conferência de imprensa conjunta de Zelensky e Costa: à entrada na sala; a decidirem quem respondia primeiro (com Zelensky a dar a vez ao “convidado”, em dois temas que lhe interessavam a ele particularmente, apoio militar e à reconstrução; e à saída, quando tiveram de repetir o cumprimento final, para ficar bem filmado.
Houve também muitos agradecimentos e elogios de Zelensky a Portugal (“Nesta luta Portugal está do lado justo da história”); e de Costa a Zelensky (um líder que inspira o mundo e nos tem dado a todos grande exemplo de coragem) e aos ucranianos (“Persistência, determinação e coragem não lhes falta”).
Houve a novidade da proposta de apoiar a reconstrução de escolas e jardins de infância, em vez de patrocinar uma terra específica, como tem sido feito por outros países, dentro do modelo que tem sido proposto pelas autoridades ucranianas, que esperavam que Portugal ficasse responsável por ajudar a fazer renascer uma pequena parte da Ucrânia.
Houve o limite difícil de superar a ajuda militar que Portugal pode oferecer, e que ficaria sempre aquém do que precisaria um país em guerra contra a Rússia, mas mesmo assim Costa disse que tomou notas e ia ver a disponibilidade, embora mais tarde tenha dito aos jornalistas portugueses: “Não somos os Estados Unidos”.
“Portugal do lado certo”, mas não ao ritmo que Zelensky gostaria
E houve a questão europeia. Costa mostrou-se empenhado em contribuir para o agravamento das sanções contra a Rússia, para a Europa deixar de lhe comprar gás e parar de financiar a guerra; pareceu voluntarioso na aceitação da candidatura da Ucrânia à União Europeia já neste Conselho Europeu de Junho, disponibilizou apoio técnico aos ucranianos para o acompanhamento desse processo, mas teve o que pode ser visto agora como um pequeno deslize, ao referir que Portugal teve de esperar nove anos até ver formalizada a sua adesão à CEE.
Zelensky diria pouco depois que não aceita comparações entre a Ucrânia e os outros países que têm de esperar muito tempo, porque a Ucrânia não perde só tempo, também perde vidas entretanto, enquanto a guerra continuar.
Os encontros ocultos e o pacote de 250 milhões de euros em ajudas
Acabou por ser uma parte oculta da agenda, ao não ser permitida a presença de jornalistas, por razões de segurança, nos encontros de Costa com o primeiro-ministro ucraniano, Denys Shmygal, e com o líder do parlamento.
Soube-se depois que no encontro com o seu homólogo ucraniano foi formalizado o apoio financeiro ao país no valor de 250 milhões de euros. Cem milhões através do FMI ou da União Europeia. Os outros 150 milhões em três prestações anuais de 50 milhões. Não ficou claro exatamente o destino destas verbas: “Visa financiar as necessidades do Orçamento ucraniano, portanto, não se destina a nada em especial”, declarou o primeiro-ministro aos jornalistas ao final da tarde.
Nessa conferência de imprensa com os jornalistas portugueses, Costa não quis dizer se recomendaria uma vinda a Kiev aos deputados do PCP, preferindo frisar que não se trata de turismo, e desvendou que o Presidente Zelensky tinha feito um convite ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, para também se deslocar à capital ucraniana.
A condecoração ao funcionário que manteve a embaixada aberta
O último momento oficial da visita de António Costa foi a ida à embaixada, no terceiro andar de um prédio de Kiev, para assinalar o regresso do embaixador António Alves Machado ao posto, e condecorar um funcionário com 25 anos de serviço: Andryi Putilovsky, técnico e contabilista, ajudou a retirar da Ucrânia muitos portugueses nos primeiros dias da guerra.
O papel do funcionário nesses dias difíceis foi elogiado pelo embaixador e pelo primeiro-ministro, que o condecorou com a Ordem da Liberdade. Andryi Putilovsky emocionou-se quando puxou de um papel para ler um pequeno discurso: “O pessoal desta embaixada é a minha segunda família e Portugal tornou-se a minha segunda pátria”.