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Dos populismos à distopia de Margaret Atwood: estes são os livros que mais gostámos de ler em 2019

Nos livros, 2019 ficou marcado pelo regresso de obras esquecidas e por nomes importantes que tinham sido atirados para a última prateleira — e, claro, por novidades. Estas são as nossas escolhas.

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Na literatura, 2019 parece ter sido o ano do regresso dos esquecidos. Além de uma nova edição em Portugal de Grande Sertão: Veredas, a grande obra-prima do brasileiro João Guimarães Rosa, apareceram no mercado editorial português obras de Bruno Schulz e Antonin Artaud. Guimarães Rosa e Schulz foram os nomes mais consensuais das escolhas deste ano dos jornalistas e colaboradores do Observador, cujas preferências acabaram por recair, de uma maneira geral, sobre obras de não-ficção dos mais variados temas, desde a história de arte à infografia, passando pelas aventuras de David Attenborough. Duas biografias de músicos e compositores convenceram — a de Leonard Cohen, publicada pela Tinta-da-China, e a de David Bowie, pela Nuvem de Tinta.

Este foi também o ano do regresso de Margaret Atwood ao mundo distópico de Gilead. The Testaments, a muito aguardada sequela de The Handmaid’s Tale, era um dos lançamentos mais aguardados de 2019 e esteve várias semanas no número 1 do top de vendas do Reino Unido. Por enquanto, só se encontra disponível em inglês (a edição portuguesa só sai para o ano). Entre as escolhas literárias de 2019, é ainda possível encontrar dicionários, enciclopédias, contos, romances, poesia e tantas outras coisas, em português, inglês e francês, que o melhor é mesmo ler.

Carlos Maria Bobone

Dictionnaire des populismes
Olivier Dard (org.)
Éditions du Cerf

Um trabalho colossal, de mais de 1.000 páginas, em que são estudados quase todos os movimentos políticos com mais apoio popular do que boa imprensa. Dos movimentos contemporâneos ao Carlismo, cada movimento é analisado com uma seriedade que permite perceber a pouca consistência do tão afamado conceito de “populismo”.

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Quinas e Castelos: Sinais de Portugal
Miguel Metelo de Seixas
Fundação Francisco Manuel dos Santos

É provavelmente o livro mais importante que os estudos heráldicos tiveram nos últimos anos. Não é apenas rigoroso do ponto de vista técnico ou exaustivo nas referências heráldicas. É dos poucos livros que percebe o papel da heráldica na construção da imagem dos países e a sua importância como eficaz veículo de transmissão de ideias.

A Campanha do Cuanhama – Sul de Angola – 1915-1916
António Cabral
Tribuna da História

É um lugar comum da nossa História a ideia que Portugal entrou na primeira guerra mundial para proteger as colónias; no entanto, pouca literatura recente se produziu sobre as campanhas de defesa do ultramar propriamente ditas. Este livro parte do arquivo de um tenente de Cavalaria, Roque d’Aguiar, para nos dar um relato interessante sobre as operações, a vida militar e a vida no Império Português no princípio do século.

O Apelo da Tribo
Mario Vargas Llosa
Quetzal

Não será a introdução mais profunda, do ponto de vista filosófico, económico ou político, às obras de Adam Smith ou Ortega y Gasset, por exemplo; mas lê-se com prazer, Vargas Llosa capta bem o “ae de família” entre os diferentes pensadores e pinta-os com um gosto por um mundo perdido que tem o seu encanto.

Joana Emídio Marques

Sanatório Sob o Signo da Clepsidra
Bruno Schulz
Edições do Tédio

Que faz aqui um obscuro judeu polaco, uma criatura menor, um escritor de contos sobre tios dementes e álbuns de selos e lojas de tecido? Baixo, curvado, feio, protegido por um oficial da Gespato no gueto de Drohobych e depois fuzilado por outro, em 1942. Um traste segundo a mentalidade que vigorava na Europa de então. Porém, quando lemos aquilo que escreveu, acreditamos que há, no mundo, aqueles que foram tocados pelo milagre. Bruno Schultz pertence àquela constelação de génios obscuros que só o tempo e a persistência de alguns em ler nas entrelinhas das sombras pode salvar, como Kafka, Walter Benjamin, Robert Walser, Artaud, Pessoa. Entre nós, Schultz  foi publicado pela &etc, em 1983 (Tratado dos Manequins ou o Segundo Génesis). Em 1987, a Assírio & Alvim publicou As Lojas de Canela. Foi portanto preciso esperar mais de 30 anos para ler a restante obra do escritor e desenhador polaco, e podemos agradecer às Edições do Tédio por este Sanatório Sob o Signo de Clepsidra. Um conjunto de treze contos vertidos para português a partir do polaco por Henryk Siewierski, ao qual se junta um ensaio sobre a força criadora e mítica da palavra, intitulado “A Mitificação da Realidade”, um texto de Patrícia Guerreiro Nunes e ainda um texto sobre os desenhos de Schultz da autoria de Ricardo Castro. Há quem não suporte a força da tristeza que há nestes contos, há quem sucumba à sufocação, à náusea, deste onirismo pesadélico. Se Einstein tiver razão e existir uma quarta dimensão espacio-temporal, Bruno Schultz descobriu como contá-la.

Para Acabar com o Juízo de Deus seguido de O Teatro da Crueldade
Antonin Artaud
VS

2019  foi um ano bom para a literatura em Portugal, que nasceu ou renasceu fora dos circuitos mainstream, com várias editoras a escreverem a história da literatura que se vai contar daqui a uns anos. O caso das obras de Antonin Artaud é paradigmático: no ano em que os direitos de autor se tornaram públicos, saíram por cá três livros do génio louco, que tantos execram e tantos veneram: pela VS saiu o famoso texto Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus (traduzido pela poeta Luiza Neto Jorge) e Teatro da Crueldade; pela Maldoror saiu  O Teatro e o seu Duplo, e pela Flop uma nova tradução de Para acabar de vez com o juízo de Deus e outros textos finais (1946-1948). Artaud, diagnosticado com esquizofrenia, passou parte da sua vida em internamentos psiquiátricos, sofreu, como acontece a muitos doentes mentais, uma deterioração da linguagem que levou à invenção de novas palavras para se fazer entender: as glossolalias, os gritos e tudo isso que ele trouxe para a sua obra teatral, fazendo dela um caso singular, pois poucos doentes mentais conseguem escrever sobre os seus delírios. Artaud pertenceu ao grupo Surrealista de Andre Breton, foi encenador e ator, nomeadamente no filme “A Paixão de Joana D’Arc”, de Carl Dreyer.

Grande Sertão: Veredas
Guimarães Rosa
Companhia das Letras

Grande Sertão: Veredas é uma das obras-primas do século XX, em qualquer língua. João Guimarães Rosa, como Machado de Assis, Raduan Nassar ou Clarice Lispector, merece ser amado e conhecido como um dos génios da língua portuguesa. Depois de estar esgotada há muitos anos, a obra foi agora disponibilizada pela Companhia das Letras. De um ponto de vista literário, é uma obra épica (talvez a épica possível em tempos modernos) contada no seu reverso. E, como toda a épica, é também um exercício sobre a memória. Estruturalmente, é um longo monólogo (600 páginas) dirigido a um ouvinte (o autor? o leitor?) a quem os dilemas, contradições e opostos complementares vão sendo apresentados. Do ponto de vista da linguagem, Guimarães Rosa articula arcaísmos com inovações de palavras (e teve uma enorme influência em escritores africanos, como Luandino Vieira e Mia Couto). É, portanto, uma obra épica sobre metamorfoses  e aprendizagem. Ou seja: travessias.

João Pedro Vala

Grande Sertão: Veredas
Guimarães Rosa
Companhia das Letras

Grande Sertão: Veredas, que estava esgotado em Portugal há já vários anos, disputa, na minha opinião, com Memórias Póstumas de Brás Cubas o título de melhor romance jamais escrito em língua portuguesa. Ver as editoras em Portugal suprimir lacunas gritantes deste género (e, sob este ponto de vista, importa louvar, por exemplo, a publicação por parte da E-Primatur das ficções curtas completas de H.G. Wells, Melville ou o trabalho, ainda tímido, que a Relógio d’Água tem vindo a fazer com as obras de Balzac) é, por isso, motivo de enorme alegria.

“Grande Sertão: Veredas”: o “monstro” das trevas sertanejas de Guimarães Rosa

Não Te Esqueças de Ser Feliz
Pierre Hadot
Relógio d’Água

Se só puder ler um livro de auto-ajuda na vida, leia este estudo de Pierre Hadot sobre Goethe, onde Hadot, já perto do fim da sua vida, nos mostra que a felicidade depende apenas de encontrar a forma certa de encarar a trivialidade e a banalidade do mundo. Se só puder ler dois livros de auto-ajuda na vida, leia este estudo de Pierre Hadot sobre Goethe duas vezes.

I’m Your Man: A Vida de Leonard Cohen 
Sylvie Simmons
Tinta-da-China

Leonard Cohen conseguiu a proeza de lançar um dos álbuns do ano de 2019 tendo morrido em 2016. Quem tiver lido a biografia de Cohen escrita por Sylvie Simmons não ficará impressionado com tamanho feito. Afinal, Cohen viveu oitenta e dois anos a tentar olhar a morte de frente e a desvendar os seus mistérios a partir de fora. Não conseguiu, mas poucos terão chegado tão perto.

O Combate
Norman Mailer
Dom Quixote

O livro perfeito para dar àquele seu amigo que passa o tempo a chateá-lo por perder demasiado tempo a assistir a eventos desportivos em vez de “despender” (é normalmente essa a palavra que estes amigos irritantes usam) os seus serões pacatamente a ler livros junto a uma fogueira. Norman Mailer vence os intelectuais elitistas por KO enquanto trata com reverência e deslumbramento o combate que opôs dois dos maiores génios da história do desporto, Muhammad Ali e George Foreman.

Sanatório Sob o Signo da Clepsidra
Bruno Schulz
Edições do Tédio

Bruno Schulz acreditava que a realidade é apenas uma sombra da palavra em vez de ser a palavra a ser a sombra da realidade. Ler Sanatório Sob o Signo da Clepsidra é talvez o melhor remédio possível para deixarmos de ver o mundo como um aglomerado de prédios, transeuntes e empresas e passarmos a ver nele mistério, rostos e, se tivermos sorte, beleza.

José Carlos Fernandes

History of Information Graphics
Sandra Rendgen e Julius Wiedemann
Taschen

É o quinto dos sumptuosos livros de grande formato (25 x 38 cm) que a Taschen tem vindo a publicar sobre infografia — vale a pena tomar nota dos anteriores: Information Graphics (2011), National Geographics Infographics (2016), Understanding the World: The Atlas of Infographics (2014) e Food & Drink Infographics (2018) –, e não só é o mais fascinante deles, como é a mais importante obra no domínio da apresentação gráfica de informação desde o seminal The Visual Display of Quantitative Information (1983), de Edward R. Tufte.

O termo “infografia” é recente no vocabulário português corrente, mas o conceito tem pelo menos um milénio — os exemplos mais antigos documentados no livro datam do século XI. O engenho dos “infografistas” é inesgotável e o escopo dos assuntos é imenso: da genealogia de Cristo à teia global urdida por uma empresa especializada em lavagem de dinheiro, passando pela carta de ventos alísios do Atlântico, as armas empregues por mulheres em “casos de polícia” registados em Chicago c.1900, um mapa dos naufrágios e acidentes marítimos na costa francesa em 1891 e por um diagrama com as vias da salvação e da danação (válido para a eternidade, presume-se). Com o cosmos nele condensado, não admira que o livro pese quase quatro quilos.

História do Mundo em 12 Mapas
Jerry Brotton
Edições 70

Este livro tem pontos de contacto com History of Information Graphics, mas não só Brotton se cinge a um tipo particular de “infografia” — o mapa –, como, em vez de tentar uma panorâmica abrangente, escolhe apenas uma dúzia de mapas, surgidos entre 150 d.C. e o presente, que são, no seu entender, pontos de viragem na história da cartografia e da perceção do mundo. No cerne do livro está a ideia de que os mapas “resultam das ideias e crenças que os influenciaram” mas que, reciprocamente, moldam a perspetiva de quem olha o mundo através deles.

The Illustrator. 100 Best Around the World
Steven Heller e Julius Widermann (ed.)
Taschen

A última compilação de 100 ilustradores relevantes do nosso tempo organizada por Heller e Wiedemann datava de 2013 e este novo volume — com número similar de páginas (680) e um formato um pouco mais manuseável (21 x 32 cm e “apenas” 3,4 Kg) — cobre ilustrações publicadas entre 2016 e 2018, critério que não deixa de fora veteranos que continuam na linha da frente, como Brad Holland ou Ralph Steadman. Como no volume anterior, cada seleção de obras de um artista é precedida por uma breve biografia e autorretrato.

Alteração Primata. Como o mundo que criámos nos está a mudar
Vybarr Cregan-Reid
Clube do Autor

O mundo e o estilo de vida hoje dominantes no mundo desenvolvido (e também nas zonas urbanas das regiões menos desenvolvidas) impõe-nos solicitações físicas tão diferentes daquelas para que o corpo do que o Homo sapiens foi “concebido” que tem promovido um progressivo alastramento de patologias desconhecidas dos nossos antepassados. Cregan-Reid oferece perspetivas refrescantes sobre assuntos tão diversos quanto dietas alimentares, pés chatos, cáries dentárias, sapatos, joelhos valgos e cadeiras (mantenha as últimas à distância: elas querem matar-nos devagarinho e no meio de sofrimentos atrozes).

A cadeira e outros grandes inimigos da humanidade: o que estamos a fazer à nossa saúde?

A Era dos Muros. Como as barreira entre nações estão a mudar o nosso mundo
Tim Marshall
Edições Desassossego

O tema do livro está no centro do debate político internacional e, em particular, do europeu: um pouco por todo o lado, põem-se em causa os benefícios da globalização e da abolição de fronteiras e renascem velhos fervores nacionalistas. As migrações têm sido uma constante na história da Humanidade, mas a rapidez e facilidade com que hoje se processam alarma quem vê a sua vizinhança ficar irreconhecível no período de uma geração, ao ser “invadida” por “estrangeiros” com hábitos e linguagens que lhes são alheias — a resposta tem sido o voto em partidos e candidatos que prometem erguer muros para manter os forasteiros à distância e preservar a pureza da comunidade. Marshall tem o mérito de proporcionar uma visão equilibrada, que considera as razões de todos os envolvidos.

Nuno Costa Santos

Em Tudo Havia Beleza
Manuel Vilas
Alfaguara

Um livro potentíssimo, com evidente âncora autobiográfica, que se inaugura com a declaração da impotência da literatura: “Oxalá fosse possível medir a dor humana com números claros e não com palavras incertas”. E o que se lê neste volume de 400 páginas é uma investigação pessoal, contingente, de dores várias, desde as do divórcio às do alcoolismo, sendo que as mais importantes são as dores do luto familiar. O modo duríssimo, comovente, construído com palavras amoladas, como o autor conta o seu relacionamento com a morte dos pais é o que mais fica. E frases desconcertantes na sua candura como “os meus pais terem sido tão bonitos é o melhor que me aconteceu na vida”. E outras,  tão verdadeiras: “Todo o homem acaba, mais dia menos dia, por enfrentar a insignificância da sua passagem pelo mundo. Há seres humanos capazes de o suportar”. Vilas não consegue. E por isso escreve com destemor e nervo.

A Mulher do Meio
Ivone Mendes da Silva
Língua Morta

A atitude fundadora deste livro, feito de um conjunto de pequenos textos, está aqui: “Não sei se a linguagem e as suas representações podem salvar alguém de alguma coisa mas talvez só por elas eu tenho descoberto o meu lugar no mundo”. É a partir desta consciência que esta narradora — a própria autora? — misantropa descreve, a partir das notas do seu caderno ambulante, os seus dias arrastados, as pessoas-personagens que habitam o café ao qual vai todos os dias, o seu aborrecimento, a sua aversão a colegas de trabalho e à vizinhança, a sua educação literária, a sua capacidade para engenhar frases poéticas cruas, os seus remates que remetem para gestos do quotidiano. Não é bem verdade o que diz numa das entradas: “Construo laboriosamente um léxico para a banalidade e dele me sustenho”. Mas de vez em quando são evocados anjos. A contradição segue por aqui, sem remorso. Num dos textos recusa-se a metáfora, noutro lê-se este achado metafórico: “O café é um navio silencioso. Sulca o princípio da tarde sem outro rumor para além da televisão onde alguém canta em surdina uma canção bonita”. Um livro do desassossego com voz própria que acrescenta ao que se publica por estas bandas.

Alexandrina, Como Era. Poesia Completa
J.H. Santos Barros
Imprensa Nacional – Casa da Moeda

A Imprensa Nacional decidiu, muito bem, editar a poesia completa de J.H.Santos Barros (Angra do Heroísmo, 1946), autor de muitas qualidades cujo percurso literário diverso foi interrompido por uma morte prematura. E sobre o que escreve o autor que até aqui só era nomeado entre alguns escritores e frequentadores de alfarrabistas e escolheu, a partir de certa altura, o verso longo e os comboios do surrealismo? Sobre a humidade insular e sobre a outra humidade, a que se entranha nas almas como uma doença. Sobre o sexo, aquele de que se faz a vida e é varrido para lugares distantes das artes literárias, a sua experiência na Guerra Colonial, a família e os pequenos rituais de regresso à sua ilha. Sobre a desilusão com a política que prometeu amanhãs e sucumbiu a todas as ganâncias. À medida que se avança no livro a destreza torna-se mais nítida. “Fazer Versos Dói” é um poema canónico e, no final, a virtude de aguentar o poema longo diz muito da armadura excepcional deste autor.

Fui ao Mar buscar Laranjas. Poesia Reunida
Pedro da Silveira
Instituto Açoriano de Cultura

Mais um açoriano nesta lista traçada por um açoriano — e talvez por isso mais atento ao que de melhor foi e é escrito por autores de um território ainda distante, entre a Europa e a América, que pouca gente conhece para além do postal e das notícias do mau tempo. Podemos nesta edição, Fui ao Mar buscar Laranjas. Poesia Reunida, encontrar toda a obra poética e o inédito “Ossos na Areia”, da autoria do florentino Pedro da Silveira (1922-2003). Dos poemas definidores da identidade açoriana, banhada em isolamento e emigração, de “A Ilha e o Mundo”, “(…) olhos de fome a adivinhar-lhe à proa/Califórnias perdidas de abundância (…)”, até aos últimos poemas, com um balanço de travo autoirónico, a fazer lembrar “Respiração Assistida”, de Fernando Assis Pacheco. Como em “Acabado, Mas Não Tanto”: “Agora restam-me só dois dentes/e a vista já não é o que antes era;/às vezes sofro de azias e náuseas/ e vêm dias, como hoje, em que nem reparo/ nas mulheres em flor que passam a meu lado”.

Com Navalhas e Navios
Urbano Bettencourt
Companhia das Ilhas

Numa leitura da poesia reunida (1972-2012) de Urbano Bettencourt, são capturados os temas que marcam a sua poética: a ilha (todos os seus elementos humanos, físicos e simbólicos), a família (um dos primeiros poemas do livro é “A meu pai, construtor de barcos”), a Guerra Colonial (lancinantes os poemas de “Remuniciar o tempo”  e “África Frente e Verso”), o diálogo com autores como Antero de Quental e Roberto de Mesquita, a conversa com os seus (“De Luz e Sombras”, dedicado a uma filha, arrancando deste modo: “Talvez não saiba dizer-te como doíam/os meus catorze anos”), a afinidade com lugares como Cabo Verde. Os olhares múltiplos de Urbano estão todos aqui: dos mais, digamos, sérios aos mais irónicos. O domínio da arte literária nas suas diversas modalidades é um nítido consórcio de muitas leituras e talento. Ao verso apurado junta-se uma vocação para o jogo de palavras. E para o gozo puro, como em “Poema Por Receita”, apetitoso disperso aqui incluído.

Rita Cipriano

Frankissstein: Uma História de Amor
Jeanette Winterson
Elsinore

Frankissstein: Uma História de Amor é mais ou menos um remake de Frankenstein. E digo “mais ou menos” porque chamar-lhe apenas isso é redutor. Partindo da vida trágica de Mary Shelley e da história da criação do seu monstro em 1816, o “ano sem verão”, o romance da inglesa Jeanette Winterson (um dos nomeados para o Booker Prize de 2019) apresenta, de forma inteligente e desafiante, as mais recentes descobertas na área da Inteligência Artificial e faz-nos a pensar sobre elas e sobre o mundo (pós-Brexit, de Bolsonaro e Trump) em que estão a acontecer. Pelo meio, há uma história de amor entre um médico transgénero e um misterioso investigador que acaba quase tão mal como a vida amorosa da própria Mary Shelley. Tudo para nos colocar as perguntas certas na cabeça: a onde nos levará a tecnologia? O que faz de nós humanos?

The Testaments
Margaret Atwood
Vintage

Um dos vencedores do Booker Prize de 2019, The Testaments é a tão aguardada sequela de The Handmaid’s Tale. O novo romance de Margaret Atwood começa 15 anos depois do final do seu antecessor e segue a história de três mulheres com idades e percursos diferentes. Viciante e escrito com mestria, The Testaments está, contudo, a anos luz de The Handmaid’s Tale. As características que tornam o romance anterior tão interessante, como a subtileza com que a realidade que envolve Offred é desvendada, não podem ser encontradas aqui; em termos de temática, não oferece nada de novo, embora responda às questões que ficaram em aberto em The Handmaid’s Tale e que os fãs foram colocando à autora ao longo dos anos. Isso não tira, porém, força à sua mensagem — nas palavras da própria Atwood, The Testaments pretende ser um aviso para que certas escolhas não sejam feitas, para que determinado caminho não seja tomado. Em tempos como estes, avisos destes nunca são demais.

Depois de “The Handmaid’s Tale”, Margaret Atwood voltou para avisar: o perigo ainda não passou

Good Will Come From The Sea
Christos Ikonomou
Archipelago Books

Digo isto sem qualquer exagero: Good Will Come From The Sea foi o melhor livro que li em 2019. A dureza dos contos de Christos Ikonomou, nome importante da literatura grega contemporânea, contrasta com a beleza das histórias (e da linguagem!) das suas personagens, com uma vivência marcada pela crise económica que as deixou, de uma maneira ou de outra, sem nada. Despidos de tudo, mudam-se para uma ilha à procura de melhores condições de vida, mas acabam por se deparar com os mesmos problemas que existiam no continente. Perdidos, neles próprios e uns dos outros, os atenienses que preenchem as quatro histórias de Good Will Come From The Sea falham no que é essencial — uma razão capaz de os unir.

Christos Ikonomou: “Os escritores de ficção curta não têm segundas oportunidades, têm de fazer tudo bem à primeira tentativa”

Mapas
John Freeman
Tinta-da-China

Depois de ter escrito o último poema aos 19 anos de idade, John Freeman decidiu colocar as ambições literárias. Crítico literário e editor da Granta, a prestigiada revista literária publicada no Reino Unido, entre 2009 e 2013, é justo dizer que a carreira do norte-americano se construiu com base no trabalho dos outros. Isso mudou ligeiramente quando teve de lidar com a doença prolongada da mãe (que tinha Alzheimer e Parkinson) e regressou de forma muito espontânea ao lugar que tinha abandonado na juventude — o da poesia. O primeiro livro de poemas de Freeman, Mapas, é, assim, uma reação à doença e morte da mãe, uma dor cartografada a partir de lugares marcados pela sua ausência. Mas é também um retrato de um tempo onde o medo se esconde em cada esquina. Tudo isto é transmitido através da mais bela linguagem e da empatia que só a boa literatura parece conseguir oferecer.

John Freeman: “Escrevo para a minha mãe, para a recordar e para falar com ela”

As Trevas e Outros Contos
Leonid Andréev
Antígona

O medo, a loucura, a violência, a hipocrisia e a morte. São estes os temas tratados pelo russo Leonid Andréev nos contos reunidos em As Trevas e Outros Contos. O livro é como que um resumo do que há de mais negro na condição humana, mas as personagens de Andréev não são monstros porque, no meio da escuridão, o autor lembrou-se de deixar a janela aberta para que a luz pudesse entrar. O bombista, o governador ou o apóstolo feio, cuja análise psicológica tornam o escritor num justo herdeiro de Dostoiévski, autor que muito admirava, não são verdadeiramente bons mas também não são verdadeiramente maus — são, acima de tudo, verdadeiros.

Vasco Rosa

O Gigante da Tapada: Campos Rodrigues (1836-1919) e o Observatório Astronómico de Lisboa
Pedro M. P. Raposo
Imprensa da Universidade de Lisboa

Um dos primeiros títulos da muito promissora Imprensa da Universidade de Lisboa, dedicado a uma das maiores instituições científicas do país e aos seus principais protagonistas. Uma história a conhecer, sem qualquer dúvida. O autor, que é curador e diretor de coleções no Planetário Adler, em Chicago, fez pesquisa profunda e erudita e — caso raro em académicos — escreve bem.

Aventuras de Um Jovem Naturalista. As expedições zoológicas
David Attenborough
Temas e Debates

Leitura deliciosa dos relatos deste extraordinário homem em início de carreira na BBC, nos anos 1950. A palavra “aventuras” não é excessiva, e o registo promocional no topo da capa (“completamente cativante”, Daily Telegraph) também não. Attenborough é sempre Attenborough: lê-lo é quase vê-lo.

Bowie: uma biografia
María Hesse e Fran Ruiz
Nuvem de Tinta

Autores nascidos em 1980 e 1981 deixaram-se encantar pela figura do grande camaleão, a ponto de prepararem este livro sobre David Bowie, dois anos após a sua morte, em Nova Iorque. Sem omitirem o “lado sombrio”, escreveram em registo autobiográfico acessível e direto, percorrendo as diferentes etapas da odisseia do Major Tom. A guardar.

História da Arte dos Açores (c. 1427-2000)
Delfim Sardo, João Vieira Caldas e Vítor Serrão (org.)
Direção Regional da Educação e Cultura dos Açores

São 900 páginas e uma trintena de ensaios temáticos sobre práticas artísticas e património nas ilhas açorianas, a merecerem atenção e crítica. Um trabalho de grande fôlego, que vem atualizar idêntico esforço de há três a quatro décadas atrás. E se alguns escritos nos merecem fortíssimas reservas (e lá iremos um dia), o geral serve de contraforte à tal açorianidade, entre geografia e história, que nos merece respeito e atenção.

Vicente. Símbolo de Lisboa, mito contemporâneo
Mário Caeiro (coord.)
Theya

Provavelmente um dos projetos inquiritivos e expositivos mais interessantes e originais dos últimos anos, pelo foco identitário e pela abordagem poliédrica, do antigo ao mais contemporâneo, que transporta, Vicente é agora um compacto feixe de ensaios e objetos artísticos tornado livro, que tem tudo para vir a ser reconhecido como obra de referência fundamental sobre a cidade de Lisboa.

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