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JOAO RANGEL

JOAO RANGEL

"Grande Sertão: Veredas": o "monstro" das trevas sertanejas de Guimarães Rosa

Um dos mais importantes romances brasileiros, "Grande Sertão: Veredas" tem nova edição em Portugal. Falámos com Silviano Santiago, que nos guiou por rios e afluentes rumo ao coração negro do Brasil.

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Em 1956, apareceu, no seio do pacato mercado editorial brasileiro, um “monstro”. Com algumas centenas de páginas, preenchidas por um longo discurso direto marcado por um único grande travessão, colocado na primeira linha da primeira página, Grande Sertão: Veredas, a história do ex-jagunço Riobaldo contada pelo próprio, foi — e ainda o é — um abanão “no panorama doméstico tranquilo da literatura brasileira”. Quando foi publicado pela editora José Olympio, não existia nada como ele. Passados 63 anos, continua a não haver nada que se lhe compare. Fascinante e inquietante, interessante e difícil, o único romance do escritor João Guimarães Rosa é considerado uma das mais importantes obras literárias brasileiras, tendo sido comparado a importantes peças modernistas (e não só), na ambição e universalidade. Esta “figura monstruosa” tem uma nova edição em Portugal, e foi a esse propósito que falámos com o professor e escritor Silviano Santiago, que apresentou o romance na quarta-feira na Livraria Travessa, em Lisboa. E foi na sua companhia que caminhámos pelas veredas do sertão de Guimarães Rosa, conversando sobre a originalidade e intemporalidade de uma obra que viaja até ao coração das trevas do Brasil.

Antes da obra, existia o autor. Nascido em 1908, na localidade de Cordisburgo, no estado de Minas Gerais, João Guimarães Rosa tinha 48 anos quando a sua obra-prima foi publicada. Morreu dez anos depois, em 1967, passados três dias de ter tomado posse como membro da Academia Brasileira de Letras e no auge da sua carreira literária (estava indicado como candidato ao Prémio Nobel da Literatura), iniciada em 1936, com o volume de poemas Magma. Durante a sua vida, Guimarães Rosa, médico de formação e diplomata de profissão, publicou alguma poesia, mas sobretudo contos. Terá sido de um desses livros de ficção curta que terá surgido Grande Sertão: Veredas. Pelo menos é isso que Silviano Santiago acredita.

A nova edição de Grande Sertão; Veredas foi publicada pela Companhia das Letras, no final de outubro

“Acredito que não era [para ser] um romance, era parte de Corpo de Baile”, declarou ao Observador. Composto originalmente por dois volumes com sete longos contos (com perto de 200 páginas cada um), Corpo de Baile foi publicado também em 1956, antes de Grande Sertão, cuja história terá ganhado “tal poder” que o escritor decidiu tirá-la do livro e expandi-la. A expansão é uma das mais notáveis da literatura brasileira e a única incursão do escritor no romance. Depois de Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa lançou três livros, todos de ficção curta. Os seus contos são, na opinião de Silviano Santiago, “maravilhosos”, “pequenas obras-primas, mas não têm essa arrogância [de Grande Sertão].” Porque, “para fazer um monstro”, é preciso ter arrogância.

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Grande Sertão: Veredas é, nas palavras do seu autor, uma “autobiografia irracional”. Conta a história de Riobaldo, um ex-jagunço que decide trocar o sertão pela tranquilidade da fazenda. É o próprio que narra os acontecimentos mais marcantes da sua vida de jagunço (de onde se destaca a sua paixão por um homem chamado Reinaldo que, afinal, é uma mulher de nome Diadorim), recorrendo a uma linguagem que é popular e, ao mesmo tempo, poética e literária. Pouco se sabe sobre o ouvinte da narrativa, que tem a particularidade de ser médico, como Guimarães Rosa, uma figura que parece não coincidir com a obra que escreveu. Com metade da sua vida passada fora do Brasil, em países como Alemanha, França e Colômbia, longe do selvático sertão brasileiro que descreve nos seus livros, é difícil imaginar por que razão este homem excêntrico e dado a formalismos excessivos se interessaria pelas paisagens do interior do Brasil. Silviano Santiago acredita, no entanto, que é “um interesse bastante legítimo de alguém que nasceu no interior. Ele não é do litoral, é de Minas Gerais e, portanto, tem todo esse universo interiorizado, esse universo selvagem que habitava na mente do menino [que ele foi]”.

João Guimarães Rosa nasceu a 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, no estado de Minas Gerais

O “monstro” de Guimarães Rosa não foi imediatamente compreendido pelo Brasil modernista que o recebeu. É que, apesar de se enquadrar dentro do modernismo, Grande Sertão: Veredas é muito diferente de outras obras suas contemporâneas. Para o professor emérito da Universidade Federal Fluminense (UFF), a sua publicação foi “o aparecimento de uma figura monstruosa no panorama doméstico tranquilo da literatura brasileira”, que não mudou muito desde então. “O estilo dominante naquela época era o menos é mais. A Bienal de São Paulo premiou dois artistas abstratos geométricos em 1954”, explicou Silviano Santiago. “Quem era o grande poeta em 1954? João Cabral de Melo Neto, [que] dizia que se devia escrever um poema com as mesmas 20 palavras. O que sucedeu a Cabral de Melo Neto? A poesia concreta, [em que se] pode fazer um poema com uma só palavra. O que aconteceu no campo da música popular? A bossa nova, que é aquela tranquilidade, a vida [que] transcorre como um barquinho no mar. Grande Sertão: Veredas não é nada disto — “é um livro verborrágico”, afirmou o três vezes vencedor do Prémio Jabuti, o mais importante de literatura no Brasil. É um romance sobre o qual nunca se poderá dizer que tem palavras a menos — quanto muito, palavras a mais. A visão de Guimarães Rosa “não coincidia com a visão do mundo que era dominante naquela época — menos é mais”, apontou ainda Silviano Santiago.

Isso, naturalmente, não convenceu a crítica. O poeta Ferreira Gullar, um dos fundadores do neoconcretismo (que defendia uma maior subjetividade e liberdade artística, em oposição ao concretismo), então com 26 anos, disse ter conseguido ler apenas 70 páginas da obra de Guimarães Rosa, que descreveu como um romance escrito por um filólogo para filólogos. A revista literária Leitura, por seu turno, publicou um artigo intitulado “Grandes escritores que não conseguiram ler Grande Sertão: Veredas, apontando para a mesma dificuldade de compreensão encontrada por Gullar. Apesar destas reações mais negativas, houve “ao mesmo tempo outras figuras, já de início, que disseram que era um romance extraordinário, que mudava tudo, [que mudava] perspetivas”. Uma dessas figuras foi o escritor e jornalista Paulo Mendes Campos, responsável por traduzir para português o poema The Waste Land, de T.S. Eliot, e talvez por isso mais apto para compreender o que Guimarães Rosa tinha criado.

"Seguimos todos através do grande sertão, e aos poucos nos distinguimos no lusco-fusco do mato; porque um livro como esse é guardado para sempre; eu o louvo com modéstia e espanto.”
Paulo Mendes Campos, na revista Manchete (Rio de Janeiro)

Na coluna “Conversa Literária” da revista Manchete, do Rio de Janeiro, de 13 de outubro de 1956, Mendes Campos teceu grandes elogios a Grande Sertão: Veredas, um livro que, na sua opinião, deveria ser “guardado para sempre”: “Seguimos todos através do grande sertão, e aos poucos nos distinguimos no lusco-fusco do mato; porque um livro como esse é guardado para sempre; eu o louvo com modéstia e espanto”. Um ano depois, Dora e Vicente Ferreira da Silva dedicaram um dos números da sua revista, a Diálogo, a Grande Sertão: Veredas. Ponto de viragem na história da crítica do romance, foi neste volume da revista filosófica conservadora que surgiram os primeiros ensaios sobre a obra experimental de Guimarães Rosa. “É um número clássico, que teve dois dos mais críticos brasileiros daquela geração: António Cândido e Benedito Nunes”, apontou Silviano Santiago.

Apesar de ter pouco a ver com a literatura brasileira do seu tempo, Grande Sertão não é totalmente alheio ao que o rodeava. Contudo, Silviano Santiago acredita que “nunca se percebeu o aspeto de comentário que ele trazia sobre a época em que foi escrito”, sendo por isso importante fazer um exercício de distanciamento cronológico e “conhecer melhor os anos 50 a partir dessa obra que não casa com o seu tempo. É uma obra extemporânea que, no entanto, hoje é mais nossa contemporânea do que as obras que foram escritas naquela época”.

Domesticar o “monstro” e torná-lo apetecível

Para compreender melhor a obra-prima de João Guimarães Rosa, Silviano Santiago acredita que é também necessário esquecer a “crítica já estabelecida, canónica”, e olhar para o romance com um olhar renovado. Isto porque, na opinião do professor e escritor, a crítica de Grande Sertão: Veredas sempre foi muito “facilitadora”. Esta facilitação começou pouco depois da sua publicação, quando começou “a haver uma avaliação menos passional, [menos] ‘li, não gostei’, ‘li e adorei’. Eles [os críticos] deram-se conta que tinham de facilitar a leitura, que tinham de domesticar um pouco o selvagem para ser palatável porque, caso contrário, desaparecia”. Até o próprio Guimarães Rosa parece ter caído na tentação — numa entrevista à estação de televisão alemã, o autor descreveu o seu romance como “quase um Fausto sertanejo”, uma comparação que ajuda a agarrar leitores, é certo, mas que oferece uma visão relativamente simples de uma obra que é complexa. “Essa é uma das possibilidades de leitura — a questão fáustica, do diabo —, mas a questão religiosa é tão ampla”, considerou o especialista.

[Guimarães Rosa sobre Grande Sertão: Veredas, em entrevista à televisão alemã, em 1962:]

“[Grande Sertão: Veredas] despertou uma notável bibliografia, quanto a isso não há problemas. Muitas leituras foram feitas pelos maiores e melhores críticos brasileiros. No entanto, a meu ver, essas leituras, esses 60 anos de leituras críticas, domesticaram o livro, esconderam a sua selvajaria, porque não houve uma boa compreensão da palavra ‘sertões’ em Grande Sertão: Veredas”, afirmou o autor de Mil rosas roubadas. “‘Sertões’, em Grande Sertão: Veredas, foi compreendido como os sertões que estão na região do nordeste — a seca, a miséria e sobretudo uma paisagem totalmente descolorida. Os sertões de Grande Sertão: Veredas estão no centro do Brasil, ao lado de Brasília, e o rio [do livro] é o Rio São Francisco, que é o rio da unidade nacional. Depois do Amazonas, é o rio mais caudaloso do Brasil. Então, é uma floresta luxuriante, com todos os animais que você pode imaginar.”

Na opinião de Silviano Santiago, todos estes dados “foram minimizados, numa compreensão” que é “muito boa, porque salvou o livro” do esquecimento. “Se não houvesse essa compreensão, possivelmente não seria muito livro, porque é relativamente difícil”, afirmou. Mas, por outro lado, a obra foi suavizada e domesticada, “como se se tratasse de uma ave”, quando o animal que domina Grande Sertão: Veredas, e toda a obra de Guimarães Rosa, é a onça. “É a onça de que ele se vai valer para representar a ferocidade. E a ferocidade é o quê? A ferocidade, já na etimologia, é você matar uma onça e comer o seu coração. Riobaldo faz isso — ele mata uma onça e come o seu coração. Essa pujança, essa beleza, faz com que esses sertões sejam bem diferentes dos outros.” Os “outros” são os de Euclides da Cunha, autor de Os Sertões (1902), e de Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas (1938). “Se há coisa que existe em Grande Sertão: Veredas são as vidas molhadas e não as vidas secas”, brincou Silviano Santiago, frisando que se tratam de “dois espaços totalmente diferentes”.

"Essas leituras, esses 60 anos de leituras críticas, domesticaram o livro, esconderam a sua selvajaria, porque não houve uma boa compreensão da palavra ‘sertões’ em 'Grande Sertão: Veredas'."
Silviano Santiago, professor e escritor

Em Vidas Secas, por exemplo, as personagens “são destituídas de fala, tal é a pobreza e a miséria em que vivem. Grande Sertão é verborragem, é um excesso, é um rio caudaloso, é o Rio São Francisco. É, aliás, o Rio São Francisco que termina belamente o livro, com uma menção como símbolo fálico. A última anotação do livro [diz que] ele se levanta como um ‘pau [grosso’]. ‘Pau’ quer dizer árvore, mas também [quer dizer] outra coisa. Tal é a pujança desse universo”. A questão da oralidade é fundamental na obra de Guimarães Rosa. “É a fala do povo, mas uma fala que é extremamente sofisticada, com lampejos de poesia, de filosofia. (…) É uma autobiografia de alguém que não poderia escrever a sua autobiografia”, mas é também muito mais do que isso — e é precisamente aí que está o segredo para a universalidade e intemporalidade da obra de João Guimarães Rosa, que, na opinião do especialista, criou no seu romance “um enclave selvagem no coração do Brasil”.

Grande Sertão: Veredas é um livro verborrágico, porque ele [o autor] estava interessado em apreender as trevas. Ele não estava interessado em apreender as luzes. E é isso que acho que o torna muito moderno. É um romance sobre as trevas. É [como] O Coração das Trevas, de [Joseph] Conrad.” No romance do escritor britânico de origem polaca, Charles Marlow, o protagonista, sobe o Rio Congo até ao coração da selva, onde conhece Kurtz; em Grande Sertão, há “um médico que vai pelo Rio São Francisco e dá com Riobaldo e com aquelas aventuras” que ele lhe relata em primeira mão. “É uma autobiografia que vasculha a escuridão do coração do Brasil. Não é uma obra como Brasília [que estava então a ser construída em 1956], que pretende trazer-nos à vista a possibilidade de um Brasil ilusionista, iluminado, moderníssimo e, inclusivamente, meio feminino. Todas as formas de Brasília são redondas, femininas. Isso é notável na arquitetura de [Oscar] Niemeyer”, apontou o especialista.

“[O romance] é um outro Brasil, intemperado, onde a própria questão de género, que é atualíssima hoje, se faz notar com todas as conotações contemporâneas [na história da paixão por Diadorim]. E vamos perceber que esse enclave masculino se contrapõem a um determinado desenvolvimentismo típico da civilização brasileira, [que] acarretou formas de enclave extremamente violentas. A própria favela no Rio de Janeiro é a consequência da abertura da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco. No momento em que a avenida, a imitação dos Champs-Elysées, foi aberta, todos os sobrados coloniais e cortiços foram destruídos. Não havia alternativa, as pessoas pobres, que já não eram escravos em virtude da abolição da escravatura, foram para os morros e aí fizeram esses enclaves.”

Silviano Santiago é professor e escritor. Recebeu, entre outros prémios, três Jabuti ao longo da sua carreira

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

A violência revela-se através de duas forças centrais em Grande Sertão: “De um lado está a ferocidade dos jagunços, um mundo anárquico, que busca desesperadamente um líder e que acredita que essa anarquia nunca terminará. Estilisticamente, isso é muito importante, porque a preposição ‘ou’ nunca aparece. É sempre a preposição ‘e’. É sempre Deus e o Diabo, nunca é Deus ou o Diabo”. Depois, há a “irascibilidade”, que caracteriza os chefes políticos ou militares “que pretendem controlar aquela região” através da imposição de uma ordem que é tão desordeira “quanto a própria anarquia da ferocidade”.

Um “Adamastor” escrito com arrogância

O sertão de Guimarães Rosa, um universo essencialmente alegórico que não corresponde à ideia de sertão na tradição literária brasileira ou ao sentido que a palavra ganhou na língua portuguesa, levou a que muitos o criticassem por descrever um sertão que não é o sertão. Essa confusão é natural, e há quem acredite que esse foi um dos motivos pelos quais o autor decidiu colocar os dois pontos no título, ligando o “Grande Sertão” a “Veredas”. “As veredas são rios e o sertão não teria rios. [O sertão de Guimarães Rosa] é um sertão com rios e afluentes. Muitos afluentes.” Além disso, Silviano Santiago acredita que poderá existir aí uma homenagem a Afonso Arinos, o “grande mestre regionalista”, e às suas teorias sobre as consequências nefastas do progresso, uma visão típica de finais do século XIX, inícios do século XX.

“Autor impecável, mas com uma dicção bastante conservadora e tradicional”, Arinos é autor do livro de contos Pelo Sertão (1898). Este sertão é “o sertão do buriti, que é a palmeira. Um dos textos mais lindos de Afonso Arinos é uma espécie de poema em prosa ao buriti. Ele [Guimarães Rosa] pôs esse poema em prosa na primeira edição de Corpo de Baile, que é anterior a Grande Sertão: Veredas. É nítido que ele gostaria de prestar homenagem a Afonso Arinos, que é de uma família tradicional mineira. Foi um grande escritor, que apreendeu de maneira muito clara esse lado do Brasil que é desconhecido, que fica além da cordilheira das Mantigueiras [que se estende pelos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro]”, explicou o professor emérito da UFF. Por outro lado, Arino “era um pensador que acreditava que o transcorrer da história das civilizações era uma forma de apequenamento gradativo do ser humano. Há muitas teorias do final do século XIX, que não são muito estudadas por razões óbvias, sobre o desastre do progresso, [a que] ele se afilia.” Na opinião de Silviano Santiago, Grande Sertão: Veredas pode ser visto à luz dessa ideia de “desastre do progresso”, “60 anos depois”. “Não há nenhum desejo de criticar Brasília ou o lado ilusionista brasileiro, que está lá e que passa muito bem, mas ele nunca focou de maneira tão brutal a luz sobre isso.”

“'Grande Sertão: Veredas' é um livro verborrágico, porque ele [o autor] estava interessado em apreender as trevas. Ele não estava interessado em apreender as luzes. E é isso que acho que o torna muito moderno. É um romance sobre as trevas."
Silviano Santiago, professor e escritor

Mas, acima de tudo, Grande Sertão: Veredas é, para o também escritor, uma outra coisa: “É um livro monstruoso. Costumo dizer que é um Adamastor. Você está fazendo uma viagem pela literatura e, de repente, dá com aquilo.” Por essa razão, é “também, de certa maneira, diabólico — modifica a conceção que temos de literatura”. “Acho isso muito importante”, considerou o professor, apontando que, “nesse sentido, tem o mesmo espaço que obras como The Waste Land, de T.S. Eliot, o romance Ulisses, [de James Joyce,] ou Paraíso, de Lezama Lima, de Cuba. São obras muito extemporâneas, não só à sua própria época, mas ao próprio momento da nossa civilização, que foi abandonando gradativamente aquilo a que chamamos retórica literária. Ele [Grande Sertão] presta, a meu ver, uma grande homenagem à literatura e, indiretamente, à crítica literária, porque nunca foi tão necessário a sua presença. Foi por isso que disse que tem uma notável tradição crítica, porque as pessoas ficam enlouquecidas — querem explicar o monstro, querem destrinchar, encontrar um caminho de penetração, muitas vezes reduzido, limitado, discutindo questão muito particulares, mas às vezes também tentando leituras mais abrangentes. Mas as leituras abrangentes são poucas. Acontece o mesmo com The Waste Land ou com o Ulisses”, afirmou o especialista natural de Minas Gerais, admitindo que talvez fique “ridículo um brasileiro” dizer isso, porque parece “pretensioso”. Mas, a verdade, é que Grande Sertão: Veredas é uma tentativa de “fazer um livro que representasse a civilização humana”. E isso ultrapassa qualquer nacionalidade.

“E não [é só uma tentativa de representação] ocidental, isso é que também é fascinante. É um livro que fala também dos perigos da colonização, assim como o romance de Conrad, que é um livro que questiona. Claro que [O Coração das Trevas] é um romance histórico, você pode situá-lo no Congo, em África, mas, na medida em que é alegórico, pode ser também [sobre] o Vietname”, como na adaptação cinematográfica de 1979 de Francis Ford Coppola, “Apocalypse Now”. “Grande Sertão: Veredas é muito mais do que o espelho da sua época — é o espelho do Brasil e, depois, do ser humano. Daí a arrogância. É um livro de um escritor arrogante, muito arrogante.” Questionado sobre o porquê de achar o autor arrogante, Silviano Santiago respondeu que tinha de o ser, porque “quem tem essa pretensão, de fazer uma obra-prima”, tem de ser pretensioso. Afinal, o seu romance é muito mais do que um romance — “é um outro modo de você articular isso a que chamamos literatura”.

Adorado por uns, odiados por outros — será Grande Sertão: Veredas um livro capaz de conquistar reações diametralmente opostas? Para Silviano Santiago, não é tanto uma questão de gosto, que é psicológica, mas de paciência: “Acho que o ser humano ou tem paciência ou tem impaciência. Os seres humanos pacientes gostam de ler, têm prazer em ler, porque isso exige reflexão. Há pessoas que são impacientes na vida e em tudo. Nem um filme conseguem ver inteiro, que é uma coisa de hora e meia”, afirmou o professor e escritor, acrescentando que “a leitura é sempre problemática”, e ainda o é mais se se tratar de um livro como o de Guimarães Rosa.

“Gosto de uma frase do Artaud, [que diz] ‘a grande peça inventa o teatro’. O grande romance, o grande poema, inventa a literatura. Já não podemos ler aquilo a que chamamos livro de literatura da mesma maneira. Exige novos protocolos — são outros quando você abre o livro. Isso é um bocadinho complicado, mas é a graça, eu acho, da invenção literária. [Isto] é a invenção literária elevada à enésima potência”, o que não é fácil de conseguir. “Algumas pessoas conseguem, a maioria não. A maioria tenta escrever de acordo com o mercado, porque tem uma certa garantia. Acho que Guimarães Rosa escapa a esses estereótipos de leitores.” E, se não fosse assim, não estaríamos ainda a falar dele.

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