A expectativa é alta, mas temperada com uma “esperança muito contida” e com apelos à coerência. É assim que os ambientalistas antecipam o lugar que os temas do ambiente e da ação climática vão ocupar na campanha para as eleições legislativas que se avizinham — e que dá o pontapé de partida para um ano em que o debate climático deverá subir de tom em Portugal (com a materialização da Lei de Bases do Clima recentemente promulgada e a Conferência dos Oceanos agendada para o verão), na Europa (com a discussão e votação do pacote legislativo comunitário que fixa a meta da neutralidade carbónica em 2050) e no mundo (com a cimeira da ONU no Egito que herda o peso dos compromissos adiados na COP 26 de Glasgow).
“Este vai ser um tema falado na campanha eleitoral. Não vai ser o tema principal, mas vai ser um tema falado. Vai ser interessante ver o que os diferentes partidos pensam sobre a questão”, antevê o presidente da associação ambientalista Zero, Francisco Ferreira, revelando que a organização já teve contactos com alguns dos partidos que se apresentam a votos nas legislativas de 30 de janeiro. “Enviámos 126 propostas aos partidos. O PSD já pediu uma reunião connosco, que aconteceu na semana passada, e já trocámos impressões informais com o PS e o PAN.”
Ainda assim, o dirigente da Zero modera a expectativa. “Acho que vai ser um tema forte, mas não acredito que venha a ser tão marcante quanto deveria”, afirma. “O tema das alterações climáticas vai fazer parte do programa de alguns partidos. Daí até chegar às pessoas, até as pessoas perceberem as diferenças e o tema merecer um destaque maior… Vamos aguardar.”
A presidente da Quercus, Alexandra Azevedo, partilha da opinião. “Temos sentido que existe mais vontade de ouvir as nossas opiniões e que as alterações climáticas estão cada vez mais na agenda política”, diz, para logo acrescentar que as ambições climáticas defendidas na esfera política acabam “subordinadas a interesses económicos” e deixam bem visível a diferença “entre o que devia ser e aquilo que realmente acontece”. Por isso, sintetiza a responsável, a Quercus olha para o debate climático em 2022 com uma “esperança muito contida”, embora reconhecendo que “alguns passos positivos serão sempre dados”.
O combate às alterações climáticas é uma bandeira eleitoral acenada frequentemente em campanhas, através de discursos mais ou menos genéricos — habitualmente dirigidos aos eleitores das gerações mais jovens, para quem o ambiente e o clima são questões cruciais. Todavia, apontam os ambientalistas, a ação climática é relegada para um papel menos preponderante assim que se esgota o período eleitoral e começa a governação. “As políticas públicas estão muito aquém do que era necessário”, diz Alexandra Azevedo. “Estamos ainda na fase de muitos diagnósticos, muitas conferências, mas depois falhamos na aplicação e na coerência nos vários setores.”
“A principal falha continua a ser a da coerência governativa”, concorda Francisco Ferreira. “Continuamos a ter perspetivas e ações contraditórias dentro do mesmo Governo. Passar a ter um ministro de Estado e do Ambiente e Ação Climática, ou seja, ter o ambiente e o clima ao nível de um ministro de Estado, poderia ser um sinal importante, a par de haver uma maior coerência de políticas dos vários ministérios.”
Na antecipação às legislativas, os partidos políticos portugueses parecem estar a saber ler os anseios climáticos da população. De acordo com um estudo do Eurobarómetro publicado no ano passado, a maioria dos cidadãos europeus considera que as alterações climáticas e a destruição da natureza representam os maiores problemas que o mundo enfrenta na atualidade. É uma preocupação que se reflete especialmente em Portugal, um dos países em que mais cidadãos consideram que o Governo deve implementar políticas públicas ambiciosas de ação climática para garantir a neutralidade carbónica, a implementação de energias renováveis e o investimento na economia verde.
Do lado do incumbente, António Costa, o aumento do peso das energias renováveis em Portugal para 80% nos próximos quatro anos foi uma das 12 prioridades programáticas do PS divulgadas ainda antes de ser conhecido o programa eleitoral na íntegra. Costa escolheu também o clima como uma das cinco grandes áreas temáticas nas quais apresentou as conquistas dos seus seis anos de governação. Do lado da oposição, Rui Rio também já apresentou o combate às alterações climáticas como um dos grandes desígnios do seu programa eleitoral, dissertando longamente sobre “a principal batalha pela vida que o mundo, como um todo, enfrenta” no discurso de encerramento do congresso do PSD, em dezembro.
Da esquerda à direita, dos partidos de nicho àqueles de vocação mais abrangente, todas as forças políticas, sem exceção, incluem compromissos climáticos nos seus programas eleitorais. Mas este contexto eleitoral será apenas o início de um debate sobre políticas climáticas que se adivinha intenso ao longo do ano de 2022 — e Portugal poderá ter um papel relativamente importante na discussão a nível global.
Lei de Bases traz clima para centro do debate político
Portugal entrou em 2022 menos de um mês depois de Marcelo Rebelo de Sousa ter promulgado a Lei de Bases do Clima, um documento inovador que verte para o ordenamento jurídico português conceitos como o reconhecimento de uma “situação de emergência climática” atualmente em curso no planeta, a declaração de um “direito ao equilíbrio climático” ou uma série de princípios relacionados com as políticas públicas do clima — que devem ser transversais a toda a sociedade e independentes dos ciclos governativos.
A lei colocou formalmente Portugal em linha com os objetivos europeus de redução das emissões de gases de efeito de estufa (de 55% até 2030, de 65-75% até 2040 e de 90% até 2050) e até vai mais longe, ao determinar que o Governo português deve estudar, até 2025, a possibilidade de antecipar para 2045 a meta da neutralidade climática do país — atualmente apontada para 2050.
A extensa lei, composta por 81 artigos, determina que Portugal se deve empenhar nos esforços nacionais, europeus e globais de combate às alterações climáticas, designadamente através da cooperação com as Nações Unidas e da criação de um Conselho para a Ação Climática, órgão independente que deverá aconselhar os governos no que toca à política climática. Além disso, o documento afirma que “todas as medidas legislativas e investimentos públicos de maior envergadura” devem ser “avaliados estrategicamente em relação ao seu contributo para cumprir os pressupostos” da lei e integrar “os riscos associados às alterações climáticas nas decisões”.
A lei entra em vigor em fevereiro e, no entender dos ambientalistas portugueses, deverá marcar o debate climático português ao longo de 2022 — uma vez que, agora, é necessário implementá-la.
“Há agora um trabalho grande no que respeita à regulamentação da Lei de Bases do Clima”, diz Francisco Ferreira, sustentando que o Governo que sair das eleições legislativas de 30 de janeiro terá de começar, desde logo, a “fazer uma avaliação da possibilidade de antecipação da neutralidade carbónica para 2045 ou antes”. Tendo em conta que a Lei de Bases do Clima pede que esse processo esteja concluído até 2025, “essa é uma vertente a avançar o quanto antes”.
Para Alexandra Azevedo, contudo, a meta de 2045 sabe a pouco. “Começamos já por questionar as metas apresentadas. Defendemos que deveríamos atingir a neutralidade climática em 2040”, diz a líder da Quercus. “Só que isso implica uma grande coerência das políticas e que se fizessem mudanças estruturais”, acrescenta, classificando uma eventual antecipação da neutralidade para 2045 como uma “vitória relativa” para o ambiente. “Podemos andar aqui a discutir metas, mas se elas forem esvaziadas de ação no terreno de pouco servirão e vão sempre ser derrapadas.”
À boleia da Lei de Bases do Clima, a discussão sobre as alterações climáticas deverá ser um dos temas de proa do debate político em 2022, acredita Francisco Ferreira, que aponta tópicos concretos. Num ano em que, pela primeira vez na história, Portugal já não produz eletricidade a partir do carvão, “a questão dos preços do gás e da eletricidade vai continuar em cima da mesa e, esperamos nós, com uma discussão mais informada”, defende o líder da associação Zero, acrescentando que 2022 “vai ser um ano muito importante” no reforço do uso de energias renováveis em Portugal.
Para trás fica um ano em que as energias renováveis permitiram abastecer 59% do consumo de eletricidade em Portugal, com a energia eólica a destacar-se, representando 26% da produção de eletricidade a partir de fontes renováveis. Francisco Ferreira avisa, porém, que isto ainda representa uma fase inicial, uma vez que há “grandes centrais eólicas que só entraram em funcionamento há poucos meses” e outras que estão projetadas para breve. “Vamos assistir a um peso maior do solar”, sustenta.
A presidente da Quercus também destaca a energia como um dos temas centrais do debate ambiental e climático para 2022, mas dá um passo atrás e considera que não basta investir nas energias renováveis: é também necessário reduzir a procura de eletricidade no país. “Quando falamos de descarbonização, temos de pôr em causa um controlo deste desmesurado aumento da procura de eletricidade. Continuar neste paradigma dos combustíveis fósseis não é solução, mas também não é solução continuarmos com o crescente aumento da procura de energia. Precisamos de reduzir a procura e o setor da agricultura tem um papel fundamental”, diz Alexandra Azevedo, sublinhando que os métodos de fertilização dos solos na agricultura de regadio têm potencial para gastar muito menos energia se se basearem mais em processos naturais (ou seja, em agricultura menos intensiva) e menos na mobilização artificial de água que é necessária para uma produção ultra-intensiva.
Alexandra Azevedo aponta ainda outra expectativa da Quercus para 2022: uma revisão das faixas de gestão de combustível — instrumento de gestão florestal que determina a distância que deve ser salvaguardada entre a floresta e as povoações, os edifícios, as estradas e as linhas ferroviárias. No entender da presidente da Quercus, há medidas “cegamente impostas”, incoerentes com o conhecimento científico e com a realidade de cada lugar, que levam à desmatação de “muitos quilómetros quadrados” de floresta em Portugal e, por conseguinte, à limitação do sequestro de carbono realizado por essa floresta.
Além da energia e das florestas, o debate climático em 2022 deverá voltar-se decisivamente para os oceanos, com Portugal a desempenhar um papel central. Entre 27 de junho e 1 de julho, Lisboa vai receber a Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, um evento global inicialmente agendado para 2020, mas adiado devido à pandemia da Covid-19. A conferência vai reunir na capital portuguesa delegações de todos os países do mundo para debater os problemas e as soluções para os oceanos — uma das principais bóias de salvação do planeta perante o aquecimento global.
Marcelo quer todos na conferência dos oceanos em Lisboa sem dispersão de iniciativas
“A Conferência dos Oceanos vai ser, sem dúvida, um marco importante”, aponta Francisco Ferreira. “Os oceanos têm assegurado que não estamos numa situação pior do que aquela em que estamos. Têm-nos salvo, mas, obviamente, têm sofrido sob todos os pontos de vista”, sublinha, referindo-se à grande capacidade dos oceanos para absorver uma parte considerável do aumento de temperatura do planeta, poupando a Terra a um aquecimento global muitíssimo superior ao atualmente registado. “Os oceanos são uma das áreas prioritárias na sustentabilidade, são um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, mereceram um relatório específico, mas têm sido um elo mais fraco na discussão. Espero que a conferência inverta essa tendência.”
“Os oceanos são o maior sequestrador de carbono, mas os problemas que os afetam têm origem em terra”, concorda Alexandra Azevedo, sublinhando o consumo de peixe, os resíduos de plástico e a natureza do próprio estilo de vida ocidental que se reflete profundamente na poluição dos oceanos. Por isso, a conferência de Lisboa poderá ter um papel importante — mas é imperioso que os compromissos globais assumidos ao nível da ONU se traduzam em políticas concretas nos países que os assumem. E, segundo a líder da Quercus, não é isso que tem acontecido. “Continuamos a discutir muito e ao mais alto nível, mas depois não se reflete na prática.”
Na Europa e no mundo, olhos postos na COP 27
Certo é que 2022 será, no que toca ao clima, um ano de grande discussão de alto nível sobre o clima. É, pelo menos, isso que indica o calendário da ONU, que aponta várias datas a ter em atenção neste debate. A primeira é já no final de janeiro, quando os representantes dos 46 países classificados como “menos desenvolvidos” se vão reunir em Doha, no Qatar, para a quinta conferência do grupo, que ocorre a cada dez anos. Um dos pontos centrais na agenda será o impacto das alterações climáticas nos países mais pobres — um tópico longamente debatido na COP 26, em Glasgow, cujo documento final reconheceu explicitamente a necessidade de os países mais ricos intensificarem as linhas de financiamento destinadas a apoiar os países em vias de desenvolvimento a robustecer as suas defesas contra os fenómenos climáticos extremos e, sobretudo, a pagar a conta dos danos já causados pelo aquecimento global (notórios com especial evidência, por exemplo, nos pequenos países insulares).
Em fevereiro, os olhos do mundo estão postos na publicação da segunda parte do relatório do IPCC sobre as alterações climáticas. A primeira parte do sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas, organismo científico da ONU, foi publicada em agosto do ano passado, a três meses da COP 26, e representou um último aviso dos cientistas aos políticos sobre os impactos previsíveis do aquecimento global. Depois da primeira parte, focada na ciência, espera-se uma segunda parte (focada nos impactos, na vulnerabilidade do planeta e na adaptação das comunidades humanas aos impactos previstos pela ciência), publicada em 21 de fevereiro; e uma terceira parte (focada nos esforços de mitigação das alterações climáticas), que será publicada em 28 de março. Em outubro, a ONU publicará o relatório síntese, que junta os contributos científicos e políticos publicados ao longo do ano.
O calendário da ONU inclui ainda a primeira cimeira sobre alterações climáticas específica para o Médio Oriente e o Norte de África, no Dubai; a conferência das Nações Unidas sobre a biodiversidade, em Kunming, na China; o congresso mundial sobre as florestas, em Seul, na Coreia do Sul; a conferência sobre a desertificação, na Costa do Marfim, e o fórum urbano mundial, em Katowice, na Polónia. Em junho, realiza-se também a conferência Estocolmo+50, que marca os 50 anos do programa ambiental da ONU. Para novembro, está marcada a COP 27, no Egito.
COP26. Como quatro dias de negociação baixaram a ambição do Pacto do Clima de Glasgow
Depois de Glasgow (onde a ambição inicial acabou por dar lugar a um documento final mais moderado), a COP 27 tornou-se no centro das atenções, uma vez que os países signatários se comprometeram a apresentar até ao final de 2022 novas metas climáticas. Tudo porque o compromisso inicial (de que os países atualizem as suas metas a cada cinco anos) se revelou manifestamente insuficiente: os compromissos assumidos até agora, incluindo os de Glasgow, colocam o planeta a caminho de um aquecimento de 2,4ºC em relação aos níveis pré-industriais. Trata-se de um valor quase um grau acima do grande objetivo do Acordo de Paris — limitar esse aquecimento a 1,5ºC. Por isso, a COP 27 vai ser o momento em que os países deverão apresentar novas metas — que, agora, passam a ser revistas anualmente.
Ainda assim, apesar dos compromissos assumidos no papel, os ambientalistas estão reticentes. Basta que pensemos no exemplo da União Europeia, um dos principais atores na discussão internacional. A nível comunitário, o objetivo era o de reduzir até 2030 as emissões de gases com efeito de estufa em 40% em relação aos valores de 1990. Mas, como explicou ao Observador o vice-presidente da Comissão Frans Timmermans, num contexto de aumento da ambição das metas climáticas, a Comissão Europeia avançou com um projeto de elevar essa meta para 55% até 2030 — um projeto a que chamou Fit for 55, apresentado no ano passado e em vias de ser discutido e votado no Conselho e no Parlamento Europeu este ano. Mas, como já se viu, até este compromisso é insuficiente para colocar a UE no caminho das metas de Paris.
“A Europa ainda não está em linha com o Acordo de Paris”, reitera Francisco Ferreira. “O objetivo para 2030 é 55%, e não 65%, o que nos poria em linha com o Acordo de Paris. É preciso saber ler as palavras do vice-presidente da Comissão para entendermos se há ou não margem de manobra para ir mais além. Se, apesar de a Comissão Europeia estar a trabalhar com os Estados-membros e o Parlamento Europeu na linha da redução de 55%, há folga para aumentar essa ambição”, continua o presidente da Zero, sustentando que, para o conseguir, a UE precisa de trabalhar paralelamente nos dois objetivos. “Está a ser preparado um pacote legislativo com base nos 55%, não nos 65%.”
O mesmo se passa com a maioria dos países signatários do Acordo de Paris, acrescenta Francisco Ferreira: se até Glasgow as metas não foram aumentadas em valor suficiente, nada garante que o sejam até ao Egipto. “Houve um tempo extra até à próxima COP. A expectativa é saber se o faremos ou não, ou quem serão os países que o farão”, sublinha o líder da Zero. “Até há um ou outro país que o poderá fazer. A Europa devia fazê-lo. Mas acho que será muito complicado.”
Igualmente pessimista, a presidente da Quercus antevê um ano com muito debate e pouca ação. “Até agora, as discussões a nível da ONU acabam por não se refletir na prática em cada país e na União Europeia”, diz Alexandra Azevedo, lamentando que “a linguagem da economia verde” acabe por “esconder mais do mesmo”. Recorrendo a um paralelismo com a pandemia da Covid-19, a líder da associação ambientalista salienta que o mundo está “confrontado com uma situação que obriga a mudanças estruturais” no modo como o próprio planeta funciona — e coloca nas mãos dos decisores políticos, mas também na ação dos ambientalistas no terreno, a capacidade de promover essas mudanças. E a campanha eleitoral para as legislativas que se avizinham pode ser, para ambos os ambientalistas, a ocasião ideal para começar o debate.