Índice
Índice
“Devolução.” Isabel Pastor não hesita em usar a palavra maldita — está a referir-se a alguns pais que desistem de uma criança em fase de pré-adoção. Estas famílias, quando o motivo é leviano, devem ser responsabilizadas pela justiça, defende a diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa da Misericórdia. Isso mesmo pediu a Santa Casa, por duas vezes este ano, ao tribunal assinalando que os processos tinham sido interrompidos sem um motivo razoável. Os casos estão nas mãos da justiça e Isabel Pastor defende que seria importante haver uma condenação, até pelo efeito preventivo que pode ter para evitar situações futuras.
“Já há bastante tempo que considero que sempre que ocorre uma interrupção destas, em que poderia mesmo chamar-lhe uma devolução, a família deve ser responsabilizada. Ou seja, quando é a família que, sem qualquer motivo grave, desiste do projeto de uma forma que considero ser leviana”, diz a jurista em conversa com o Observador.
Há vários motivos, esclarece, que podem levar a interromper uma pré-adoção, o momento em que a criança já está a viver com a nova família, mas a adoção ainda não foi decretada pelo tribunal. Durante esses seis meses, uma equipa técnica acompanha o processo de perto e, no final, encaminha um relatório para o Tribunal de Família e Menores onde diz de sua justiça: se a adoção deve, ou não, ser decretada.
“É preciso pensar que há muitos processos em que o insucesso não tem a ver só com a família. Pode resultar de uma série de circunstâncias: decisão da equipa, deficiência de acompanhamento, pode haver questões relativas à criança que não tenham sido suficientemente exploradas. É para isso que serve a pré-adoção: ter uma equipa a apoiar uma família, apoiar uma criança, havendo uma adaptação recíproca que leva a uma relação de filiação”, sublinha a diretora da unidade de adoção.
Uma coisa é certa. A Santa Casa continuará a fazer denúncias ao tribunal sempre que se justifique e aos juízes, diz Isabel Pastor, caberá decidir se há fundamentos para avançar com processos cíveis ou criminais. Uma condenação também seria importante, mas, acima de tudo, a jurista quer que a mensagem de que não há crime sem castigo chegue aos candidatos a adotantes. No entanto, esse não é o caminho mais seguido pelas equipas de adoção que, quando os processos correm mal, priorizam o bem-estar da criança que tem de voltar a ser institucionalizada.
“As equipas técnicas estão muito focadas na criança. E isto é muito português, somos muito avaros a fazer invocar estes direitos. Acima de tudo, é importante que as pessoas saibam que é possível serem responsabilizadas”, diz Isabel Pastor, frisando a importância de os adotantes perceberem que se houver uma devolução da criança, de forma precipitada, haverá uma reação dos serviços.
“Infelizmente, na maioria das devoluções, as famílias estão a passar por um mau bocado e não acreditam que mude. Pensam ‘só eu é que tenho razão, não aguento mais, e como isto não vai mudar não aguento, acabou, não estou disposto a continuar’. E isto em si mesmo já é um desistir centrado no próprio, irresponsável. Não está em causa o que se passa com a criança, está em causa aquilo que eu sou capaz de aguentar”, argumenta.
Apesar de em teoria e em contexto de reflexão já se ter discutido a possibilidade da responsabilização dos adotantes, na prática é raro acontecer. “A ideia é ‘o mal está feito, a criança não vai beneficiar em nada, não vale a pena’ e, portanto, nunca se acionou este mecanismo. Toda a atenção e esforço se concentrava na criança, no compensá-la, no resolver, no apoiar, na terapia, para ultrapassar este trauma, e pronto. Ficava-se por aqui.”
Essa tendência tem de mudar, defende Isabel Pastor, e por vários motivos, até mesmo para que as crianças saibam que alguém está a zelar pelos seus interesses.
“Estas situações não podem ser deixadas sem esta reação. É importante para a criança, como símbolo da sua proteção, e pelo efeito de prevenção: ‘Não embarquem neste processo de ânimo leve.’ Ânimo leve no sentido de ‘agora apetece-me, vou ver, se resultar muito bem, se não resultar logo se vê’. Isto não pode admitir-se numa sociedade que tem de ser responsável pelo bem-estar das crianças”, sublinha.
Bebés doentes ou indesejados, abandonados com dias de vida. Foram 10 num só ano e C. foi um deles
Os números divulgados oficialmente não permitem perceber o que motivou cada uma das interrupções de pré-adoção dos últimos anos. O que se sabe, segundo os dados mais recentes, é que, em 2016, os processos de 19 crianças foram interrompidos. Em 2017 foram os de 20 crianças e, no ano seguinte, os de 14. Nesse mesmo ano, foram integradas 213 crianças em famílias adotivas.
Sobre este assunto, o último relatório do Conselho Nacional de Adoção, de 2018, refere que no período de pré-adoção, “na maior parte das vezes, observa-se que o que fundamentou as interrupções foi a dificuldade de vinculação manifestada por parte dos adotantes neste período, sendo notória a dificuldade da família se ajustar à nova dinâmica, verificando-se um desfasamento entre as suas expetativas e a realidade vivenciada, a par de cansaço e descrença na possibilidade de mudança”.
O documento refere ainda que “muito residualmente” a interrupção teve origem na prática de maus-tratos (físicos e psicológicos), tendo os adotantes aplicados castigos abusivos, bem como na indisponibilidade para prosseguir com o projeto de adoção, relacionado com a incapacidade de gestão do filho biológico e criança integrada e falta de abertura para uma intervenção técnica.
“Se se desiste de um projeto da importância que tem para uma criança por um motivo que eu diria fútil — porque afinal não corresponde àquilo que que pensava, porque há coisas que lhe fazem impressão e que são coisas que estão perfeitamente justificadas por toda a informação que já recebeu e que faz parte do comportamento próprio das crianças em pré-adoção — considero que estas famílias devem ser responsabilizadas pelo prejuízo causado à criança”, insiste Isabel Pastor.
A Santa Casa é responsável pelos processos de adoção nos concelhos de Amadora, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Odivelas, Oeiras, Sintra e Vila Franca de Xira. No resto do continente, são da responsabilidade das equipas da Segurança Social. O Observador questionou o Ministério do Trabalho e da Segurança Social, para saber se haveria mais denúncias a serem remetidas aos tribunais pelas equipas da Segurança Social, mas até à publicação desta notícia não obteve resposta.
Em caso de condenação, adotantes têm de pagar indemnização às crianças
O que pode acontecer a estes adotantes se houver condenação em tribunal? A resposta é dada pela advogada Andrea Baptista e passa pelo pagamento de uma indemnização financeira, no caso de se tratar de um processo cível. Este é o procedimento que mais se enquadra nesta situação, na sua opinião, uma vez que se tratam de danos morais. Falar-se-ia de processo crime se houvesse maus-tratos físicos ou outro tipo de delitos previstos no Código Penal.
“Os danos emocionais são qualificados por lei como danos morais e variam de caso para caso. Não consigo, nem me atreveria, a calcular um valor indemnizatório para este tipo de situação. O tribunal teria, tendo como referência que o processo de adoção visa a defesa dos melhores interesses das crianças e não dos adotantes, de chegar a um valor”, explica a associada do escritório de advogados CMS Rui Pena & Arnaut.
Andreia Baptista defende que é preciso partir do princípio de que quem avança com um processo de adoção é porque o maturou. “Não se pode entrar na vida de uma criança, criando-lhes expectativas muito legítimas de que vai ter uma família, e, de um momento para o outro, cortar os laços afetivos. A fase de pré-adoção são seis meses, um período em que qualquer ser humano cria ligações afetivas. Se isso lhe é tirado por um motivo fútil, ou não válido, acho que o tribunal deve fazer prevalecer o interesse da criança em termos de danos morais.”
Usando uma linguagem mais jurídica, a advogada explica que a pré-adoção é como uma fase pré-contratual, onde os termos do contrato estão perfeitamente definidos pelas partes, bastando uma execução por si só. “Se, de um momento para o outro, sem um motivo aparente, os adotantes dizem ‘não quero mais, não gosto, não me apetece’, o contrato é quebrado. É um prejuízo inqualificável para a criança. Não vejo como é que não possa ser ressarcida por uma total defraudação das suas expectativas.”
Criminalizar a devolução? “Não me chocaria”
Quando se fala de responsabilidade civil fala-se de danos morais e de defraudação de expectativas. Numa devolução de uma criança não se pode falar de um crime à ofensa física. No entanto, a advogada Andrea Baptista não põe de lado a hipótese de estas situações serem criminalizadas. Para isso, era preciso rever a lei, já que para esta situação muito concreta há um vazio legal.
“Não me choca a criminalização de uma conduta dessa natureza quando se fala de uma pura desistência por motivo não justificativo. O que vou dizer não é juridicamente muito correto, mas o primeiro ilícito que me passa pela cabeça é a exposição ao abandono. Não estamos a falar de poder deixar a criança em risco de vida, ou de uma ofensa à sua integridade física, mas não deixa de ser uma exposição a abandono em termos emocionais. Não me chocaria nada que o legislador, de alguma forma, pudesse alterar o regime ou a norma legal que diz respeito ao abandono nas situações em que por motivo não justificado, leviano, os pretensos pais adotivos resolvam pura e simplesmente desistir”, detalha a advogada.
O Código Penal prevê penas de prisão efetivas para o crime de exposição ao abandono que variam entre 5 a 10 anos — esta última em caso de morte.
Para além do que se passa nos tribunais, Isabel Pastor, a diretora da unidade de adoção da Santa Casa, diz que estes candidatos são removidos das listas de espera e impedidos de tentar adotar novamente uma criança.
Depois de uma devolução, há uma corrida contra o tempo
Na maior parte dos casos, as crianças conseguem ser integradas e adotadas por outras famílias, explica Isabel Pastor, embora isso não seja sinónimo de que tudo fica imediatamente bem. “Uma criança que passa por isto torna-se naquilo a que, na nossa linguagem, chamamos uma criança NAP — com necessidades adotivas particulares. São as que têm mais dificuldade para encontrar famílias para as adotar e estão associadas a crianças mais crescidas, ou com problemas de saúde, défices ou multideficiência.”
Não são as únicas a quem isso pode acontecer. Uma criança mais nova, sem qualquer atraso de desenvolvimento, deficiência ou problema de saúde pode também tornar-se NAP. “O facto de ter sofrido uma segunda rejeição torna-a numa criança de difícil adotabilidade. Esta criança vai exigir mais — porque perdeu a confiança — e vai desafiar mais a família porque não acredita. Vai tornar esta adoção muito mais difícil”, detalha a jurista.
O que acontece a seguir depende das circunstâncias e da avaliação que for feita à criança. Já houve casos em que a paragem do processo foi feita ainda na fase de transição, ou seja, quando começam os primeiros contactos entre a família e a criança, ainda sem viverem sob o mesmo teto. Em 2018, foi comunicada ao Conselho Nacional de Adoção a interrupção do projeto de adoção de 14 crianças, referente a 13 processos, ou seja, duas seriam irmãs entregues à mesma família. Oito estavam em período de pré-adoção e seis em fase de transição (ainda sem partilhar casa com os futuros pais).
“Quando pára tudo nessa primeira fase podemos dizer que não há um grande estrago, a criança ainda está na fase de conhecimento e poderá rapidamente ser integrada noutra família, sem perda de tempo”, sublinha Isabel Pastor.
Há outras situações mais traumáticas, quando as interrupções acontecem ao fim de seis ou até de nove meses, já depois de prolongada a pré-adoção na tentativa de encontrar uma solução. “Esses casos podem exigir um esforço suplementar na preparação da criança: deixá-la respirar, fazer a história dessa situação. Aí temos também a noção de que o seu tempo útil de adotabilidade é relativamente reduzido. Quando coincide com crianças mais crescidas, de 7, 8, 9 anos, é uma corrida contra o tempo — o tempo que ela precisa para se restabelecer da situação e o tempo em que ainda tem hipótese de vir a ser adotada.”
O que é que correu mal para se chegar a uma devolução? Para responder à pergunta, Isabel Pastor faz distinção entre dois casos diferentes: a interrupção da pré-adoção, “quando há confluência de fatores maus, uns censuráveis, outros que não podem ser censurados”, e situações em que os pais, depois da adoção decretada, maltratam a criança.
“Não é só um fator, não é só uma família má que decide desistir ou fazer mal. Se ela fosse excluída logo no período de avaliação, por exemplo, teríamos evitado este resultado. Outro caso é quando uma família adotiva se torna negligente ou maltratante e aí estamos a falar de algo muito grave. Se isso acontece depois da adoção decretada, não é uma devolução, é uma adoção fracassada, e a criança reentra no sistema de proteção”, explica a diretora da unidade de adoção da Santa Casa. Também neste segundo caso, em que “há uma família maltratante que deve ser punida”, algo escapou durante a avaliação dos candidatos.
“Todo o processo é falível. Um dos grandes problemas de avaliação dos candidatos à adoção é que estamos a fazer juízos sobre o futuro. Estamos a olhar para uma pessoa e a projetá-la no seu papel de pai ou mãe. Esta projeção no futuro, feita com base em elementos que eu tiro agora, é que muitas vezes não corresponde e somos surpreendidos”, explica Isabel Pastor.
Quando isto acontece, as equipas técnicas também sofrem com o resultado. “Não podemos censurar essa equipa — ela própria se auto-censura e culpabiliza-se porque não ter identificado o risco. Se houve negligência da parte da equipa, aí já estamos no âmbito da competência disciplinar”, esclarece a jurista.
Em Portugal, não faltam candidatos à adoção e são sete vezes mais do que as crianças que precisam de uma nova família, segundo os dados oficiais. No final de 2018, ano em que se concretizaram 182 adoções, havia 1.919 candidatos à espera de conhecer uma criança. Nas instituições, eram 273 os menores à espera de pais, já com sentença de adotabilidade decretada pelo tribunal. Nesse mesmo ano, a maioria das famílias que concretizaram a adoção (35%) estiveram seis anos em lista de espera.
Perante esta realidade, a solução não poderia passar por apertar critérios de escolha de candidatos? “Outra incongruência no sistema é que estamos a avaliar candidatos hoje para serem pais daqui a cinco anos”, explica Isabel Pastor, o que quer dizer que a pessoa que hoje é considerada capaz, e que é reavaliada de três em três anos, de acordo com a lei, passados cinco anos “não é a mesma pessoa”, mesmo que não tenham ocorrido factos perturbadores na sua vida. “O próprio tempo de espera também contribui para uma expectativa de gratificação imediata que as pessoas se sentem legitimadas a ter. Se esperei este tempo todo, esperei para ser feliz. Mais dificilmente projeto que essa felicidade pode demorar e tem de ser construída com a criança que me vai dar dificuldades”, argumenta Isabel Pastor.
A alternativa poderia passar por sistemas utilizados em outros países, muito diferentes dos nossos, defende a diretora da unidade de adoção da Santa Casa. O exemplo é simples: as pessoas manifestam a sua intenção, mas se não houver falta de candidatos não são avaliados. Se houver falta de oferta, são contactados e, se ainda estiverem interessados, segue-se para a avaliação. “Não se faz um processo de avaliação para pôr a pessoa numa lista e ficar à espera seis anos. Será para ter uma resposta no prazo de um ano ou seis meses. É uma solução possível e na adoção internacional é muito feito: deixa-se de aceitar candidaturas quando há muitas à espera”, conclui Isabel Pastor.