Houve duas garantias que António Costa deixou na entrevista ao Clube de Jornalistas desta quarta-feira: uma para este ano e outra para 2024. As duas questões têm marcado a atualidade e até por pressão do Presidente da República que colocou ambas na agenda, uma delas logo no discurso da tomada de posse deste novo Governo, o terceiro de Costa, ao cortar as asas ao líder do PS em relação a um eventual sonho europeu. E o primeiro-ministro jura que vai mesmo ficar até ao fim.
Também assegura que não fará um orçamento retificativo, como Marcelo Rebelo de Sousa também aflorou. Aliás, diz mesmo que um retificativo acontecia mais depressa por causa de uma nova variante do SARS-CoV-2 do que por exigências que pudessem vir da situação internacional. A guerra na Ucrânia foi um dos temas da entrevista que aconteceu na Escola Superior da Comunicação Social e que se enquadra nos 50 anos das comemorações do 25 de Abril e dos 40 anos do Clube de Jornalistas — foi feita por cinco jornalistas de orgãos diferentes (Observador, Lusa, TSF, Público e um antigo jornalista da TVI). Costa diz que visita Kiev se for convidado e que “não poria as fichas todas” na adesão da Ucrânia à União Europeia neste momento.
Fique com o essencial desta entrevista de mais de uma hora e meia.
Visita a Kiev se for convidado. E adesão da Ucrânia não é urgente
Volodymyr Zelensky — que esta quinta-feira discursa na Assembleia da República — disse que Portugal “quase” defende a adesão da Ucrânia à União Europeia. Questionado sobre se António Costa lhe dá razão quando não vai a Kiev ao contrário de outros líderes europeus, o primeiro-ministro diz: “Se for convidado, irei com muito gosto.”
E vai ainda mais longe ao dar razão ao presidente ucraniano quando defende que “a urgência da Ucrânia nunca se resolve com o alargamento. Só se resolve com soluções que sejam compatíveis com a urgência. Por isso, o aprofundamento do acordo de associação com a União Europeia é o espaço ideal.”
“Colocar todas as fichas num processo que é incerto, necessariamente moroso e sujeito a múltiplas vicissitudes é um risco que acho muito grande. Há outra dimensão, que é a de saber se a União Europeia, ela própria, está preparada para novos passos de alargamento. Até agora, a União Europeia não tem sido capaz de acolher países como a Albânia, Montenegro, que têm uma dimensão bastante diferente da Ucrânia”, disse sobre o processo de adesão.
Para Costa, “é preciso primeiro saber se a União Europeia está em condições para ser efetivamente capaz de acolher um país que tem 40 milhões de habitantes e que é o maior país em território de toda a Europa.” Mas garante que há países que estão ainda mais recuados sobre esta posição já “que dizem ‘não’” à adesão imediata da Ucrânia.“Outros dizem ‘não’ enquanto os outros países que estão já em negociação não entrarem primeiro. Nem nós, União Europeia, nem a Ucrânia, temos qualquer interesse em que haja uma divisão na Europa. A maior ajuda que a União Europeia pode neste momento dar à Ucrânia é reforçar a sua unidade no seu apoio.”
Fora de Bruxelas e a provocação a Marcelo
No debate do Programa do Governo, Costa deixou em todas as entrelinhas — já que nunca foi diretamente questionado por nenhum deputado em dois dias de debate parlamentar — que ficaria até ao fim do mandato. Quando a pergunta foi finalmente colocada respondeu a cada um dos cenários possíveis para 2024 (ano de Europeias) em separado para excluir cada um deles.
“Em circunstância alguma em 2024, quando quer que seja, eu estarei disponível para ser presidente da Comissão Europeia”. Aqui a questão é, de acordo com o próprio, de disponibilidade para se manter mais anos em funções executivas. Em 2024 já será primeiro-ministro há nove anos e o cargo de presidente da Comissão Europeia é exigente, disse o próprio, e significaria mais cinco anos de funções dessa natureza.
“Quem está em funções executivas desde 1995 não vai iniciar um novo ciclo de mais cinco anos em 2024”, disse sobre essa altura garantindo ter “muitos colegas” que “estão em excelentes condições de poder exercer essas funções”.
Quanto a outros cargos europeus, nomeadamente o de presidente do Conselho Europeu que tanto lhe é apontado — e que já admitiu publicamente que esteve em cima da mesa em 2019, tendo recusado nessa altura para se recandidatar nas legislativas desse ano –, Costa é igualmente taxativo na rejeição. “Poderia haver essa possibilidade”, mas “não há”, disse, ao mesmo tempo que garantiu que é em Portugal que se sente “útil neste momento e até outubro de 2026”.
“A opção está feita e eu estou muito satisfeito, reconhecido e grato aos portugueses”, disse sobre esta matéria, revelando ainda estar “muito honrado” por lhe ser “atribuída [por Marcelo Rebelo de Sousa] uma legitimidade que até agora nunca tinha sido atribuída a nenhum primeiro-ministro”, que é “ter um mandato pessoal e direto dos eleitores para governar um ciclo completo”. “A nível nacional só o Presidente da República é que tinha habitualmente essa legitimidade”, disse em tom de provocação ao chefe de Estado. Quem levantou a questão pela primeira vez foi precisamente o Presidente da República e logo no discurso de tomada de posse do Governo.
Retificativo do atual Orçamento excluído
No plano nacional, António Costa tem sublinhado que só fez um único retificativo em quase sete anos de governação e que isso aconteceu por causa de uma pandemia. Agora admite que mais depressa retificaria o Orçamento por causa de uma nova variante do que por causa da Guerra na Ucrânia. “Agora, se me diz, posso garantir que não aparece uma nova variante em setembro que faça disparar um novo pico de pandemia? Bem, isso eu creio que ninguém no mundo está em condições de garantir que não há essa nova variante”. Isso significa que é mais certa uma alteração por causa da pandemia do que por causa da Guerra? “Isso claramente. A situação internacional não vejo em que é que possa ter uma tradução de uma pressão sobre a despesa que exigisse um orçamento retificativo.”
Alterações a Orçamentos em vigor são obrigatórias quando há uma alteração à despesa ou à receita prevista e Costa garante que nada disso acontecerá este ano. Está “completamente fora de questão” um orçamento retificativo, disse, negando que a questão internacional possa significar uma “pressão sobre a despesa”. “Está completamente fora de questão. Estando já na fase do ano em que estamos, não há quadro previsível que justifique um orçamento retificativo daqui até lá”, disse António Costa.
Costa contestou ainda a leitura sobre as declarações de Marcelo há duas semanas sobre o Orçamento do Estado, rejeitando que seja um aviso de retificativo. O Presidente da República colocou, nessa altura, dúvidas sobre a capacidade deste OE para responder à atual situação nacional pressionada pelo contexto internacional: “Mesmo assim, chega? Ou não será um Orçamento que vai ter de ir sendo apreciado e reapreciado à medida que a situação evoluir?”. E Marcelo até deu logo resposta às suas próprias questões: “É inevitável, é inevitável. Se a inflação baixar é uma coisa, se a inflação continuar a subir é outra coisa, são dois filmes diferentes”.
Ora, Costa diz que irá “apreciar” medidas ao longo do tempo, mas rejeita que isso signifique retificar o Orçamento.
Aumentos salariais em 2023. Quanto? Depende da inflação
Já para o ano de 2023 e o Orçamento que ainda está por apresentar, o líder socialista garante já que “voltará a haver atualização anual dos salários. Quanto é que vai ser a atualização anual? Bom, isso vamos ter de negociar com os sindicatos – como está sempre sujeito a negociação sindical – e acho que dependerá de vários fatores: dependerá seguramente de se confirmar ou infirmar aquilo que são hoje as previsões sobre a evolução da inflação”.
Neste capítulo, a convicção de Costa continua a ser que a inflação atual é “conjuntural”. A ideia já tinha sido defendida pelo primeiro-ministro do debate do Programa do Governo e agora, nesta entrevista, António Costa aproveitou as recentes previsões do Fundo Monetário Internacional. “Prevê-se uma inflação de 4% em Portugal e para 2023 [o FMI] estima 1,5%, ou seja, uma queda muito significativa já no próximo ano. Há outras instituições menos otimistas, mas o Banco Central Europeu (BCE) aponta para a mesma trajetória, entendendo que tenderemos a estabilizar na zona euro com uma inflação na ordem dos 2%.”
“Se este pico inflacionista, em vez de ser um pico, é um longo planalto ou, pior ainda, vai continuar a subir, é um outro quadro completamente distinto. [O valor da atualização dependerá] também de quais são as circunstâncias económicas e a capacidade orçamental que o país terá”, disse ainda sobre o que determinará o aumento que já promete para 2023.
Cavaco “azedo”
Na semana passada, o antigo Presidente da República Cavaco Silva escreveu um artigo de opinião no jornal Público crítico dos executivos de António Costa a quem não reconhece “coragem política”. Confrontado com estas palavras, o primeiro-ministro começou por atirar que “ninguém é bom juiz em causa própria e alguns não são bons juízes em causa alheia,”
Cavaco Silva. António Costa tem “um grau de coragem política muito baixo”
Quando questionado sobre se era o caso de Cavaco, António Costa disse apenas que o artigo “não tem grandes novidades relativamente àquilo que se sabe que é o pensamento dele” e que é “talvez um bocadinho mais azedo do que é habitual”. “Mas é preciso ser justo e perceber que quem acabou de ter uma derrota no PSD e outra derrota no país é capaz de estar um pouco azedo”, atirou.
E entrou mesmo num longo comparativo com o antigo Presidente — o primeiro a nomeá-lo primeiro-ministro, em 2015, após longas negociações à esquerda para a formação da “geringonça”. “Tivesse Cavaco Silva aplicado a minha ideia enquanto governou e o Produto Interno Bruto do país seria francamente diferente”, disse apontando concretamente o alinhamento da direita com “o choque fiscal e a desregulação do mercado de trabalho” quando fala em “grandes reformas”. E contrapõe: “Eu entendo que o grande investimento que temos de fazer para melhorar a produtividade das empresas e a competitividade do país é investir nas qualificações e na inovação.”
“Mas, se formos ver com séries longas, verificamos o seguinte: o país cresceu mais nos anos de António Guterres do que nos de Cavaco Silva; e mais nos anos de José Sócrates do que nos de Durão Barroso e Santana Lopes. No que me diz respeito, cresceu francamente mais não só do que na média dos anos de Pedro Passos Coelho — mas seria injusto fazer esta comparação dadas as circunstâncias em que governou [o anterior primeiro-ministro] –, mas também sete vezes do que na média dos 14 anos anteriores”, acrescentou ainda na mediação de forças com o antigo primeiro-ministro do PSD que conquistou duas maiorias absolutas seguidas (uma em 1987 e outra em 1991).
João Leão. “A última coisa que os ministros das Finanças fazem é andarem a ver cada um dos milhares de processos que têm de passar lá para autorização”
António Costa também foi questionado sobre a saída de dois dos membros do seu Governo, nomeadamente Alexandra Leitão e Pedro Siza Vieira, mas não quis apontar as razões dessa escolha. Sobre os seus anteriores ministros falou apenas de João Leão a propósito da polémica do ISCTE. E para defendê-lo.
O ex-ministro das Finanças saiu do Governo para vice-reitor do ISCTE e, além disso, Leão iria, segundo noticiou o Público, gerir o projeto do Centro de Valorização de Transferência de Tecnologias (CVTT) daquela universidade, cujo financiamento foi incluído no último Orçamento do Estado que ajudou a elaborar. “A escolha dele para vice-reitor nada tem a ver com este processo, visto que a candidatura na CCDR foi aprovada em 2019 e a autorização desta despesa foi em [julho de] 2021.” Altura em que Costa garante que João Leão não “podia imaginar que estaria hoje fora do Governo e que teria regressado ao ISCTE.”
Quanto ao financiamento autorizado no Orçamento, Costa disse que não o conhece “em detalhe”, mas assegura que, do que conhece do processo, “João Leão não tomou ‘aparentemente’ nenhuma decisão” e cita ainda a reitora Maria de Lurdes Rodrigues (ex-ministra da Educação de um Governo PS) para dizer que as funções que Leão irá desempenhar não terão a ver “diretamente” com o centro de investigação. Sobre o assunto disse, no entanto, ter a “a certeza absoluta que a última coisa que os ministros das Finanças fazem é andarem a ver cada um dos milhares de processos que têm de passar lá para autorização.”