Desgastado politicamente e numa jogada de tudo ou nada para tentar manter a relevância do partido, Pablo Iglesias abandonou o governo de Pedro Sánchez e arriscou uma candidatura às eleições autonómicas em Madrid. Ao confirmar que não se vai recandidatar a secretário-geral do Podemos, o líder incontestado abriu também o debate em torno da sua sucessão, que se avizinha difícil para um partido que sempre viveu em torno de uma figura carismática. O processo começou, mas são mais as dúvidas do que as certezas.
Numa entrevista à TVE na semana passada, Iglesias reconheceu que o Podemos precisa de uma “renovação” e defendeu a necessidade de uma “liderança coletiva e mais coral”, apesar de não ter adiantado qualquer data para ceder o lugar. Um pormenor importante, uma vez que Iglesias foi reeleito líder do partido no congresso do último ano e agora remeteu a sua sucessão para uma futura reunião magna, sem data marcada — se não houver um congresso extraordinário e forem seguidos os estatutos, Iglesias pode chefiar o Podemos até 2024, sendo que as legislativas estão marcadas para o ano anterior.
Iglesias, aliás, deixou no ar que a sua saída de cena pode levar tempo, e as prioridades do ex-vice-presidente do governo espanhol estão agora centradas nas eleições autonómicas de Madrid. O desfecho eleitoral do próximo dia 4 de maio é, por isso, considerado um momento decisivo para o rumo de um partido que, nesta fase, não vislumbra qualquer oposição interna à linha ditada pela atual liderança.
“As facções dentro do Podemos são marginais, há muito pouca dissidência. Todos os dissidentes saíram do partido e não há neste momento alternativa nem capacidade crítica”, afirma ao Observador o politólogo José Ignacio Torreblanca, diretor do think tank European Council on Foreign Relations (ECFR) em Madrid.
Desde a sua formação em 2014, o Podemos tem girado à volta da figura carismática de Pablo Iglesias, uma tendência que, ao longo dos últimos sete anos, se foi consolidando à medida que membros fundadores como Íñigo Errejón, Juan Carlos Monedero ou Carolina Bescansa iam abandonando o partido em discordância com o líder.
Por esse motivo, uma vez que figuras políticas que poderiam ser apontadas como potenciais sucessoras foram saindo, o politólogo Fernando Casal Bertoa não crê que exista, neste momento, alguém no Podemos com o carisma para substituir Iglesias. Para explicar a sua posição, faz uma comparação com partidos populistas europeus.
“Não conseguimos pensar no Vox sem Santiago Abascal; no Força Itália sem Silvio Berlusconi; no Fidesz sem Viktor Orbán; ou na Frente Nacional sem Marine Le Pen”, diz ao Observador o professor de Ciência Política na Universidade de Nottingham, em Inglaterra, especializado em política comparada. “O Podemos é um partido centralizado na figura de Pablo Iglesias e muitos dos partidos populistas europeus têm essa característica de um líder carismático”, justifica Bertoa.
Quem é Yolanda Díaz, a aparente escolha de Iglesias para a sua sucessão?
Num partido onde não existem correntes que ponham em causa a liderança seguida até agora, a continuidade é encarada como natural e nomes como Irene Montero, ministra da Igualdade e mulher de Iglesias, ou o líder parlamentar do Podemos, Pablo Echenique, têm sido ao longo do tempo apontados como possíveis sucessores de Iglesias.
Mas, apesar de ter conseguido chegar ao governo em novembro de 2019 (embora tenha perdido sete deputados em relação às legislativas de abril do mesmo ano), o Podemos vem acumulando uma série de maus resultados eleitorais que têm aumentado as preocupações quanto ao seu futuro. A continuidade acarreta riscos e Iglesias parece querer refrescar a futura liderança do Podemos, com a sua escolha a recair sobre Yolanda Díaz, ministra do Trabalho promovida a vice-presidente do governo espanhol.
“Creio que é evidente que a liderança de Yolanda Díaz no Unidas Podemos contribui e agrega mais. O seu estilo será muito mais difícil de atacar”, disse Iglesias na já referida entrevista à TVE, onde anunciou que não se iria voltar a candidatar a secretário-geral do partido. No passado, Iglesias também já tinha afirmado que Díaz tem todas as características para ser a “próxima presidente do governo de Espanha”.
Militante do Partido Comunista de Espanha, que tem concorrido em coligação com o Podemos, Yolanda Díaz, de 49 anos, teve uma ascensão rápida na política espanhola, chegando ao executivo em 2020, quatro anos depois de ter assumido a função de deputada. Filha de Suso Díaz, um operário galego preso durante a ditadura franquista, destacou-se na Galiza ao entrar e ser eleita pela Esquerda Unida nas autonómicas de 2012, ano em que chamou a atenção de Pablo Iglesias, que viria a fundar o Podemos dois anos depois.
A relação entre ambos tem sido de proximidade e, desde que chegou ao governo de Pedro Sánchez, Yolanda Díaz tem visto a sua popularidade aumentar e é hoje considerada como uma das ministras mais reputadas do executivo.
“Yolanda Díaz representa uma rutura com as ideias mais disruptivas de Iglesias, como a profunda componente anti-sistémica e impugnadora que Iglesias tem sobre a Constituição de 1978, a Monarquia, ou sobre o referendo de autodeterminação da Catalunha”, afirma José Ignacio Torreblanca. “A sua agenda é de políticas pragmáticas, de esquerda, mas dentro do sistema e não fora ou contra ele”, acrescenta o politólogo.
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Além disso, Yolanda Díaz é conhecida pela sua capacidade de diálogo, que se tem traduzido em acordos entre sindicatos e patrões, apresentando um perfil mais conciliador do que o de Pablo Iglesias, associado a uma postura de confronto.
“Atualmente não existem diferenças políticas ou ideológicas relevantes entre Díaz e Iglesias. Há sim diferenças nas formas de fazer política. Uma mais ponderada e outra mais impetuosa”, afirma ao Observador, por seu lado, o politólogo Eduardo Bayón, especializado em comunicação política, considerando que a importância da agora vice-presidente do governo dentro do Podemos tem ocorrido naturalmente. “A ascensão no governo é a prova de que Díaz refletiu uma mudança natural, precisamente pela sua valorização e crescimento enquanto figura política no último ano”, sublinha Bayón.
“Iglesias não é um líder de segunda fila ou discreto que fique na sombra”
Mas, enquanto não há data para um novo congresso do Podemos e se aguarda pelo próximo teste do partido nas urnas, parece prematuro antecipar já uma saída de cena de Iglesias e dar como adquirido que Yolanda Díaz vai conseguir impor a sua política no partido.
A esse respeito, Fernando Casal Bertoa sublinha que Yolanda Díaz não tem o carisma de Pablo Iglesias e que, a médio prazo, pode ser incompatível o discurso conciliador da vice-presidente do governo espanhol com a retórica mais radical de Iglesias e outros dirigentes do Podemos, impedindo assim uma possível moderação que pudesse levar o partido a roubar votos ao PSOE.
“É muito difícil que Yolanda Díaz, que parece ter um discurso muito mais moderado, possa ter um efeito moderador no Podemos enquanto pessoas como Echenique ou Iglesias continuarem com um discurso radical. Tudo dependerá se Yolanda Díaz consegue ou não impor a sua visão na política podemista”, antevê o analista político.
Além disso, até que a transição de poder seja consumada nas hostes do Podemos, é expectável que Iglesias continue presente, e alguns analistas têm apontado para a possibilidade de uma liderança bicéfala.
Nesse sentido, o Partido Nacionalista Basco (PNV), no qual existe uma divisão de poderes entre o presidente do governo basco, Iñigo Urkullu, e Andoni Ortuzar, presidente do partido, tem sido apontado como um possível modelo a seguir. Uma possibilidade que, no entanto, pode não ir ao encontro do perfil de Iglesias.
Líder do Podemos denuncia ataque “da extrema-direita” a sede do partido
“Esse modelo não vai funcionar, porque Iglesias não é um líder de segunda fila ou discreto que fique na sombra”, antevê José Ignacio Torreblanca, considerando que o ainda líder do Podemos pode estar a equacionar uma forma de se reconectar com as bases do partido e eleitores que se foram afastando.
“Creio que a intenção [de Iglesias] não é ceder poder, mas simplesmente afastar-se do poder institucional, que o desgasta, e tentar reorganizar-se ideológica e politicamente, fazendo oposição a partir das ruas”, acrescenta o analista do ECFR.
Futuro do Podemos decide-se em Madrid
Enquanto se traçam cenários sobre os próximos capítulos da história do Podemos, aproximam-se as eleições autonómicas de Madrid, cujo desfecho será decisivo para tudo o que venha a acontecer no futuro do partido. Conforme escreve o El País, “do resultado dessas eleições depende tudo o resto. Um fiasco aceleraria a saída [de Iglesias]. O êxito torná-lo-ia mais imprescindível”.
O afastamento gradual de Iglesias da liderança do Podemos já era previsto na imprensa espanhola há algum tempo, tal como a ascensão, a médio prazo, de Yolanda Díaz rumo à liderança do partido, sendo que sua militância no PCE, que tem concorrido ao lado do Podemos, não parece constituir problema. No entanto, ao convocar eleições antecipadas na capital espanhola, a presidente da Comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso, precipitou os acontecimentos e levou Iglesias a tomar uma medida drástica.
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O líder do Podemos ainda sondou alguns nomes destacados do partido, como o ministro do Consumo, Alberto Garzón, mas acabou por não encontrar um nome suficientemente forte para impedir que o Podemos ficasse fora do parlamento regional — as primeiras sondagens davam o partido abaixo do limiar de 5% necessário para ter representação parlamentar.
Precisamente por temer um descalabro em Madrid, que teria consequências inevitáveis a nível nacional, Iglesias deu o corpo às balas e avançou como cabeça-de-lista às autonómicas na capital espanhola. Ambicionava uma frente de esquerda para enfrentar o Partido Popular de Ayuso e o Vox, mas viu o antigo aliado no Podemos Iñigo Errejón a fechar-lhe a porta a um acordo de coligação pré-eleitoral.
Apesar de já preverem que o Podemos eleja deputados em Madrid, as últimas sondagens, aliás, põem o partido de Pablo Iglesias atrás do Más Madrid, encabeçado por Mónica García. A confirmar-se, será uma derrota para Iglesias, que se apresentou a votos para se afirmar como principal voz da esquerda.
“Madrid é muito importante, porque é a última oportunidade e o último cartucho do Podemos para reverter um declínio eleitoral que vem de outras eleições, na Catalunha, País Basco, entre outras”, reitera o politólogo José Ignacio Torreblanca, acrescentando que as autonómicas na capital serão também fundamentais para “averiguar qual o apoio pessoal que Iglesias tem quando apela aos seus eleitores”.
De acordo com as sondagens agrupadas pelo El Confidencial, o PP consegue uma vitória confortável nas eleições, obtendo mais de 40% dos votos, apesar de não conseguir, sozinho, os 69 deputados. Nesse sentido, a solução mais apontada pela imprensa espanhola é a de uma coligação com o Vox, de extrema-direita, que tem cerca de 8% dos votos.
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Quanto ao Podemos, embora acima do limiar dos 5% que lhe garante a representação parlamentar, surge atrás do PSOE, encabeçado por Ángel Gabilondo, e do Más Madrid, embora a diferença com este último seja de poucos pontos percentuais. Nas contas, entra ainda o Ciudadanos, mas algumas sondagens põem o partido de Inés Arrimadas, em crise profunda, fora da representação parlamentar.
Apesar de ainda faltarem cerca de três semanas para as eleições, tudo indica que a direita vai continuar a governar a capital espanhola, embora os partidos de esquerda ambicionem reverter a tendência e destronar Ayuso, o que poderia ser uma enorme reviravolta para o futuro do Podemos. Mas, independentemente do resultado de 4 de maio, adivinha-se uma reflexão profunda no partido que sempre esteve centrado em Pablo Iglesias e que enfrenta agora a incerteza quanto ao seu futuro.