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Com balas para durar os primeiros meses de 2023, o Presidente ucraniano deveria estar satisfeito. Mas não está e pede mais ajuda aos aliados

SOPA Images/LightRocket via Gett

Com balas para durar os primeiros meses de 2023, o Presidente ucraniano deveria estar satisfeito. Mas não está e pede mais ajuda aos aliados

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E se as balas acabarem? Guerra está a reduzir stocks de armamento no Ocidente e na Rússia (embora Putin diga que não)

Os arsenais estão a ficar mais pequenos e o ritmo a que se disparam balas na Ucrânia é superior à capacidade atual de produção de armamento. Tática de guerra pode mudar se faltar munição.

Vamos esquecer os Patriot. Quando o presente dos Estados Unidos chegar à Ucrânia, haverá mais vida além do sistema de defesa antiaérea. No pacote vão 100 mil cartuchos para canhões, 50 mil rockets e 75 mil cartuchos para artilharia de grande calibre e balas de morteiro. Tudo somado, o exército de Kiev terá munição suficiente para queimar durante dois meses na guerra contra a Rússia. Há mais um detalhe: são balas (e não só) para usar em equipamento soviético. Em remessas anteriores, chegou à Ucrânia munição para a artilharia padrão da NATO, como, por exemplo, projéteis de 155 mm para obuses. Os canhões M114 Howitzer, que os norte-americanos têm cedido a Kiev em grande quantidade, usam este tipo de munição.

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Com balas para durar os primeiros meses de 2023, o Presidente ucraniano deveria estar satisfeito. Mas não está. Na visita que fez aos Estados Unidos em dezembro, agradeceu toda a ajuda que a administração Joe Biden lhe tem dado e pediu mais. E mais. E mais. Na conferência de imprensa conjunta, um dos jornalistas presentes perguntou ao Presidente dos Estados Unidos se o seu país não tem capacidade de entregar a Kiev tudo o que Volodymyr Zelensky pede. Com um sorriso, e com o dedo a apontar para o Presidente ucraniano, Biden respondeu: “Ele acha que sim.”

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Ao contrário da convicção de Zelensky, muitas vozes nos Estados Unidos — incluindo algumas do Pentágono e de fabricantes de armas — têm alertado para o que está a acontecer aos stocks de armamento no Ocidente. Estão a ficar vazios e a capacidade de produção não estava preparada para alimentar uma guerra, apenas para gerir o que fica estacionado nos armazéns.

Sobre o que está guardado nos paióis russos, não há certezas, apenas especulação. Em outubro, depois de o exército russo ter perdido cerca de 700 tanques na Ucrânia, começaram a surgir na frente de batalha T-62, tanques com 50 anos de idade, que Moscovo já tinha reformado aos milhares. Antes da guerra, alguns deles estavam simplesmente em exposição em locais públicos — isto levou o Ocidente a vaticinar que a Rússia estava a ficar sem armamento.

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Na véspera de Natal, era a Inteligência britânica que avisava: Moscovo está a ficar sem munições e mísseis de cruzeiro. “É altamente provável que a escassez de munições seja o principal fator que está a limitar as operações ofensivas russas na Ucrânia”, escrevia o Ministério da Defesa britânico na sua atualização diária da guerra.

O Presidente russo não partilha desse ponto de vista. A 22 de dezembro, logo após o encontro de Biden e Zelensky, Vladimir Putin desdenhou da bateria Patriot, o sistema que Kiev tanto deseja, oferecido pela América. “Podem dar todos os Patriot que quiserem à Ucrânia. Temos capacidade de produzir mais armamento”, respondia Putin.

“A diferença é que os ucranianos estão à beira de esgotar os paióis e munições, nós, pelo contrário, temos recursos suficientes. Conseguimos não prejudicar outros recursos da economia, e ainda assim abastecer os nossos exércitos”, argumentou o Presidente russo em conferência de imprensa.

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Do Reino Unido, a mensagem (poucos dias antes) era a oposta. “Deixem-me dizer a Putin esta noite o que os seus próprios generais e ministros provavelmente têm medo de dizer”, disse o almirante britânico Tony Radakin, num encontro do think tank Royal United Services Institute (RUSI). “A Rússia enfrenta uma escassez crítica de munições de artilharia. Isso significa que a sua capacidade de conduzir operações terrestres ofensivas bem sucedidas está a diminuir rapidamente.”

Russian Army  TOS-1A "Solntsepyok (Blazing Sun)" multiple

TOS-1, um lançador múltiplo de foguetes soviético

SOPA Images/LightRocket via Gett

Com menos munição, ataques têm de ser mais contidos

Durante os primeiros meses de guerra, assistiu-se a uma estratégia do lado russo que passava por fazer chover mísseis e balas nas cidades ucranianas. Aconteceu, por exemplo, com Kharkiv, depois de terem retirado as tropas. À distância, mas ao alcance da artilharia, os bombardeamentos foram intensos.

Com a munição a falhar, pode a estratégia de guerra mudar? “Pode haver uma mudança na forma de lutar devido à falta de munição”, responde Simon Schleigel, analista sénior do Crisis Group, ao Observador.

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“Há uma grande hipótese de que isso possa acontecer e que os ataques abrandem. Já vimos isso acontecer nesta guerra. O arsenal de mísseis dos russos está diminuído e não podem usá-lo como fizeram no início. Não podem usá-lo tantas vezes, têm de planear melhor”, sublinha o alemão, especialista em assuntos ucranianos.

“Os russos não estão a ficar sem artilharia, mas têm muito menos munições do que tinham no início da guerra, e torna-se mais difícil usá-la de forma indiscriminada, que foi a tática que usaram no início, em Severo§donetsk, onde despejaram artilharia sobre os ucranianos”, sublinha Simon Schleigel. Esta falta de munição, sendo um cenário que afeta os dois lados, prejudica mais os russos do que os ucranianos, na opinião do analista.

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“Os russos têm de ser mais ponderados na forma como usam a munição e isso é algo em que os ucranianos são muito bons. Viveram essa situação nos últimos 8 anos, no Donbass, sempre com falta de munição”, recorda Simon Schleigel que, antes da guerra, viveu naquela região da Ucrânia. “Agora têm equipas de artilharia muito treinadas, habituadas a usar munição de forma mais precisa do que os russos. Os russos vão ter de se adaptar enquanto que os ucranianos já estão habituados a fazer isso.”

A ideia defendida por Simon Schleigel segue na mesma direção que o já referido relatório de inteligência britânica: a falta de munição é o único travão para a ofensiva em grande escala da Rússia — algo que, no Ocidente, também se acredita que estará a ser preparado. Para isso, será preciso armamento.

Mykhailo Podolyak, conselheiro de Zelensky, tem a mesma crença:  a Rússia só tem mísseis de cruzeiro suficientes para dois ou três ataques em força contra a Ucrânia. Apesar disso, um dia depois do Natal, Podolyak afirmava que, nas 24 horas anteriores, os russos tinham bombardeado dezenas de cidades nas regiões de Lugansk, Donetsk, Kharkiv, Kherson e Zaporíjia.

“Há uma grande indústria de armamento na Rússia. Mas estão a gastar tanto que precisam de comprar a outros países, porque a capacidade de produção não é suficiente para agora, o que não quer dizer que não seja suficiente no futuro. Penso que o objetivo é restaurar toda a capacidade do país e produzir tanta munição quanto o exército precisa. Agora vive-se uma situação de emergência, gastaram imensa munição, e por isso têm de comprá-la noutro lado.”
Oleg Ignatov, analista do think tank Crisis Group

Produtores de armas queixam-se

A 3 de dezembro, o Fórum Reagan de Defesa Nacional organizava nos Estados Unidos um painel de debate sobre a Ucrânia. Entre os presentes, estava o CEO da Raytheon Technologies que não tentou tapar o sol com uma peneira.

“O problema é que consumimos muito stock nos primeiros dez meses da guerra”, disse Greg Hayes. “Basicamente, gastámos 13 anos de produção de Stinger e cinco anos de produção de Javelin.” Portanto, resumiu, a questão é como é que vão reabastecer e recuperar os stocks. Além da Ucrânia, também Taiwan procura Stingers e Javelins para criar uma defesa porco-espinho.

Desde 1977 que a Raytheon produz Stingers, mas a última vez que o Pentágono comprou um novo sistema foi em 2004, há quase 20 anos. Atualmente, a capacidade de produção mensal da principal fabricante de armas do mundo, em parceria com a Lockheed Martin, é de 400 Javelins.

Embora os números exatos não sejam conhecidos, por questões de segurança, sabe-se que até maio de 2022, os Estados Unidos enviaram, pelo menos, 5.500 Javelins e 1.400 Stingers para a Ucrânia. Nesse mesmo mês de maio, a Raytheon assinou um contrato de 642 milhões de dólares (558 milhões de euros) com o exército norte-americano para produzir mais sistemas Stinger.

Os contratos assinados entre Estados Unidos e fabricantes de armas continuam. No mesmo painel participou Christine Wormuth, secretária do Exército dos Estados Unidos, que revelou alguns dos números mais recentes. Para poder reabastecer stocks, foram assinados novos contratos com a indústria de defesa no valor de 6 mil milhões de dólares (5,3 mil milhões de euros).

“No mês passado [novembro], por exemplo, fechamos contratos com a Raytheon para seis baterias de NASAMS”, um sistema de defesa aérea. “Também fechámos contratos com a Excalibur. E fechámos contratos com a General Dynamics, IMT Defense e outra empresa para aumentar a produção de munição de 155 milímetros, que tem sido crítica para os ucranianos”, esclareceu Christine Wormuth.

Quando entrou em detalhes, a secretária do Exército esclareceu que a General Dynamics Corp. assinou um contrato para construir uma nova linha de produção para peças de obuses de 155 mm numa fábrica nos arredores de Dallas. Objetivo? Aumentar a produção mensal de projéteis de 14 mil para 20 mil até à primavera e, em seguida, chegar aos 40 mil até 2025.

A girl passes by graffiti depicting a Ukrainian serviceman

Um Javelin é retratado num grafitti numa rua ucraniana

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Apesar de acreditar que os Estados Unidos vão conseguir aumentar a produção, a secretária do Exército deixou um recado aos aliados. “Não deveríamos ter de fazer isso sozinhos”, disse Christine Wormuth, deixando escrito nas entrelinhas que os restantes Estados membros da NATO também devem fazer esforços para aumentar a produção de armamento.

Mas mesmo que os governos se esforcem, as balas não vão simplesmente surgir de um dia para o outro. Num artigo de opinião, Maiya Clark, investigadora sénior do Heritage’s Center for National Defense, alerta para esse problema. “Os stocks de munição dos EUA estão a esgotar-se rapidamente à medida que a guerra na Ucrânia continua. Stocks suficientes de munições são vitais para a defesa dos EUA. Uma vez esgotados, o Departamento de Defesa não pode simplesmente comprar mais munições – a fabricação leva anos”, escreve a especialista em Defesa.

Esse é o mesmo aviso de Simon Schlegel: “A capacidade industrial tem de ser criada primeiro. Pode ser criado esse potencial, mas leva o seu tempo — mais tempo do que aquele que demora a reduzir o volume de munições.” Na sua opinião, não há base industrial, nem no Ocidente nem na Rússia, para dar resposta às necessidades desta guerra. “Ninguém esperava uma guerra tão grande, que consumisse tanta munição. Neste momento, está a consumir-se mais munição por dia do que a que pode ser produzida.”

Já o politólogo russo Oleg Ignatov vê conjunturas diferentes na Ucrânia e na Rússia. O primeiro país depende das ajudas dos seus aliados, enquanto o segundo depende de si próprio, embora possa comprar armas a terceiros, como a Coreia do Norte ou o Irão — e há rumores de que o tem feito.

“Há uma grande indústria de armamento na Rússia. Mas o exército está a gastar tanto que é preciso comprar a outros países, porque a capacidade de produção não é suficiente para agora, o que não quer dizer que não seja suficiente no futuro”, defende Ignatov em conversa com o Observador. Na sua opinião, o objetivo de Moscovo é restaurar toda a capacidade do país e produzir tanta munição quanto a que o exército precisa. “Agora vive-se uma situação de emergência, gastaram imensa munição, e por isso têm de comprá-la noutro lado, mas a produção está a aumentar. Todos os dados mostram isso e o objetivo é resolver este problema.”

Já a Ucrânia, refere o analista do think tank Crisis Group, apesar de ter indústria de armamento, não tem a dimensão da da Rússia, além de que terá sido danificada durante os ataques. “E, claro, não tem capacidade para produzir para uma guerra em grande escala — e é desse tipo de quantidade de munição que precisam.” Se a guerra continuar, e se o sistema de defesa estiver cada vez mais eficaz, a Ucrânia poderá ser capaz de produzir mais internamente, acredita.

“Neste momento, estão completamente dependentes do Ocidente”, esclarece Oleg Ignatov. ”A maioria da munição vem do Ocidente, até porque a Ucrânia está a usar cada vez mais armamento ocidental, e não tem capacidade de produção desse tipo de armas. Isso significa que o armamento tem de ser fornecido pelos seus aliados.”

O analista russo recorda que durante a Segunda Guerra Mundial faltou munição e que esta não é uma situação impossível de acontecer, embora, na sua opinião, não seja isso que vai fazer a guerra terminar ou parar subitamente. “A Ucrânia depende do Ocidente e a Rússia depende de si própria. Procurar munição fora de casa é uma situação temporária para Moscovo. No futuro sabe que tem de se bastar. Para a Rússia, o problema não será munição, mas dinheiro. Se conseguir continuar a vender petróleo, gás, metalurgia, conseguirá pagar a guerra e as munições.”

“Não há base industrial, nem no Ocidente nem na Rússia, porque ninguém esperava uma guerra tão grande, que consumisse tanta munição. Neste momento, está a consumir-se mais munição por dia do que a que pode ser produzida. (...) A capacidade industrial tem de ser criada primeiro. Pode ser criado esse potencial, mas leva o seu tempo — mais tempo do que aquele que demora a ver o volume de munições diminuir.”
Simon Schleigel, analista do think tank Crisis Group

Estados Unidos investem na modernização das fábricas

No pacote de gastos anuais aprovado pelo congresso norte-americano no dia em que Zelensky visitou os Estados Unidos, 675 milhões de dólares (603 milhões de euros) são para usar ao longo de três anos na modernização das fábricas de armamento norte-americanas. Muitas das infraestruturas existentes, sejam do Governo ou privadas, datam da Segunda Guerra Mundial. Outras são ainda mais antigas, escreve o New York Times.

No seu mais recente relatório, de 5 de dezembro, a Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) dá conta de que as vendas dos 100 maiores fabricantes de armamento do mundo cresceram em 2021, e prevê que, com a guerra na Ucrânia, a procura se mantenha elevada. Mas, da mesma forma que a pandemia tornou o crescimento mais lento do que o esperado (por provocar ruturas de matérias primas devido ao encerramento de fábricas), a guerra pode fazer o mesmo, segundo o instituto internacional. É que a Rússia, lembra o SIPRI, é um dos principais fornecedores de matérias-primas usadas na produção de armas.

“Isso pode prejudicar os esforços contínuos dos Estados Unidos e da Europa para fortalecer as suas forças armadas e reabastecer os seus stocks depois de enviar milhões de dólares em munição e outros equipamentos para a Ucrânia”, lê-se no documento. A própria Rússia está a deparar-se com problemas e as suas empresas tiveram dificuldade em encontrar semicondutores e, claro, as sanções do Ocidente também complicam as transações.

“Aumentar a produção leva tempo”, alerta Diego Lopes da Silva, investigador sénior do SIPRI, na nota enviada à imprensa. “Se as interrupções na cadeia de fornecedores continuarem, pode levar vários anos para alguns dos principais produtores de armas conseguirem responder à nova procura criada pela guerra na Ucrânia.”

À semelhança do que sucede desde 2018, as cinco primeiras empresas da lista são norte-americanas: Lockheed Martin, Raytheon, Boeing, Northrop Grumman e General Dynamics. Há seis empresas russas no top 100 de 2021 quando, antes da invasão, a indústria de armas russas dava sinais de estagnação.

“Os ucranianos têm cada vez armas mais modernas e vemos que o sistema de defesa aérea está a funcionar”, defende Oleg Ignatov, sublinhando que a defesa de mísseis e de drones está mais eficaz. “E será mais eficaz à medida que a Ucrânia receber mais armas do Ocidente. A Ucrânia está forte e está a ficar mais forte, mas não me parece que a Rússia esteja a ficar mais fraca, ou, pelo menos, não está a ficar mais fraca rapidamente.”

Quanto ao fim do conflito, e frisando que o mundo não assistia a nada semelhante desde a Segunda Guerra Mundial, Oleg Ignatov não acredita que seja por este caminho que este capítulo se encerra. “Esta guerra há-de acabar, mas não será pela falta de munições. Penso que terá a ver com o preço dos combustíveis, ou por causa dos embargos das exportações russas, ou porque a Ucrânia ganha e a Rússia perde. Ou vice-versa. Mas não por causa do défice de munição.”

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