“Obrigado por ficarem aqui até ao meu concerto” é o tipo de frase que esperamos de um artista desconhecido e relegado para um alinhamento às tantas da noite, temeroso de tocar para 10 pessoas; não de um dos maiores fenómenos da pop da última década. Mas foi precisamente o que Ed Sheeran proferiu depois de arrancar o seu concerto com “Castle on the Hill” de forma bombástica, com direito a fogo de artifício. Das duas uma: uma frase destas denota extrema modéstia ou extrema falta dela — e no caso do cantautor britânico, é realmente uma incógnita deslindar qual das duas caracterizações é a verdadeira.
Vejamos: é difícil de acreditar que o cabeça de cartaz do segundo dia do Rock in Rio Lisboa não esperasse que a gigantesca maioria daquelas 80 mil pessoas presentes não estivesse lá para vê-lo. Por outro lado, o ethos de Sheeran parece continuar a ser o mesmo daquele miúdo que tocava nas ruas e em pubs modestos de Londres, misto de ingenuidade e alegria em poder tocar para tanta gente. Ou seja, fazendo jus ao título deste artigo, apresenta-se como apenas mais um tipo a tocar umas músicas, apesar de nesta fase da carreira ser um artista milionário, verdadeiro causador de movimentos de massas (basta recordar o frenesim que foi a sua vinda em 2019 para dois concertos no Estádio da Luz).
Não obstante as possíveis dúvidas quanto à sua persona, Sheeran parece ter perfeita noção do seu percurso e de onde se encontra na sua carreira. Foi o próprio a ressalvar antes de “The A Team” — um dos seus primeiros sucessos — que a sua estreia em Portugal deu-se neste mesmo festival em 2014 (se bem que numa posição de inferioridade, a abrir para Lorde e Arcade Fire). Na altura, o cantor apresentou-se no Parque da Belavista na véspera de lançar “Multiply”, o disco que o catapultaria para o estrelato — ou seja, ainda era visto como um talento em ascensão, ao qual faltavam êxitos.
Volvidos 10 anos, tudo mudou sem parecer que algo tenha mudado. Sheeran apresenta-se em palco como tem feito tradicionalmente ao longo da carreira — sozinho, com uma máquina de loops a permitir criar camadas de som, sejam acordes, batuques na guitarra, teclas ou harmonizações de voz. Esta foi a fórmula ao longo de todo o concerto, atingindo o seu apogeu em “Bloodstream”, momento particularmente intenso, onde a frase “All the voices in my mind” ganha outros contornos quando ouvimos várias vozes de Sheeran a repeti-la. Ou nas divagações que fez entre temas seus e covers de “Superstition”, “Ain’t no Sunshine” e “No Diggity”, aproveitando as mesmas estruturas melódicas para passar entre os vários temas em modo medley. Apesar de às vezes tocar com banda, este é o formato que lhe assenta que nem uma luva, não só porque não precisa de mais elementos para encher o palco, como pelo facto de estar a sós permitir outro tipo de sintonia com o público. Lá está, o baladeiro que cresceu a ouvir pop e hip-hop e que nos convida a cantar todas as canções.
Sheeran tem o público na mão ao longo de todo o concerto — mesmo nos seus momentos mais fracos, como “Take It Back” e uma especialmente longa “You Need Me, I Don’t Need You”, com o beatbox e o rapping acelerado estilo “spiritual lyrical miracle individual” a envelhecerem mal. Pelo contrário, o rap mais confiante e com balanço de “Sing” e “Shape of You” demonstraram porque estas continuam a ser êxitos da pop, capazes de entusiasmar multidões desde o dia em que foram lançadas.
Claro está que quem vai a um concerto de Ed Sheeran, espera baladas — e baladas teve. “Se não souberem a letra da próxima canção, estão no concerto errado”, afirmou antes de “Thinking Out Loud”, onde proporcionou um de vários momentos a fazer o público cantar em uníssono. Outros foram “Photograph” e a sentida homenagem fúnebre de “Eyes Closed”. Já num clima mais festivo, “Bad Habits” fechou a noite com Sheeran a pedir aos presentes a rebentar os últimos cartuchos de energia a saltar — isto antes de outro tipo de cartuxos explodirem sobre os céus, com um mega final de pirotecnia.
Numa tarde de língua inglesa, destacou-se o Brasil
Antes de Sheeran vir mostrar como se faz, o segundo dia do Rock in Rio teve vários artistas britânicos (ou com ascendência nessas terras) a tentar a sua sorte em Lisboa, mas a tarde pertenceu a Jão. O artista brasileiro, no decurso da sua digressão de promoção a “Super”, veio em boa hora fazer a sua estreia em Portugal, apresentando uma mistura gulosa de pop rock com pitadas de música popular brasileira, funk e até ska.
No palco Mundo, o artista do estado de São Paulo quase que inadvertidamente apresentou-se antes de tempo como a antítese de Ed Sheeran. Jão apresenta-se com uma banda que inclui dois saxofonistas e um trompetista e cantora de apoio com quem divide grande parte do protagonismo. Com um cenário a fazer lembrar uma rádio, mostrou porque é que tem tido uma ascensão meteórica no panorama brasileiro. É que não só tem canções orelhudas, como uma apresentação ao vivo a roçar o imaculado, com os diferentes elementos a avançar e recuar mais do que uma vez no palco como uma unidade bem oleada.
Fiel seguidor do jeito brasileiro de parecer feliz a cantar coisas tristes, Jão mostrou canções de desgosto e autodepreciação com ritmos bem dançáveis — veja-se “Vou Morrer Sozinho”, “Imaturo” ou “Coringa”. Já “Meninos e Meninas”, cantado com uma bandeira LGBT aos ombros, causou sensação, tal como um dos seus maiores hits, “Idiota”, que puxou pelas vozes e pernas dos presentes. Quando terminou com “Pode me Lamber”, já estava em estado de graça.
Recuando, porém, para uma fase anterior do dia, regressamos a 2012. Corria esse ano quando um jovem de Clifton, subúrbio de Nottingham, entrou de rompante na cena indie com o seu álbum autointitulado. Jake Bugg parecia estar votado a um futuro promissor, quiçá seguindo as pisadas de outros cantautores britânicos, apesar do seu som ser menos pop e mais assente no blues e na folk. Todavia, passados 12 anos, Bugg não foi capaz de atingir esse potencial, ficando numa espécie de “arrested development” — aliás, o que se coaduna com a sua posição no cartaz, abrindo o palco Galp quando ainda se sentia um calor de arrasar.
Entre todos os “thank very much” proferidos estranhamente à Elvis, Bugg dedicou a maioria do seu alinhamento a uma forma de rock canastrão, que soou a europeu a tentar tocar blues à americana, com toda a técnica mas sem o sentimento. E está claro que o britânico tem em Bob Dylan uma das grandes referências, mas a sua tentativa de atingir o mesmo timbre agudo e anasalado incomoda mais do que outra coisa. É uma pena, porque quando Bugg foi buscar ao baú temas mais antigos e reflexivos — como “Seen it All” e “Two Fingers —, mostrou lampejos do que podia ter sido a sua carreira.
Pelo contrário, Lauren Spencer-Smith quase não tem nada pela frente que não futuro. Depois de dar-se a conhecer numa edição de American Idol, a cantora canadiana de 20 anos começou a levantar ondas no TikTok em 2022 ao lançar “Fingers Cross”. Seguiu-se a isso um álbum, “Mirrors”, em que optou por seguir a mesma bitola: baladonas, muitas e muito sofridas, estilo Olivia Rodrigo a trocar a raiva juvenil por grandiosidade sentimental. A própria afirmou no palco Tejo: “se gostam de canções tristes, sou a vossa miúda”.
O resultado foi um concerto algo desequilibrado, com o excesso de esplendor melancólico a cair na modorra, isto apesar de serem visíveis fãs em absoluto transe a cantar todas as letras. Os momentos mais interessantes acabaram por ser mesmo as várias versões que foi apresentando, em particular “Rumor Has It”, de Adele (a sua cantora preferida, como afirmou) e aquela que é uma das melhores músicas de Taylor Swift, “Style”. Foi uma boa forma de extrair simpatia e entusiasmo do público, mas mais do que isso, foi uma forma de quebrar uma certa monotonia que se foi instalando. É inegável que Spencer-Smith tem uma bela voz, tem a atitude espevitada da gen-Z e todo o potencial para virar uma estrela pop: precisa é, por amor da santa, de temas mais mexidos.
Quem estivesse à procura de mais energia no concerto que se seguiu, porém, terá saído defraudado — pelo menos no início. “Senhoras e senhores, enquanto Calum Scott, é a minha obrigação fazer-vos chorar, acertar-vos nos sentimentos”, admitiu o cantor britânico de 35 anos já o seu concerto no palco Mundo seguia a todo o gás. De ser um jovem cantor numa banda de covers chamada Maroon 4 (não é preciso ser um génio para inferir a que grupo prestavam tributo) até cantar perante milhares e milhares de pessoas no Parque Tejo, a Scott “bastou” impressionar o júri do Britain’s Got Talent para lançar-se numa carreira de sucesso.
Tal como Spencer-Smith, Scott é um cantor tecnicamente exemplar. Além disso, as suas músicas têm mensagens inspiradoras, de aceitação e tolerância — o que é particularmente pungente pelo facto de ser abertamente homossexual, tendo feito ponto assente disso mesmo neste que é o mês do Orgulho Gay. O problema é o cantor que tem como pior faceta deixar a sua voz ensopar-se em baladas melodramáticas e anónimas, êxitos engendrados para rotação imediata nas rádios generalistas mas que sugam toda a personalidade da sua voz, canções que conseguem transformar um instrumento tão interessante como o violoncelo em melaço musical.
Infelizmente, foi assim que iniciou a sua atuação, com “Lighthouse”, “Rhythm Inside” e — a principal culpada — “Rise”, que parece ter sido escrita com o propósito específico de fazer de banda sonora quando um concorrente passa à fase seguinte de um concurso de talentos. O mesmo pode ser dito de “Run With Me”: “Se não souberem as letras, não faz mal, eu fiz com que fossem muito fáceis de acompanhar”, afirmou antes de iniciá-la. Apesar de ser um mero aparte divertido, soa como uma declaração de missão, de sacrificar carácter por acessibilidade para maximizar aceitação. Esta equação, em princípio, não tem nada de mal em si mesma, pois há muitos artistas que conseguem fazer esse equilíbrio — Scott, contudo, ainda não está lá.
O cantor começou a singrar justamente quando avançou para a fase mais pop do concerto — iniciada, curiosamente, com uma versão dos Maroon 5, de “This Love”. Scott apresentou também um trecho de uma canção nova em estreia absoluta que parece apontar para uma direção mais desprendida e que foi bem recebida — tal como “At Your Worst” e “If You Ever Change Your Mind”, a fazer lembrar por vezes uns Imagine Dragons, mas sem os refrães impossivelmente irritantes. O cantor, de resto, aproveitou ainda as suas colaborações com os produtores de música eletrónica Kygo e Lost Frequencies para manter os índices de energia em altas e as ancas a balançar. O final, porém, marcou outra guinada, tão previsível quanto bem sucedida. Primeiro, o seu maior êxito original de sempre, “You Are the Reason”, que resultou ao contrário de outras baladas por produzir genuíno envolvimento com o público (Scott ficou à beira das lágrimas). Depois, “Dancing on my Own”, hino absoluto da diva sueca Robyn que o cantor tornou sua em registo balada — decisão essa que impulsionou a sua carreira a tal ponto que acabou em Lisboa, a cumprir os seus sonhos.