O antigo ministro da Administração Interna está de regresso à vida política e pública depois de arrumados os processos em que estava envolvido. O antigo membro do núcleo duro de António Costa entende que o PS “renovou” a vontade em manter a porta aberta a um acordo à esquerda com a vitória de Pedro Nuno Santos, que apoiou nas diretas do partido.
Acreditando que o PS vai manter a “tradição” de unir as várias sensibilidades, Eduardo Cabrita sai ao ataque a Marcelo Rebelo de Sousa que diz ter decidido a marcação de eleições antecipadas de forma “apressada” e que fez “o oposto de Jorge Sampaio” ao não ter explorado todas as opções políticas.
Quanto à justiça, lembra que o Ministério Público “é autónomo mas não é independente” e que “se caracteriza pela hierarquia” e que tem por função executar a “política criminal definida pelo Governo e pela Assembleia da República” e que por isso deve fazer-se um debate sem dramatismos”. Para Eduardo Cabrita, o parágrafo da PGR “não tem substância”, mas “gerou dúvidas” suficientes para justificar a demissão de António Costa.
[Ouça aqui a entrevista a Eduardo Cabrita]
Eduardo Cabrita: “Marcelo fez opção apressada ao convocar eleições”
Sendo amigo e próximo politicamente de António Costa, acha que Pedro Nuno Santos vai ser um bom herdeiro?
O PS é um partido republicano, percebo a simbologia, mas não se coloca uma situação de herança. Há uma evolução que responde a uma situação política totalmente inesperada, única em 50 anos de democracia, de um Governo que cessa funções não por mérito de oposição ou por decisão do Presidente da República, mas por um parágrafo de um comunicado da Procuradoria Geral da República. Pedro Nuno Santos corresponde ao melhor daquilo que é a tradição do Partido Socialista e daquilo que foram os últimos quase 10 anos do PS desde que António Costa assumiu a liderança do partido. Existirão elementos diferenciadores, porque o mundo e o país não param e há também uma dimensão inovadora de um novo líder político, sobretudo, como desejo, que possa ter a oportunidade de o demonstrar como primeiro-ministro. Pedro Nuno Santos corresponde a este aprofundamento de um caminho, em que estive envolvido em 2015 enquanto ministro Adjunto, e em que pude testemunhar o papel importante que Pedro Nunes Santos teve contribuindo para algo que é essencial: um governo que era do PS, com entendimentos parlamentares com dois partidos à esquerda, mas que tinha o programa e o Governo do PS e que teve sucesso nas suas políticas económicas e na afirmação do nosso compromisso europeísta.
Concordou com a decisão de António Costa de se demitir?
O próprio é que tem de tomar posição. Não é uma questão de história alternativa, mas imaginemos o que é que o Observador e toda a comunicação social estariam a dizer se porventura, face aquele parágrafo, António Costa não tivesse apresentado a demissão. As funções públicas exigem uma dignidade e uma capacidade que as coloque acima de qualquer dúvida. Aquele parágrafo, que não tem substância concreta conhecida, cria ali uma dúvida que é incompatível com o exercício de funções até 2026, como num quadro de normalidade do ciclo político aconteceria.
António Costa também era, tal como para Marcelo Rebelo de Sousa, o seu favorito para continuar na liderança do PS e do Governo?
Estamos numa situação anómala, porque segundo a Constituição, os governos caem por decisão do Presidente da República, por decisão da Assembleia da República, ou quanto muito, isso não está previsto na Constituição, por um larguíssimo movimento popular que tornasse impossível a manutenção do Governo. Não sucedeu nada disso. A estabilidade que Portugal teve nos últimos oito anos permitiu políticas consistentes, designadamente em questões económicas, em três governos que foram diferentes e em que, objetivamente, o mais estável foi o primeiro, que era aquele em que o PS tinha menos deputados. É por isso que o PS não deve ter receio em voltar a um quadro desses, se for necessário. Não há aqui nenhum maniqueísmo de dizer: “Tem que ser assim, não tem que ser assim”, mas o que não faz sentido é voltarmos a uma situação anterior a 2014. António Costa foi claro, provavelmente muitos não acreditaram que fosse verdade, no que o diferenciava de António José Seguro no processo das diretas do PS. Em 2015, o que tivemos foi a afirmação de uma solução política, numa eleição em que o que estava em causa era se queríamos ou não a continuação daquele modelo de governação PSD/CDS. Mas este debate, sobre a solução criada em 2015, de alguma maneira acabou no fim de semana passado quando o PS, de algum modo, renovou a decisão de 2014 e não voltou atrás. Devem existir áreas em que exista diálogo e entendimentos com o PSD.
Uma coisa não impede a outra.
Quando era ministro Adjunto, no Governo da ‘geringonça’, negociei com o PSD aquele que foi o maior acordo político que foi a Lei Quadro da Descentralização e isto aplica-se a outras áreas como grandes investimentos, justiça, revisão constitucional ou reforma do sistema político. O PS tem esta situação central de ser a única força política que pode aglutinar largos setores da sociedade portuguesa e ser um referencial de estabilidade e isso também estará muito em jogo no dia 10 de março.
José Luís Carneiro na Administração Interna. “Deu continuidade a questões que vinham de trás”
Pedro Nuno Santos já disse que José Luís Carneiro não é um militante qualquer. Que espaço é que Carneiro pode ter no futuro do Partido Socialista?
O PS tem uma tradição que é muito diferente do outro grande partido português que, quando muda a liderança, há uma alteração de grupos pessoais de apoiantes. O PS tem uma tradição diferente. Mário Soares não inibiu que Sampaio ou Guterres, que foram contra ele nas histórias longínquas dos anos 80, não continuassem a ter o papel determinante no PS e na sociedade portuguesa. Para dar um exemplo mais recente, José Luís Carneiro ou Eurico Brilhante Dias, que foram apoiantes de António José Seguro, tiveram um papel importante no ciclo político de António Costa.
José Luís Carneiro daria um bom ministro de um governo de Pedro Nuno Santos?
Isso dependerá dos dois, não me cabe a mim dizer.
Mas como ocuparam a mesma pasta, faz um balanço positivo do trabalho de José Luís Carneiro na Administração Interna?
Não tem muito sentido estar a comparar coisas diferentes. Fui o ministro que mais tempo teve no ministério da Administração Interna e com os melhores indicadores na proteção civil e na segurança. José Luís Carneiro deu no essencial continuidade a questões que vinham de trás. Teve pouco mais de ano e meio. Não tem sentido estar a fazer a comparação.
José Luís Carneiro tem com ele outras pessoas que estiveram envolvidas neste processo interno. Vai haver espaço para todos? O PS não vai ter dificuldade em unir?
Não. Seria algo que me surpreenderia bastante. Todos os indicadores dos primeiros dias apontam que assim continuará a ser. Quanto à forma, só Pedro Nuno Santos e José Luís Carneiro podem dar a resposta.
Dissolução. “Marcelo Rebelo de Sousa fez o oposto de Jorge Sampaio”
António Costa referiu o seu caso para dar exemplos de casos judiciais que depois não deram em nada. Sente que está pronto para uma segunda vida política?
A vida cívica é só uma. Adotei o que disse no dia em que apresentei a minha demissão: que não permitiria que uma situação trágica, pela qual ninguém quererá passar, fosse aproveitada de forma populista contra o Governo, contra o Partido Socialista e contra o primeiro-ministro. Enquanto a questão não estivesse resolvida não escrevi nenhum artigo em nenhum jornal, recusei todos os pedidos de entrevista. Neste momento sou um militante de base do PS.
Mas gostaria de voltar ao primeiro plano? Estão a ser construídas listas para deputados, por exemplo
Tenho o peso da palavra de um militante de base com uma forte ligação às áreas da região pela qual tive funções autárquicas e na qual sempre fui eleito deputado.
Mas não afasta a possibilidade de, se Pedro Nuno Santos entender que o Eduardo Cabrita é uma mais-valia.
No outro dia disse a uns colegas vossos que enquanto essa questão, que só existiu porque era eu que ia na viatura acidentada, não aceitaria nenhuma função política ou administrativa, que fosse dependente de uma nomeação do governo.
Mas essa questão já está ultrapassada.
Não devemos estar a ser definitivos sobre o futuro. Nesta situação, que é um momento particularmente complexo em que o Presidente da República fez uma opção muito apressada. Como sabemos, o Presidente da República pensa rápido, mas por vezes não deveria decidir tão rápido. A maturidade e o amadurecer das decisões favorecem a solidez.
Não devia ter convocado eleições antecipadas?
O resultado até poderia ter sido esse, no final, mas deveria ter esgotado a análise do quadro político.
Estaria confortável com o Mário Centeno como primeiro-ministro?
Não é essa a questão. Nos meus anos de China habituei-me sempre a pensar muito em tempo longo. Marcelo Rebelo de Sousa fez tudo ao contrário de Jorge Sampaio, que esteve do ponto de vista constitucional bem, em decisões controversas e corajosas, como dar oportunidade ao PSD de formar um Governo, porque havia uma maioria parlamentar que não estava posta em causa. Depois, quando entendeu que esse Governo já não garantia estabilidade, dissolveu a Assembleia e convocou eleições, mas sobretudo, Jorge Sampaio, ouviu muita gente na altura. Desta vez, sem o apoio do Conselho de Estado, houve uma decisão e depois das eleições de 10 de março, o PS é a única possibilidade de um quadro da maior estabilidade possível.
Sente que a Justiça também comprometeu aquele que era o seu futuro político?
Não ponho essa questão assim. Tenho sempre um princípio de confiança na Justiça. Todas as decisões em primeira instância, mesmo o Ministério Público, são decisões de arquivamento ou de não pronunciar.
Não acha que, como Santos Silva diz, no Ministério Público há uma “certa atitude de que os políticos são suspeitos por natureza”?
Não devemos colocar a questão dessa forma generalizada. O que devemos analisar, e isso também não deve ser feito em cima de casos, é se o artigo 219 da Constituição, que é aquele que regula o Ministério Público, está ou não a ser cumprido. O Ministério Público não é uma magistratura independente, é autónoma e caracteriza-se pela hierarquia e cabe-lhe executar a política criminal que é decidida pelos órgãos de soberania, o Governo e a Assembleia da República. Esse debate, sem dramatismos, deve ser feito.
Eleições legislativas. “PS vai reunir a quase plenitude dos votos do centro”
Acha que é repetível a maioria absoluta do Partido Socialista?
O PS quererá o melhor resultado possível. A maioria absoluta foi, para muitos, uma grande surpresa naquela noite. O PS não deve afunilar a sua preocupação, numa ansiedade, em torno de uma maioria absoluta, sobretudo porque o nosso sistema eleitoral foi criado para dificultar esse quadro.
Mas não acha que existiu um divórcio entre as pessoas e o PS, apesar dos problemas da maioria absoluta?
Não vejo isso. Apesar dos chamados ditos problemas, o que vejo na generalidade das sondagens é o PS, ao fim de oito anos, a liderar. Não me devo pronunciar sobre aquilo que são as expectativas dos eleitores de direita, mas diria que existe uma manifesta falta de fé no candidato do maior partido de direita. O que nós vamos ter é o Partido Socialista a reunir o quase pleno dos votos do centro, não só dos socialistas e sociais-democratas, mas diria mesmo, face à radicalização à direita hoje, da direita democrática
Pedro Nuno Santos consegue conquistar esse centro político?
Naturalmente que sim porque o que temos hoje é uma situação de muita fragilidade. Eu diria de quase guerra civil dentro da direita, onde temos pelo menos três partidos que vão disputar os mesmos votos. O único laboratório que temos, dos Açores, prova que é uma relação que não corre bem e não dá garantias. Passos Coelho adensou esta terça-feira os problemas da direita ao vir abrir a porta, dizendo algo semelhante ao que André Ventura às vezes dizia, que para afastar o PS a da área do poder todos os sacrifícios são possíveis, até esse, de um entendimento com a direita radical e a extrema-direita. Neste quadro, o PS vai agrupar quase a plenitude do voto de esquerda mas mesmo pessoas com posicionamento de liberais europeus, preocupados com a mensagem da doutrina social da Igreja, só no Partido Socialista poderão encontrar uma esperança de verem refletidos os seus anseios.