Estamos a viver uma “solidão assistida” porque desaprendemos ou não sabemos amar. Entregamo-nos à rotina dos dias e aos gestos indiferentes. Divorciamo-nos em “suaves prestações”. Devia haver uma agenda de namoro, uma espécie de “namorário” que, tal como o calendário da escola dos filhos, devia morar colado à porta do frigorífico. Estas são apenas algumas das ideias de Eduardo Sá, o psicólogo clínico que já quase dispensa apresentações.
Em entrevista ao Observador (depois de em 2014 ter-nos dito que “os bons filhos são aqueles que nos trazem problemas”), o também psicanalista e professor na Universidade de Coimbra e no ISPA fala sobre como “fomos muito mal educados para as relações amorosas” e como nos contentamos com medo de que não venha mais ninguém.
[“Por trás de uma criança difícil está sempre um adulto em dificuldade.” Reveja no vídeo a entrevista de Eduardo Sá em Maio de 2017 na redacção do Observador]
A propósito do novo livro — “Quem nunca morreu de amor” (Lua de Papel) –, Eduardo Sá explica ainda que o amor dá trabalho e deve ser sempre vivido como se fossemos adolescentes, mas também como hoje somos muito mais sinceros nas lides do coração: “Acho isso importante, que as pessoas se divorciem. Acredito sinceramente que as pessoas só se divorciam porque querem amar.”
Há verdades absolutas no amor?
Não, não. Acho que o amor é provavelmente a mais fantástica demonstração das imperfeições humanas, isso é fascinante. Imaginá-lo com verdades absolutas era tudo o que faria dele outra coisa que não amor. O grande desafio do amor é que, independentemente de sermos todos muito parecidos, todos ficamos a ferver por dentro de paixão e gelados de medo. Todos fugimos do amor. Quando nos cruzamos com alguém que acende muitas luzes — e que sentimos que, de alguma forma, pode ser o nosso amor –, o nosso impulso não é correr atrás dela, mas sim fugir, como se as pessoas com quem sonhamos só existissem no nosso desejo e não fossem palpáveis, não tivessem um rosto e não fossem como nós. De repente, há alguém que nos adivinha por dentro, há alguém que somos capazes de intuir de uma forma tão fina que até parece que criamos as coincidências e que adivinhamos o pensamento dessa pessoa.
O livro consegue ser o espelho de vários problemas nas relações. Mesmo não havendo verdades absolutas há, de facto, situações que podem ser comparáveis?
A minha vida faz-se a olhar para dentro dos outros e, por mais que as pessoas sejam muito diferentes, quando olhamos para dentro delas e decompomos os seus comportamentos percebemos que têm muitos “mínimos denominadores” comuns. Por mais que não haja verdades absolutas, há manifestações muito semelhantes perante experiências que são razoavelmente vizinhas na forma como gerimos as relações amorosas e na forma como podemos usar verdades mais ou menos feitas para gerirmos momentos dolorosos numa relação amorosa. Não se trata de fazer disto uma leitura uniforme, mas sim de perceber que, perante amores muito diferentes, por dentro somos deliciosamente semelhantes.
Ao longo de cerca de 200 páginas fala muito sobre pessoas que não amam ou que não sabem amar. Que tipo de pessoas são estas?
Acho que todos nós fomos muito mal educados para as relações amorosas. Acho sinceramente que, da forma possível, que todos fomos razoavelmente muito bem amados e, portanto, temos algumas fasquias que servem para nos orientarmos em relação àquilo que esperamos de um amor. Mas à medida que fomos crescendo, fomos criando a ideia de que as relações entram num patamar muito semelhante às atividades curriculares. Tenho a noção de que só aprendemos a descobrir as pessoas que são importantes na nossa vida, que ocupam o lugar na fila da frente do nosso coração, quando morremos de amor. Precisamos de morrer algumas vezes de amor para percebermos o que queremos da pessoa ao nosso lado e o que é que temos para lhe dar. Há pessoas que, ou porque já estão muito fragilizadas por diversos motivos ou porque se sentem sós, preferem estar mal acompanhadas. Talvez não sejam assim tantas as pessoas que se sentem bem amadas. Às vezes, quando olhamos para as relações de casal sentimos que já não são relações amorosas — passaram a ser amizades coloridas e pouco mais.
Parece uma coisa dolorosa de se ler…
Quando chamo à atenção disto não é para estar de dedo esticado, longe de mim. É no sentido de dar a entender que as relações amorosas começam, na esmagadora maioria das vezes. Depois, há um corrupio de coisas que fazem com que adormecemos em serviço. Quando não namoramos todos os dias, de repente, há pequenas porções das pessoas que se tornam sombrias e que passamos a não gostar, o que faz com que, a determinada altura, o nosso amor esteja mais ou menos devoluto. Precisamos desesperadamente de amar para que a nossa vida tenha sentido. Por vezes, há uma discrepância tão grande entre aquilo que esperamos e aquilo que as pessoas que estão ao nosso lado são capazes de nos dar que, no fundo, tecnicamente, estamos acompanhados mas a viver uma espécie de solidão assistida. Uma relação amorosa é só o grande projeto de toda a vida. Há uma diferença entre morrer para a vida e morrer de amor: só não morre para a vida, quem morre de amor.
Como é que podemos contrariar esse modo “piloto automático”?
Quando temos noção que temos de lutar por determinada pessoa somos imensamente cuidadosos nas mensagens e nos pequenos gestos que demoram poucos segundos. Quando uma relação se instala, poupamos nas mensagens. Já não fica muito claro a última vez que duas pessoas trocaram um abraço ou uma surpresa. Não fica claro as vezes que disseram “amo-te” uma à outra com o coração, não só com a boca. E quando entramos por esta espécie de rotina de gestos em que, de repente, os dias parecem ser todos indiferentes, estamos a divorciar-nos a suaves prestações.
Mas como é que podemos contrariar isso?
Namorando todos os dias.
Parece fácil…
Não é. Nós somos batoteiros. Temos uma agenda absolutamente esclarecida para os nossos compromissos profissionais e um calendário das atividades dos nossos filhos, de preferência num frigorífico qualquer lá de casa. Mas, depois, não temos uma agenda de namoro, sem a qual vamos ficando infelizes devagarinho. Não vejo porque é que as atividades de fim de semana devem estar à frente do namoro dos pais. Não consigo perceber porque é que num dia qualquer da semana, sexta-feira por exemplo, os pais não deixam as crianças com os avós. Precisamos de quebrar rotinas para nos sentirmos um pouco mais próximos. Acho que devia haver um agenda de namoro, uma espécie de “namorário”. Acho que as pessoas começam a separar-se devagarinho quando assumem que em primeiro lugar estão sempre os filhos. Os pais são sempre excelentes pessoas, mas excelentes pessoas mal amadas são sempre piores pais.
Namorar dá trabalho?
Dá trabalho e ocupa tempo. A ideia não é magoar as pessoas, só chamá-las à atenção: as relações mais importantes são profundamente frágeis, porque estão sempre debaixo de um sufrágio muito apertado da nossa parte. Esperamos dessas pessoas o que não esperamos de mais ninguém. Se facilitamos nestas relações, que são absolutamente indispensáveis, abrimos feridas muito difíceis de cicatrizar. Acho que somos muito demissionários das pessoas que nos são mais importantes.
É por isso que escreve que somos preguiçosos em relação ao amor?
Acho uma delícia que haja sempre alguém ao pé de nós que, quando cai uma estrela cadente, diz “agora pede um desejo, mas não o reveles”. Parece que os desejos têm uma logística fantástica, no sentido em que não precisamos de trabalhar para que se concretizem. Temos uma posição um pouco infantil em relação ao amor. À medida que vamos tendo uma atividade profissional e uma vida familiar há rotinas que se tornam irrespiráveis e é preciso dar um safanão. É preciso perguntarmo-nos como é que devemos furar este cerco para conhecer pessoas novas. Encontrar um amor ao virar da esquina nunca é coincidência, precisamos de trabalhar para isso. Às vezes, contentamo-nos com uma primeira relação a sério, não porque estejamos completamente contentes com ela, mas porque temos um pouco de medo de que… não venha mais ninguém.
Curiosamente, diz que ninguém ama sem comparar. Porquê?
Sim. Acho que no nosso coração vivem todas as pessoas que, de alguma forma, já tiveram uma importância no nosso amor — desde aquela pessoa que era importante para nós aos 4 anos, às que entraram e saíram de uma forma muito repentina na nossa vida. Isto não é trágico.
Hoje em dia parece mais difícil duas pessoas viverem juntas para o resto da vida, ao contrário do que acontecia em gerações anteriores…
Acho isso importante, que as pessoas se divorciem. Acredito sinceramente que as pessoas só se divorciam porque querem amar. Atualmente, os compromissos profissionais são repartidos e a autonomia de um e de outro tem uma consistência que não tinha há uns anos. Nós, hoje, somos muito mais verdadeiros no amor.
Mas as relações não são, hoje em dia, mais erráticas e caóticas?
Não são obrigatoriamente mais erráticas e mais caóticas. Uma coisa é sermos tão preciosistas que nunca estamos satisfeitos com ninguém, outra é termos uma convicção e uma aprendizagem que se torna em sabedoria — muitas vezes por ensaio e erro, claro –, ao tentarmos de todas as formas aproximarmo-nos de alguém que represente no essencial aquilo que achamos importante. Durante muitas gerações era razoavelmente comum as pessoas estarem casadas por fora e divorciadas por dentro. Dava-se a ideia de que estarem casadas por fora e divorciadas por dentro era, de alguma forma, mais protetor para os filhos, como se os filhos fossem profundamente distraídos e não aprendessem, também no amor, com os bons e os maus exemplos dos pais. Muitos de nós, contrariamente à vontade e à intenção dos nossos pais, fomos tendo uma atitude aparentemente errática em relação ao amor porque, ao contrário de tudo o que eles desejavam, deram-nos muito menos bons exemplos do que estavam a imaginar quando, se era o caso, estavam casados por fora e divorciados por dentro. Acho de uma coragem imensa e absolutamente comovente que duas pessoas que amam perdidamente os filhos lhes digam por outras palavras “agora vou-te magoar porque, no limite, acredito que tenho a obrigação de te demonstrar que lutar pelo amor é só o que de mais importante há na vida”. Eu sei que visto de fora parece tudo meio descartável, não é verdade. Um divórcio é de uma dor imensa. Não estou a dizer que não pode haver relações para sempre, pode. Mas não são a maioria.
Mas ainda há amores para a vida inteira?
Acho que há pessoas que são capazes de se reinventar intimamente e que são capazes de cuidar de forma dedicada uma da outra — percebem que nada substitui a relação que foram capazes de construir. Mas também é verdade que, quando uma pessoa vai à procura de alguém que tenha sentido na sua vida, está, de facto, a lutar em nome do amor e é uma luta para a qual é precisa uma coragem tão grande e uma convicção tão inabalável que ler isto só pelo número de divórcios não é justo e não é verdadeiro.
Já disse que somos mal educados em relação ao amor. Acha que se discute pouco o amor?
Acho que não falamos dele, pura e simplesmente. Lidamos com o amor de uma forma estranha, como se estivéssemos todos mais ou menos esclarecidos, como se tivéssemos uma experiência tão bem sufragada pela vida que, de repente, não temos dúvidas nem inseguranças. Mais facilmente falamos da sexualidade do que do amor e eu acho isso uma catástrofe. Não acho que algum dia seja demais falar do amor.
Até nas escolas?
Até nas escolas. Tenho muito respeito pela escola. Tenho medo que estejamos a exigir à escola aquilo que muitas vezes nós, pais, não fazemos — quando não queremos discutir determinados assuntos achamos que a escola tem a responsabilidade de o fazer por nós. É a verdade que a maneira como amamos é, de facto, o grande manual de instruções para o amor dos nossos filhos, todavia, também reconheço que os pais não se sentem à vontade em pôr palavras nos sentimentos. Acho que era importante falar-se, de vez em quando, do amor de uma forma séria, porque os adolescentes percebem-no dessa forma. Os adolescentes são lindíssimos na maneira como vivem as relações amorosas. Ao contrário do que os adultos dão a entender, não são o exemplo das relações descartáveis. Vivem-nas com uma convicção e uma seriedade fora do vulgar. Não quero que haja um manual de instruções para as relações, muito menos uma educação tecnocrática, mas não me repugna que se fale de relações amorosas.
Temos o direito e a capacidade de amar como os adolescentes em qualquer fase da vida?
Durante toda a vida amamos como se fosse o fim do mundo, sempre.
Não parece…
Pois é. Somos todos uns engasgados em relação a isso. Acho que em relação aos adolescentes temos uma postura paternalista que é perigosa e, por vezes, um pouco invejosa — como se acreditar no amor fosse como ter acne durante a adolescência. Acho que baralhamos as coisas: é muito mais importante o namoro do que o trabalho.
O nosso dia a dia está-nos a roubar a capacidade de amar?
Está. É dramático.
No livro escreve que precisamos de alguém, que não somos completos sozinhos…
Acho brilhante como se fazem alguns slogans [“Se eu não gostar de mim, quem gostará] e como, de uma forma hábil, justificamo-nos com eles. Quando pomos as coisas dessa forma é como se estivéssemos a dizer que a outra pessoa da nossa vida, a quem à priori estamos a conceder a importância das importâncias, afinal não é tão importante assim — é como dizer que a outra pessoa não é o protagonista na nossa vida, antes uma personagem secundária.
Diz que a primeira missão de todas, antes de encontrar o grande amor, é não perdê-lo. Mas isso é, por vezes, inevitável. Como é que se encara isso?
Morre-se de amor e tenta-se nascer outra vez. Mais importante do que encontrar um grande amor é nunca o perder. Mas é mais difícil também. Em relação ao amor, acho que somos todos operários em construção.