Este texto foi publicado originalmente a 29 de julho de 2016, a propósito da condecoração de Eduardo Veloso, e é republicado agora, no dia em que é conhecida a notícia da morte do matemático.
Entusiasmo. Eduardo Veloso transforma cada episódio numa história — interessante, mirabolante e divertida — mas sempre com detalhe e precisão. Ri-se dos pormenores. Formou-se em matemática, trabalhou como matemático na TAP, mas sem se afastar completamente da investigação. Quando se reformou entregou-se ao ensino da sua disciplina preferida – a Matemática.
Em 2014 recebeu o Prémio Ciência Viva Montepio Media, juntamente com o matemático José Paulo Viana e a ilustradora Cristina Sampaio, pelos 25 anos da secção “Desafios” no jornal Público. Agora, em 2016, foi condecorado com o grau de Comendador da Ordem da Instrução Pública, pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Mas não é a primeira vez que é distinguido pela Presidência: no ano 2000, Jorge Sampaio atribuiu-lhe o grau de Grande-Oficial da Ordem de Mérito.
“Os Desafios não são exercícios, são problemas. A nossa ideia era propor problemas em que as pessoas tivessem que inventar um método para os resolverem e que os resolvessem”, diz o matemático que fez parte da equipa inicial que desenvolveu a secção semanal de problemas matemáticos, presente desde o primeiro número do jornal. “O que melhor caracteriza a matemática não é a dedução, é mais a imaginação.” Durante algum tempo esta secção também teve uma rubrica mensal com história(s) da Matemática. “Gosto muito da história da matemática. A melhor maneira de aprender matemática é essa, conhecendo a sua história e personagens.”
Eduardo Veloso não sabia que a matemática seria a sua paixão, mas apercebeu-se disso no início da faculdade. Até aí queria ser engenheiro. “Quando estava no liceu os meus pais levaram-me a mim e ao meu irmão mais velho a fazer testes de vocação profissional. O relatório dizia qualquer coisa como ‘o aluno declara que quer seguir engenharia, mas pode muito bem desistir disso e vir a ser professor’.” Mal ele sabia que a “profecia” se iria revelar em grande parte verdadeira.
A “profecia” não dizia porém que Eduardo Veloso teria um programa na RTP. Aliás, que os três irmãos Veloso estariam, a certa altura, todos ligados ao canal nacional – o “Matuta”, o “Batuta” e o “Batata”, como lhes chamavam no estúdio. Eduardo Veloso num programa de matemática – “Aqui há Gato”, na TV Educativa -, Manuel Jorge, o mais novo, na TV Jazz, e o irmão mais velho, o conhecido Sousa Veloso, no famoso TV Rural.
Um professor de matemática que “não era afeto ao regime”
Foi já no Instituto Superior Técnico, onde entrou em Engenharia Mecânica, que descobriu que gostava muito mais de matemática do que de engenharia — só gostava das disciplinas de matemática. “O primeiro ano correu muito bem, era quase tudo matemática, gostei. No 2º ano comecei as outras cadeiras. Passei o primeiro período todo, chateado quando tinha que ir serrar bocados de metal e fazer coisas dessas, e bem-disposto quando ia para as aulas de Cálculo. Era uma certa contradição, eu estava a formar-me em engenharia.” Ao fim do 2º ano, pediu transferência de curso e foi estudar Matemática para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Em Ciências, teve como professor Sebastião e Silva, que o influenciou “muitíssimo”. O professor defendia — e punha em prática — três pontos para o ensino da Matemática: um professor de matemática deveria ser um professor de matematização, ou seja, a matemática deveria nascer nas aulas; a história da matemática tinha um papel fundamental e para ensinar algo devia recriar-se a história do pensamento da matemática; e salientava a importância da intuição.
No fim do curso, começou a dar aulas numa escola técnica e Sebastião e Silva propô-lo para uma bolsa de investigação para o doutoramento em Mainz, na Alemanha. Naquela altura, de cada vez que alguém era proposto para uma bolsa, era sujeito a um interrogatório da PIDE. “Perguntaram-me as coisas mais absurdas. Por exemplo, por que razão [no liceu] assinei um telegrama a pedir eleições livres? Porque é que não votei nas eleições para Presidente da República? E coisas sobre a faculdade.”
Na Universidade, Eduardo Veloso tinha feito parte da primeira lista de esquerda que venceu as eleições da associação de estudantes na Faculdade de Ciências e fazia parte da secção pedagógica. Mas a secção pedagógica foi considerada “perigosíssima”, “porque lutava para que os programas melhorassem”. “Na carta da denúncia dizia que, embora eu não fosse do partido comunista, estava rodeado de elementos do MUD [Movimento de Unidade Democrática].” O Instituto de Alta Cultura recebeu a informação de que Eduardo Veloso “não era afeto ao regime” e a bolsa foi-lhe recusada.
“Voltei a dar aulas. Mas, com esta informação da PIDE, nunca mais seria efetivo. Por essa altura, a TAP abriu concurso para matemático e para navegador e eu concorri”. A TAP era, na altura, das poucas empresas, talvez a única, que contratava matemáticos. Durante 34 anos, trabalhou aí como navegador, como matemático em terra, e mais tarde, quando a profissão de navegador deixou de existir, como flight engineer, ou técnico de voo.
Orientar-se pelas estrelas, como os navegadores de outros tempos
A profissão de navegador existiu até meados dos anos 1970 do século passado. “Éramos cinco tripulantes: dois pilotos, um radiotelegrafista, um mecânico e um navegador.” O navegador ia sentado numa mesa, estudava a rota, os ventos, e dava indicações ao piloto. Durante o dia, estudava-se “o chão a passar”. Durante a noite a posição do avião era determinada a intervalos de 30 a 60 minutos de voo recorrendo a três estrelas. A navegação era astronómica, “como os navegadores de há séculos”, conta.
Eduardo Veloso não esquece uma viagem de Lisboa para Lourenço Marques (atualmente Maputo) em que lhe coube o primeiro turno de navegação até Argel. Durante o segundo turno, até Aoulef, onde iriam abastecer-se no meio do deserto, aproveitou para descansar como sempre faziam entre turnos. A certa altura foi acordado. “Eduardo está tudo mal!” Já deviam ter detetado Aoulef nos instrumentos de bordo. “Sabia lá onde é que estávamos. Tinha que tomar uma decisão rápida. Recorri ao que faziam os navegadores de outros tempos, usei a estrela polar para determinar a latitude.” Já tinham passado Alouef. “Tive de dizer ao piloto: ‘Voltar para trás 180 graus’. Ele confiou e voltou. Só depois fui observar outras estrelas e determinar o ponto onde estávamos. Se tivesse errado nunca mais encontrávamos El Aouef.”
Apesar de impedido de fazer o doutoramento na Alemanha, não se desligou da investigação em matemática. Enquanto estava na TAP continuou a fazer parte do centro de estudos criado pelo professor Sebastião e Silva. Nessa altura, surgiu uma oportunidade de uma bolsa do governo francês para fazer investigação durante dois anos em Paris a trabalhar com o célebre matemático Laurent Schwartz. Para poder ir para França, Eduardo pediu uma licença sem vencimento na TAP. “Vendi o Fiat 600 e lá fui eu e a Joana [Joana Bénard da Costa, sua mulher, também matemática] para Paris. Como a bolsa era muito curta, todos os meses, comíamos uma fatia do Fiat 600”.
Durante a “primavera marcelista”, uma altura de maior abertura política no país, foi admitido como assistente na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). “Foram anos bons porque estava a trabalhar com alunos.” O professor Sebastião e Silva nessa altura já não era docente na FCUL e estava no Instituto Superior de Agronomia. “Confesso que não gostava nada do ambiente, era muito mau. Havia muitas lutas internas e dificuldades”. Ao fim de dois anos regressou à TAP.
Um homem de paixões sucessivas
Durante os anos 1960 e início dos anos 1970 empenhou-se muito no trabalho em cooperativas culturais. Naquela altura a ditadura impunha grandes restrições às atividades associativas e, para contornar esta dificuldade, algumas pessoas criavam cooperativas culturais. Uma das primeiras foi a Pragma – Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária, à qual pertenceu. Depois de esta cooperativa ser fechada pela PIDE, Eduardo Veloso foi um dos fundadores de uma outra cooperativa cultural, a Spes – Sociedade para a Divulgação dos Meios Audiovisuais.
“Lembro-me do divertido que aquilo foi. Fazíamos coisas relacionadas com divulgação cultural, formação de animadores. Tínhamos câmara escura, fazíamos exposições de fotografia, cartazes de serigrafia, sessões de animação… Os audiovisuais eram um chapéu para tudo”, lembra o pintor Manuel Costa Cabral, outro fundador da Spes.
Os amigos de Eduardo Veloso são unânimes ao afirmarem a sua capacidade de mergulhar a fundo em tudo o que se mete. Zé Lima, um amigo de longa data, diz ter-lhe conhecido “várias encarnações, vários recomeços” e de todas as vezes o mesmo entusiasmo juvenil. Foi a política, a fotografia, o cinema, em paixões sucessivas. E a matemática desde sempre, claro. “O que sempre admirei no Eduardo é que ele faz o que faz pelo prazer de o fazer, de estudar, de aprender. Nunca o vi ‘trabalhar para o currículo’, para subir na vida ou para se afirmar. E sempre com uma boa disposição e um sentido de humor que contagiava tudo e todos os que o rodeavam.”
Os colegas reconhecem-lhe métodos de trabalho característicos, um gosto pelo trabalho em equipa e as ideias sempre à frente do seu tempo. A sua amiga Maria da Conceição Reis conheceu-o na TAP, num grupo de trabalho for ele formado para criar uma forma de atribuir automaticamente as tripulações aos voos. “Naquela altura a atribuição das tripulações aos diferentes voos era feita manualmente”, conta. “Estudámos e trabalhámos imenso, mas acabámos por concluir que não havia meios técnicos que permitissem pôr em prática o projeto. Na verdade, só 20 anos mais tarde é que a TAP encontrou uma solução para este problema – utilizando métodos de inteligência artificial. A ideia do Eduardo era avançada demais para a época”.
Depois da reforma, a vida continua
Eduardo tem muitas fotografias na sala, nas parede e sobre as mesas, a maior parte a preto e branco, algumas da sua autoria. Sobre a lareira tem uma ampliação de uma composição com rosas secas, de cores outonais, da fotógrafa e amiga Margarida Dias.
A grande dedicação à fotografia surgiu na Spes e intensificou-se depois de se reformar da TAP, mas esteve sempre presente na sua vida: “É uma coisa fabulosa, os meus pais tinham os dois a mania da fotografia”. O pai, que tinha um armazém de material de papelaria, gostava muito de fotografia, “tinha uma coisa para ampliar fotografias lá em casa”. “A minha mãe tocava piano, falava francês, bordava, escrevia poesia, gostava muito de música e passava a vida a tirar-nos fotografias.”
“Aos 58-59 comecei a pensar o que ia fazer da vida depois da reforma”. Aos 60, ao sair da TAP, decidiu embarcar noutro tipo de viagens. Retoma a matemática e inicia outras atividades. Inscreveu-se como aluno livre no primeiro mestrado em Educação de Matemática oferecido pela FCUL, inscreveu-se na Escola Superior de Belas Artes para estudar História da Arte, e foi aos Estados Unidos fazer um curso de fotografia. Foi também nesta altura que começou o curso de fotografia no Ar.Co, onde foi professor e aluno ao mesmo tempo — a vontade de saber mais e aperfeiçoar e transmitir estão sempre presentes.
Também por esta altura mandou construir uma casa em Maçainhas, uma aldeia perto da Guarda, num terreno que tinha sido do avô paterno. Na construção da casa esteve atento a todos os pormenores. Utilizou modelos e materiais das casas tradicionais da região, mas para escolher a melhor orientação da casa, estudou a exposição solar do terreno ao longo do ano. A sala da casa, que entretanto vendeu, era ampla e luminosa, e a cozinha era pequena, mas com bancadas muito altas, à medida de um homem muito alto como é (cerca de 1,90 metros). Na casa que fez para si, não tinha que se inclinar para encher um copo com água.
O local era também privilegiado para observar o céu. O trabalho de navegador despertara nele o gosto pela Astronomia e nas férias observava o céu com binóculos. Certa vez ele e um amigo americano, também interessado em astros, repararam numa coisa que não vinha nos mapas e anotaram a sua posição em noites sucessivas. “Descobrimos um cometa!” Passado algum tempo, o amigo mandou-lhe dos Estados Unidos uma revista especializada de Astronomia que relatava a descoberta desse mesmo cometa — por um astrónomo profissional – tempos depois deles e com instrumentos muito mais sofisticados. Acharam divertidíssimo.
A dedicação ao ensino da Matemática
Eduardo Veloso trabalha em casa, na sua sala. Na mesa de trabalho há um monitor suplementar enorme, as mesas laterais estão cobertas de livros e papéis. Pela janela do 5º andar no alto de Cascais, a vista é ampla e estende-se até ao mar. Tem muitas estantes com CDs, DVDs e livros – desde Frank Sinatra, até às óperas de Mozart, dos filmes clássicos a preto e branco, com um grande destaque para Ford e Hitchcock aos livros dos pensadores de que gosta. Tem livros e livros de geometria, ensino da matemática, história da matemática, de fotografia, de pintura — os seus vários interesses, todos interligados.
A frequência como aluno livre do mestrado em Educação Matemática reiniciou a sua dedicação às questões do ensino da matemática. Eduardo Veloso acredita que a educação não se deve limitar a listas de conteúdos, mas que deve ser uma vivência rica e baseada em experiências. “O Eduardo acredita na educação próxima das linhas defendidas por John Dewey, um filósofo americano que defendia que a educação e a escola não são uma preparação para a vida, mas sim a própria vida”, afirma Ana Vieira, amiga com quem já trabalhou em vários projetos na Associação de Professores de Matemática (APM).
Nos últimos 30 anos tem-se dedicado intensamente à APM, da qual é um dos membros fundadores. E no âmbito das atividades da associação puseram em prática, entre 1988 e 1992, um currículo experimental para o 7º, 8º e 9º anos. “Era um projeto muito avançado em relação à época. Foi um marco no ensino da matemática”, recorda Leonor Santos, uma das professoras dessa equipa. “Esse projeto foi totalmente inovador e foi sensacional. O ensino atual está muito afastado destes ideais e o Eduardo Veloso é muito crítico da forma como a matemática é ensinada atualmente, das metas curriculares e dos exames”, conta Rita Bastos, amiga e colega de trabalho no Grupo de Geometria da APM.
“Uma das coisas que eu defendo é que o ensino básico de matemática, a matemática para todos, deveria ser apresentar a matemática como ciência, com um objetivo cultural”, diz Eduardo Veloso. “A história da matemática é muito interessante e é estimulante. Ensinamos as coisas como as sabemos agora, mas não ensinamos como apareceram, como apareceu o zero, os números negativos, as equações.”
Nos últimos anos escreveu vários livros para professores de matemática, mas assume-se contra os manuais escolares, que “tendem a cristalizar as coisas”. “Essencialmente, acho que o melhor contributo que podemos dar é deixar coisas escritas. Posso discutir nas reuniões, mas isso não tem substância. Quando alguém quiser mudar isto fortemente, vai ter falta de materiais e de bases para mudar. As bases poderiam ser livros, livros que apresentassem a matemática de uma tal maneira que servisse para um novo tipo de ensino”, diz Eduardo Veloso. “É por isso que tenho lutado, para que isso se faça. E que faço eu próprio, juntamente com outras pessoas. Escrevo livros dentro deste ideal do que deveria ser o ensino da matemática.”
Texto de Rita Ponce, editado por Vera Novais. Fotografia de Margarida Dias