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Eles deixaram de ser padres e a Igreja virou-lhes as costas

Fernando viu o bispo fechar-lhe a porta. António foi abandonado pela congregação, que o impediu até de ter um emprego. Luís teve mais sorte e hoje dirige a única associação que apoia antigos padres.

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Quando Fernando Félix tentou entregar ao seu bispo o documento que o Vaticano lhe tinha enviado a confirmar a sua dispensa, o bispo recusou recebê-lo. Fechou-lhe a porta do paço episcopal e disse-lhe que deixasse o documento ao vigário, pois nem sequer queria ver o padre. Fernando estava oficialmente dispensado do celibato e das restantes obrigações sacerdotais e ia finalmente casar com Maria José pela Igreja. Antes, Fernando e Maria José passaram anos de sofrimento. Ele estava impedido de entrar na sala de catequese de Maria José e proibido de ler na missa; ela tinha sido insultada por ser “demasiado próxima” do padre.

Noutro ponto do país, António (nome fictício*) passava por um processo ainda mais doloroso. Padre numa congregação religiosa na região norte do país, António diz ter sido perseguido e ameaçado quando começou a demonstrar desânimo com a vida sacerdotal. Assim que avançou para o pedido de dispensa das obrigações sacerdotais, no ano passado, a comunidade religiosa virou-lhe as costas, impediu-o de ter emprego e deixou-o sem nada. António teve de voltar para casa da família, onde ainda hoje vive, enquanto tenta refazer a vida.

Não há estruturas em Portugal que ajudem estes padres. A única instituição que ainda tenta fazer alguma coisa é de facto a Fraternitas.
Luís Salgueiro, presidente da Fraternitas

Sem nenhuma estrutura da Igreja a que possam recorrer, os padres que desejam abandonar o sacerdócio passam por todo o período de decisão habitualmente sozinhos ou apenas com o apoio de amigos e familiares. Isso mesmo aconteceu com Luís Salgueiro, antigo sacerdote da diocese de Santarém que, depois de ter tido mais sorte que Fernando e António no processo de saída, dirige a Fraternitas, a única associação em Portugal que apoia os padres que abandonaram o sacerdócio. “Não há estruturas em Portugal que ajudem estes padres”, denuncia. “A única instituição que ainda tenta fazer alguma coisa é de facto a Fraternitas.” Mas não chega.

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Fernando Félix: “O bispo não me quis receber”

Fernando Félix e Maria José Mendonça estão sentados numa das últimas filas de um auditório improvisado no Externato Marista de Lisboa, onde decorre um encontro ecuménico organizado pela Fraternitas. O casal não dá nas vistas, e não se daria por eles se não fôssemos apresentados por Luís Salgueiro, o presidente do movimento.

Fernando foi ordenado padre em 1995, tinha na altura 26 anos, e pediu para sair em 2001, cinco anos antes de se casar com Maria José. “Chamaram-nos todo o tipo de nomes, é inimaginável. Até porque a nossa história começou ainda muito antes de existir. As pessoas diziam tudo sobre nós”, conta ela. Fernando conheceu Maria José em Viseu — para onde foi enviado como padre missionário e onde ela estudava. Pelo meio, houve quem os acusasse de estarem envolvidos em segredo, inventaram-lhes uma filha, proibiram Fernando de se aproximar das salas de catequese de Maria e, para fechar a história, o bispo recusou-se a receber Fernando no momento em que este lhe quis entregar a decisão do Vaticano que autorizava a dispensa do ministério. “Não demorei cinco minutos no paço episcopal”, recorda.

Chamaram-nos todo o tipo de nomes, é inimaginável. Até porque a nossa história começou ainda muito antes de existir. As pessoas diziam tudo sobre nós.
Maria José Mendonça

Voltemos ao início. Com 7 anos, Fernando já tinha a ideia de que queria ser padre. “Era um dos três garotos que ajudavam no altar”, lembra. A confirmação veio três anos depois, quando a sua paróquia, S. Vicente do Paul, em Santarém, foi visitada por uns padres missionários. “Conheci os missionários Combonianos [congregação missionária fundada em 1867 por S. Daniel Comboni], que tinham missões em África e na América, e pensei: é isso que quero ser”, conta Fernando. Assim que pôde, entrou no seminário, apenas com 14 anos. Passou por várias casas de formação antes de ser ordenado: primeiro a dos Combonianos, em Vila Nova de Famalicão; depois o seminário de Coimbra; dali foi para Santarém, já como missionário, e concluiu a formação em teologia no Peru, “como é próprio dos estudantes combonianos”, com colegas de mais de 15 países.

A ordenação de Fernando, na sua paróquia natal, foi um marco histórico. Era o primeiro padre católico que a freguesia alguma vez tinha visto nascer, e por isso “juntaram-se mais de mil pessoas” na vila. A igreja era demasiado pequena para acolher a multidão, pelo que houve uma missa campal transmitida pela rádio, com direito a “copo-de-água na Casa de Convívio da freguesia”. Uma festa de fazer inveja a muitos casamentos.

A partir dali, “foram cinco anos muito intensos”. “Tinha um ritmo alucinante, de tal modo que o médico de família me alertou que se não abrandasse não passaria dos 30 anos“, recorda Fernando. “Logo após a ordenação, fui enviado para o seminário comboniano de Viseu.” Enquanto missionário, nos primeiros tempos, Fernando era responsável pela divulgação das atividades dos combonianos em escolas da região norte do país, e organizava atividades para “envolver os jovens em atividades de voluntariado missionário”. Mas logo foi transferido para Lisboa, onde se começou a dedicar ao ofício que ainda hoje desempenha: o jornalismo na editorial dos Combonianos. “Ao mesmo tempo, dava apoio a estudantes em residências, acompanhava um grupo juvenil na paróquia de Santa Catarina e ia com eles distribuir roupa e comida aos sem-abrigo”, explica.

Antes de rumar a Lisboa, porém, Fernando conheceu Maria José, na altura estudante em Viseu e catequista, ao fim de semana, numa paróquia da zona Oeste. “Tornou-se uma parceira nas atividades com os jovens”, recorda Fernando. “Fizemo-nos amigos, de modo que quando fui para Lisboa continuámos a corresponder-nos e a telefonar-nos“. E foi aqui que começaram os problemas — apesar de Fernando e Maria José insistirem que têm “uma história santa”.

Talvez tivesse de reconhecer que não devia sequer ter sido ordenado padre. Havia sinais de desenquadramento.
Fernando Félix

Ao mesmo tempo que Fernando conhecia Maria José, e se mudava para Lisboa, entrava numa crise de vocação. “Talvez tivesse de reconhecer que não devia sequer ter sido ordenado padre”, admite. “Havia sinais de desenquadramento”, explica. Quais? Jornalista das publicações dos missionários a tempo inteiro, a apoiar grupos de jovens e sem-abrigo quando podia, Fernando foi tendo “cada vez menos tempo para a vida comunitária”, ou seja, para a vida conjunta com os restantes missionários, elemento central para quem faz parte da congregação, reconhece. Queria ser um missionário, queria ser um jornalista, mas a vida de padre não estava a realizá-lo. “Não é que fizesse coisas erradas — o trabalho com os jovens, o apoio aos sem-abrigo, as discussões acerca da fé, da moral e da vida –, mas era inevitável que um dia me dissessem: ‘Ou mudas o teu modo de ser, ou mudas de lugar'”. O padre que acompanhou a formação de Fernando no Peru chegou mesmo a dizer-lhe: “Se fosse hoje, não teria permitido [a ordenação]”. Foi altura de pedir ajuda, neste caso a um padre jesuíta. “Após um caminho de discernimento, chegámos à conclusão de que era melhor ser um bom cristão do que um mau padre, que poderia realizar o que fazia mas noutro estado de vida, como casado, por exemplo, sem precisar de pôr de lado o sonho missionário”, explica. Acabou por avançar, em 2001, com o pedido de dispensa das obrigações sacerdotais.

Pelo meio desta crise, havia Maria José. “Ela dava catequese na sua paróquia, na região Oeste, e eu ia lá visitá-la, seja quando ainda era padre, seja depois de ter pedido a dispensa das obrigações sacerdotais”, recorda. Depois de ter feito o pedido para sair, foi proibido de entrar na sala de catequese de Maria José. “Havia gente que murmurava, que inventava histórias a nosso respeito. É que, habitualmente, quando um padre pede para deixar de exercer, diz-se logo que há uma mulher a desviá-lo do seu caminho. Connosco não foi assim, só pusemos a hipótese do casamento um par de anos depois de eu ter deixado de exercer o sacerdócio”, esclarece.

Ela dava catequese na sua paróquia, na região Oeste, e eu ia lá visitá-la, seja quando ainda era padre, seja depois de ter pedido a dispensa das obrigações sacerdotais. Havia gente que murmurava, que inventava histórias a nosso respeito. É que, habitualmente, quando um padre pede para deixar de exercer, diz-se logo que há uma mulher a desviá-lo do seu caminho.
Fernando Félix

Quem recorda com mais detalhe este período é a própria Maria José, sentada ao lado do marido e ainda indignada com as proibições de que Fernando foi alvo. “Nem podia ler na missa, veja lá. Crianças pequeninas vão ler na missa, mas ele, que tinha formação em teologia, não podia“, lembra. “A nossa proximidade nesses tempos não era tanta como aventavam os ‘sedentos do escândalo'”, explica Maria José. Mas foi a suficiente para que, na terra de Maria José, começassem a surgir histórias sobre uma alegada filha de Fernando. “Nós nunca aparecemos com nenhuma filha, sei lá, não sei onde inventaram essa”, desabafa Fernando, ainda algo incrédulo com a história. Mas Maria José corrige-o logo. “A alegada filha não era nossa, era só do Fernando, sendo a mãe alguém a quem eventualmente faltaria um pai”, detalha. “Tão depressa a criança tinha acabado de nascer, como depois já tinha seis anos”, lembra Maria José. Se Fernando se incomodava muito com os rumores, Maria José tentava desdramatizar a situação. Brincava dizendo a Fernando que era melhor ele fazer umas poupanças, “porque, com a garota a crescer em progressão geométrica, rapidamente precisaria de dinheiro para a miúda entrar na universidade”.

O tempo que esteve à espera da aprovação da dispensa foi o que mais custou a ambos, mesmo que o casamento ainda nem estivesse nos planos. “Uma vez o meu pároco chamou-me e começou a tentar perguntar-me pela história entre mim e o Fernando”, recorda Maria José. “Mas estava tão atrapalhado, nem conseguia falar. Acabei por interrompê-lo e disse-lhe: ‘Olhe, eu sou a protagonista dessa história, e não é nada disso que se passa‘”. Foram tempos duros para a catequista. “As pessoas, quando pensam nisto dos padres que saem e se casam, pensam sempre num filme sensacionalista, num padre que foge com alguém, mas isto é muito duro e nada sensacionalista. Viver isto na primeira pessoa é muito difícil”, diz.

A relação de Fernando Félix e Maria José Mendonça não foi feita de arrebatamentos nem planos de fuga. Foi crescendo à medida que se conheciam melhor, passou de uma amizade a um amor. Quando a decisão de casar surgiu, Fernando vivia em Lisboa e Maria José em Setúbal, para onde tinha ido estudar. Casaram apenas pelo civil, porque pela Igreja ainda não era possível fazê-lo — formalmente, Fernando ainda não estava dispensado das obrigações do sacerdócio. Continuava à espera da resposta do Vaticano. Estávamos em 2006.

Uma vez o meu pároco chamou-me e começou a tentar perguntar-me pela história entre mim e o Fernando. Mas estava tão atrapalhado, nem conseguia falar. Acabei por interrompê-lo e disse-lhe: "Olhe, eu sou a protagonista dessa história, e não é nada disso que se passa".
Maria José Mendonça

Entretanto, Fernando já colaborava novamente com os missionários combonianos, como jornalista nas revistas Audácia e Além-Mar, que a congregação publica regularmente. “Mantive os laços com os Combonianos, por isso não estranhei que em 2004 me convidassem para voltar a ser jornalista nas suas revistas“, recorda.

Mais difícil foi a relação com o seu bispo. Quando Fernando recebeu a resposta do Vaticano, assinada pelo Papa João Paulo II, fez o que lhe competia: dirigiu-se à residência do bispo para lhe entregar o documento que o dispensava definitivamente das obrigações de sacerdote. “O bispo não me quis receber. Tinha dado ordem para deixar o documento ao seu vigário. Não demorei cinco minutos no paço episcopal“, recorda. Sem estrutura da Igreja que o apoiasse no processo de decisão e com a hierarquia eclesiástica a fechar-lhe a porta, a sorte de Fernando foi a de pertencer a uma congregação que lhe deu “todo o apoio, emocional e até material”. “Foi doloroso saber que é assim que são tratados alguns padres diocesanos [que não fazem parte de uma congregação religiosa, dependendo diretamente e exclusivamente dos bispos] que pedem a dispensa, ficando numa situação de carência. Não saem reconciliados com a Igreja, não recebem apoio material para os primeiros tempos e ficam sozinhos no confronto com um mundo hostil, por causa dos preconceitos”.

Fernando e Maria José, num encontro ecuménico promovido pela associação Fraternitas

Só em 2012, onze anos depois de ter feito o pedido de dispensa, é que Fernando, com 42 anos, e Maria José, 36, puderam entrar de braço dado numa igreja, cabeça levantada, sem burburinho nem boatos, e jurar, perante o Deus em que sempre acreditaram, o amor que os une.

Já casados, Fernando e Maria José encontraram conforto na Fraternitas — a que Fernando chegou a presidir –, associação que reúne perto de uma centena de padres que já deixaram o sacerdócio. E a única que presta apoio aos padres nesta situação. Segundo Alberto Osório, um outro responsável daquele organismo, há em Portugal cerca de 400 padres que deixaram o ministério, mas apenas cerca de 100 são associados da Fraternitas. “Dos outros 300, não temos conhecimento de como são apoiados”, explica Alberto. “Só se for por conhecimentos pessoais”, adivinha Luís, destacando que falta “expressão humana” à estrutura eclesiástica.

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A Fraternitas tem 65 membros ativos, num total de 115 inscritos. O mais velho tem 95 anos, e o mais novo tem 45. Segundo a associação, desde o Concílio Vaticano II que, em Portugal, já houve cerca de 400 padres que abandonaram o sacerdócio.

A maioria dos padres que deixaram o ministério são hoje, segundo a Fraternitas, professores. Há ainda vários que seguiram a advocacia, são autarcas ou ocupam lugares em organizações de solidariedade social

Contactado pelo Observador, o cónego Emanuel Matos Silva, secretário da Comissão Episcopal para as Vocações e Ministérios da Conferência Episcopal Portuguesa — organismo máximo da Igreja Católica em Portugal, que junta todos os bispos portugueses — , confirma que não há estrutura a nível nacional que se dedique ao apoio dos padres nesta situação. “Só mesmo a nível diocesano” será possível encontrar algumas estruturas de apoio ao clero, esclarece o sacerdote, mas que servem sobretudo para acolher os padres mais idosos ou em dificuldades, não se dedicando especificamente ao apoio aos padres com dúvidas relativas ao seu ministério. Segundo o responsável, estes casos devem ser tratados diretamente com o bispo da diocese do sacerdote em causa.

O Patriarcado de Lisboa confirma esta situação. Ao Observador, fonte da diocese esclarece que “o que acontece é que o padre comunica a situação diretamente ao bispo”. À falta de uma estrutura que apoie os padres, “na maioria das vezes a decisão já vem tomada”. Habitualmente, quando um padre nesta situação se dirige ao bispo, há duas hipóteses: ou o caso já está praticamente decidido e o bispo não tem muito a fazer a não ser dar início ao processo de saída do estado clerical, ou então pode escolher um padre da diocese para acompanhar o caso em específico, que poderá negociar uma solução.

António: “Impediram-me de ter emprego”

António celebrou a última missa no verão passado. “Sou apaixonado pelo Evangelho“, repete, ao longo da entrevista por telefone com o Observador. No entanto, acabou por ser esse fascínio pelos escritos sagrados, proveniente da educação cristã que recebeu desde cedo e do contacto com padres e religiosos “que tinham uma alegria e um entusiasmo especiais ao anunciar o Evangelho”, que o levou a querer deixar a vida sacerdotal, depois de ter entrado muito jovem no seminário. “Comecei a perceber que havia coisas que eu não conseguia viver, coisas que o Evangelho nos pede e que são o oposto do que a Igreja, enquanto instituição, nos pede“, conta. “Às vezes, na homilia, durante a missa, sentia-me a falar com um certo nervosismo, uma certa tensão. Quase como se estivesse ali a tentar defender ou justificar uma posição”, recorda António.

Às vezes, na homilia, durante a missa, sentia-me a falar com um certo nervosismo, uma certa tensão. Quase como se estivesse ali a tentar defender ou justificar uma posição.
António

Sacerdote numa congregação religiosa na zona norte do país, António já andava desmotivado com a vida na comunidade religiosa. “Sentia um ambiente de crítica, de perseguição, até mesmo de inveja. As pessoas sentiam-se diminuídas por este ou aquele assumir este ou aquele cargo”, conta. Essa “negatividade” levou António a afastar-se: “Sempre que podia, fechava-me no meu trabalho, nas minhas atividades, para estar envolvido com elas e não na vida fraterna”. Responsável pelo trabalho da congregação com a juventude, António destaca que procurou ter sempre “disponibilidade para o que a comunidade pedia”. E recorda que “foi um dom extraordinário poder presidir à Eucaristia“, algo que nunca mais poderá fazer.

O desânimo com a vida na comunidade religiosa e a tensão que sentia no exercício do sacerdócio transformaram-se em desilusão e resultaram no pedido de dispensa quando António começou a sentir-se ameaçado no interior da comunidade. “As coisas acentuaram-se quando comecei a ser injustamente acusado de perseguição e incompreensivelmente ameaçado”, conta. António recorda particularmente uma carta, enviada para um outro membro da comunidade que trabalhava com ele, e que conteria acusações fortes relativas aos dois. “Eram acusações de que eu roubava e de que tinha uma vida dupla. Acusações infundadas, que podiam inclusivamente ir para a polícia”, detalha. Quando o outro padre lhe mostrou a carta, dirigiu-se aos seus superiores e disse-lhes que “não aceitava aquilo“, rasgando-a em frente deles. “Para não criar mau ambiente”, António decidiu não dar mais importância ao assunto, preferindo “andar para a frente”.

No entanto, a desconfiança com que era olhado por alguns membros da comunidade fazia com que suspeitasse de que a carta tinha origem no interior da próprio congregação. “Já tinha notado algumas vozes, dentro da comunidade, sobre algumas coisas que também apareciam na carta“, conta.

As coisas acentuaram-se quando comecei a ser injustamente acusado de perseguição e ameaçado.
António

O crescente afastamento em relação à congregação levou à decisão. Cada vez com menos confiança na comunidade religiosa a que pertencia, e sem estruturas na Igreja que o pudessem apoiar, António recorreu a dois padres amigos. “Já não fazia sentido eu estar a viver em comunidade“, explica. Deixar a congregação para ser apenas padre diocesano também não era uma opção. “A minha vocação sacerdotal nasce dentro da vida religiosa, uma não está separada da outra. Para mim não fazia sentido pedir a dispensa da vida religiosa e não da sacerdotal”, conta. “Enquanto rosto da Igreja não podia viver nem atuar ao contrário do que ela pede. Eu devia este respeito à Igreja, pelo menos.”

Durante o processo de tomada de decisão, vieram mais obstáculos. “Apesar dos problemas, sempre cresci dentro da comunidade, e confiava que ao sair iria haver alguma retaguarda”, admite. O que aconteceu foi o oposto. No ano passado, António deu início ao processo formal. “Apresentei o meu pedido, escrevi a carta ao Papa, segui todas as orientações da Igreja e deixei de celebrar missa.” Depois disso, e enquanto espera a confirmação — que pode ainda demorar vários anos a chegar, visto que ainda será necessário ouvir testemunhas antes de emitir a aprovação –, António começou a tentar reconstruir a vida. “Pedi ajuda para encontrar um emprego e nunca me deram. Eu sei que não posso pedir nada, fui eu que decidi sair. Mas não tive nenhum apoio, antes pelo contrário”, lembra.

Pedi ajuda para encontrar um emprego e nunca me deram ajuda. Eu sei que não posso pedir nada, fui eu que decidi sair. Mas não tive nenhum apoio, antes pelo contrário.
António

Pouco tempo depois de fazer o pedido de dispensa, António recebeu uma proposta de emprego de uma instituição ligada à congregação onde tinha vivido durante a vida inteira. Mas a boa notícia depressa se transformou em mais um problema. “Passado um mês, depois de uma reunião dos responsáveis da comunidade, foi decidido que afinal não podia ser. Não sei o que aconteceu, nem tive nenhuma explicação. Os responsáveis nunca me ligaram para me informar”, recorda. António lembra ainda um episódio, passado quando trabalhava numa instituição ligada àquela comunidade e teve outra surpresa desagradável. “De repente, acabaram com o meu contrato de trabalho, sem justificação. Ainda pedi gentilmente que passassem o meu processo para o centro de emprego, mas não o fizeram”, explica.

Teve de voltar a casa da família, onde ainda vive. “Estou a reorganizar a minha vida, junto com todas os meus amigos”, conta, explicando que “agora é começar do zero“. Ao contrário da congregação, as pessoas da sua terra tiveram “uma reação muito positiva, de respeito, de acolhimento e de ajuda” quando souberam que António tinha pedido a dispensa. “Tenho tido muitas dificuldades em termos económicos. Só recentemente é que consegui ter emprego, numa organização social. Foi tão difícil…”

De repente, acabaram com o meu contrato de trabalho, sem justificação. Ainda pedi gentilmente que passassem o meu processo para o centro de emprego, mas não o fizeram.
António

Fora da comunidade, António diz que sente que passou “de irmão, de alguém que é querido, a um estranho”. E acusa: “Puseram-me à margem, viraram-me as costas, houve falta de honestidade e de seriedade”. No entanto, diz que ainda se sente ligado à comunidade. “Interiormente, continuo com os valores e com o carisma desta comunidade, apesar de haver um espaço em que sinto a necessidade de me recriar”, sobretudo ao nível das relações com os outros: “Já não há a relação entre o padre e os fiéis, agora é o António”.

O psicólogo norte-americano Paul Midden, que passou três décadas a aconselhar centenas de padres que optaram por abandonar a vida sacerdotal, explica que estes padres passam habitualmente por longos e difíceis períodos de discernimento, que é uma “dolorosa experiência de solidão, frequentemente associada à ansiedade ou à depressão, e combinada com o desespero”. Fundador do centro de terapia de St. Louis, no estado do Missouri, nos EUA, Paul Midden é agora escritor. O seu primeiro livro, Absolution, conta precisamente a vida dupla de um influente padre do Vaticano, dividido entre o poder e a vocação.

Puseram-me à margem, viraram-me as costas, houve falta de honestidade e de seriedade.
António

A partir de St. Louis, onde reside, o antigo terapeuta explica ao Observador que um dos motivos que levam os padres a ter de esconder os seus problemas durante o processo de decisão é a falta de formação adequada nos seminários. “Muita da formação dos padres centra-se em aprender filosofia e teologia e nos requisitos de ter um papel de ministro público”, explica o psicólogo. “A formação em relações humanas, comunicação interpessoal, gestão de stress e maturidade nos cuidados pessoais poderiam ser úteis na preparação de uma pessoa para o ministério, de uma forma que iria reduzir a sua vulnerabilidade”, considera o antigo terapeuta, ao mesmo tempo que sublinha o cada vez mais relevante esforço da Igreja neste sentido: “A Igreja investiu muito para fazer isto e os bispos estão muitas vezes pessoalmente envolvidos na ajuda aos padres em aflição”.

Luís Salgueiro: “Deus pôs no meu caminho alguém com quem percebi que talvez fosse por ali”

A história de Luís Salgueiro é diferente e bem mais pacífica, apesar de ter deixado o sacerdócio pelo motivo mais polémico de todos: para casar. Em 2011 era padre na paróquia de Vila Chã de Ourique, perto do Cartaxo. Durante os 12 anos que foi sacerdote, passou por várias paróquias da diocese de Santarém, mas aquela foi a última. “Fui percebendo que não era completamente realizado naquela vida, sempre tive uma falta, desde o início, que depois foi crescendo. A falta de um enquadramento afetivo e familiar mais próximo, que se foi tornando mais clara à medida que fui caminhando”, explica.

Essa falta de enquadramento familiar, como lhe chama, levou à decisão inevitável: teria de deixar o sacerdócio, que abraçara em 1999 para “fazer da vida uma oferta aos outros”. Em 2011, durante uma missa em Vila Chã de Ourique, comunicou a decisão aos seus paroquianos. “Tive uma reação de surpresa mas de grande respeito. Não me lembro ao certo das palavras que disse, mas a ideia foi a de que ia deixar de estar com eles daquela forma, mas que ia continuar a amar a Deus e a servir a Igreja”, recorda.

Fui percebendo que não era completamente realizado naquela vida, sempre tive uma falta, desde o início, que depois foi crescendo. A falta de um enquadramento afetivo e familiar mais próximo, que se foi tornando mais clara à medida que fui caminhando.
António

Luís não consegue identificar o momento exato em que percebeu que a vida sacerdotal não lhe estava reservada, mas admite que houve um marco importante: o dia em que conheceu Marta Rodrigues, com quem hoje é casado. “Deus pôs no meu caminho alguém com quem fui percebendo que talvez fosse por ali o caminho“, considera Luís. “Conhecemo-nos através de uma amiga em comum e houve uma aproximação entre nós”, detalha. O facto de Marta não ser natural da paróquia onde Luís trabalhava ajudou a manter longe os olhares indiscretos. Sem uma estrutura da Igreja que o pudesse apoiar nesta decisão, Luís foi construindo com Marta e “algumas pessoas amigas” o projeto que levaria ao seu casamento. “Quando deixei o sacerdócio, já sabia que ia casar, já tínhamos esse projeto. Na paróquia ninguém sabia, só gente amiga”, recorda.

Quando foi falar com o bispo da diocese para dar início ao processo de dispensa do estado clerical, na altura um documento que ditava “a redução ao estado laical” e impunha uma série de restrições ao padre dispensado, Luís já levava a decisão tomada. “Tentou demover-me, não quis acreditar”, mas “acabou por reconhecer e acolher a decisão”. Em pouco tempo, deu início ao processo. “Inicialmente, tiveram de ser escutadas várias testemunhas, que podiam ser da paróquia, da família ou amigos, e depois veio a decisão de Roma. Demorou cinco anos. Começou em 2011 e terminou em 2016”, conta, ao mesmo tempo que destaca que o sacerdócio se manteve na sua vida: “Nunca deixamos de ser padres, porque o sacramento não pode ser anulado, mas somos dispensados das obrigações“.

O momento em que os outros padres da diocese souberam da decisão ficou marcado na memória de Luís. “Foi um momento muito doloroso, num encontro com padres de toda a diocese”, recorda. “Queria ser eu a dizer-lhes, mas o bispo antecipou-se e disse a todos os padres que estavam presentes.”

A partir dali, Luís deixou de celebrar missas e os outros sacramentos, deixou de ter uma paróquia e esperou. Já não era padre no sentido mais completo da palavra, mas ainda não se podia casar com Marta. Era necessário que chegasse a aprovação de Roma. Restava-lhe trabalhar, mas também não foi fácil. “Tive muitas dificuldades em encontrar trabalho, mas fui conseguindo algumas coisas, nomeadamente no campo da metalomecânica, em que tinha algumas qualificações e experiência“, conta.

A formação superior que levou do seminário acabou por levá-lo, mais tarde, ao ensino numa escola pública. “A escola não teve problemas, porque o que importa é a formação académica, e isso eu tinha”, explica. Aos alunos, prefere não contar o seu passado, pelo menos logo ao início. “Calhando, quando houver mais interação, poderei contar, mas é preciso que haja alguma cumplicidade, mas não quero ficar condicionado por esse aspeto. Há uma carga que está associada ao ensino e, sendo um padre que deixou, é diferente.”

Tive muitas dificuldades em encontrar trabalho, mas fui conseguindo algumas coisas, nomeadamente no campo da metalomecânica, em que tinha algumas qualificações e experiência.
António

Apesar de ser um caso de sucesso, Luís Salgueiro não escapou ao estigma habitual que atinge os padres dispensados. “Há um olhar, um pensamento, as pessoas tendem a achar que foi um ato menos refletido”, explica. Ainda assim, ao contrário de Fernando e de Maria José, Luís teve uma integração social pacífica. “Conforme vão percebendo que há seriedade na decisão, quando percebem que as pessoas que ali estão são as mesmas que estavam antigamente, acabam por reconhecer que é o melhor, e reformulam o pensamento e as palavras”, conta.

A adaptação à nova vida “não foi fácil”, explica Luís, porque “apesar de ser uma condição que não era desconhecida para mim, porque eu já fui para o seminário com 20 anos, trabalhava de dia e estudava de noite, foi uma condição de que estive afastado durante vários anos”. Agora, Luís continua “a ser católico na medida do possível”. “Tenho uma família, tenho de cuidar dela, é normal que assim seja. Por aqui se pode ver a vida dos protestantes. Não há incompatibilidade, há uma complementaridade, com a mulher e com os filhos. É amar a Deus e ao próximo.”

Tenho uma família, tenho de cuidar dela, é normal que assim seja. Por aqui se pode ver a vida dos protestantes. Não há incompatibilidade, há uma complementaridade, com a mulher e com os filhos. É amar a Deus e ao próximo.
Luís Salgueiro

Já depois de deixar o sacerdócio, Luís conheceu a Fraternitas, movimento que junta perto de 100 padres dispensados das funções, e de que Fernando Félix era na altura presidente. Juntou-se ao movimento para “continuar a caminhar”, explica. Mas acabou por aderir de tal forma à causa que atualmente é ele próprio o presidente, gerindo a associação com a mulher, Marta, que é a secretária, e apoiando na medida do possível os padres em dificuldades que procuram ajuda na Fraternitas.

Sem estruturas na hierarquia da Igreja que deem apoio nestes casos, a Fraternitas faz o que pode. “Reunimo-nos como grupo duas vezes por ano, uma vez em abril para uma assembleia em Fátima, como cristãos, livremente, para falar de questões que nos tocam, e uma vez em outubro para um retiro de formação”, esclarece o presidente do movimento, Luís Salgueiro.

A associação pretende reunir os antigos sacerdotes que foram dispensados do ministério e que optaram pela vida familiar, sobretudo através da continuação da vida cristã. Mas recebem muitos pedidos de padres em dificuldades, que procuram ajudar da melhor maneira possível, explica Luís, sublinhando que o movimento não tem as capacidades técnicas para prestar ajuda psicológica aos padres que necessitam.

Os seminários deviam ser casas mais familiares, ter uma expressão familiar. É preciso haver uma componente maior de trabalho manual. Fica-se muito centrado e muito elevado na filosofia e na teologia. Nada melhor do que pôr as mãos na massa, nem que seja amassar pão.
Luís Salgueiro

Tal como o psicólogo norte-americano Paul Midden, também Luís considera que o problema não reside apenas na falta de apoios, mas também na própria formação dos padres, que não os prepara para estas situações. “Os seminários deviam ser casas mais familiares, ter uma expressão familiar”, considera Luís Salgueiro, apontando especificamente o foco excessivo “na filosofia e na teologia”. “É preciso haver uma componente maior de trabalho manual. Fica-se muito centrado e muito elevado na filosofia e na teologia. Nada melhor do que pôr as mãos na massa, nem que seja amassar pão. Nada melhor para compreender o que é a Eucaristia do que amassar pão.”

* De modo a não interferir no processo de dispensa das obrigações sacerdotais, que ainda decorre no Vaticano, António é um nome fictício, e os detalhes que permitam a identificação do sacerdote em causa foram omitidos desta reportagem.

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