Índice
Índice
O projeto de vida de Elizabeth Holmes tinha tanto de simples como de otimista. A empreendedora queria salvar vidas e evitar que se descobrisse demasiado tarde uma doença fatal. Para isso, terá tentado inventar aquilo que se designou como aparelho Edison, que permitiria diagnosticar mais de 100 doenças, desde o cancro à diabetes, em tempo recorde, usando apenas uma pequena amostra de sangue que seria recolhida através de uma picada no dedo.
“Adorava ir à praia no verão. E ia sempre à praia com o meu tio. Um dia, o meu tio descobriu que tinha cancro da pele. Depois, evoluiu para um cancro no cérebro e nos ossos. O meu tio morreu, deixou um filho, e eu nem lhe consegui dizer adeus”, relatava Elizabeth Holmes em várias entrevistas e conferências. Esta história funcionava como o tiro de partida da sua alegada missão na Terra: fazer com que ninguém dissesse adeus àqueles de quem mais gosta demasiado cedo, tal como lhe aconteceu com o tio.
Ancorada nesta memória pessoal, Elizabeth Holmes vendeu um sonho e um suposto negócio que iria revolucionar os cuidados de saúde. Primeiro, pela celeridade e por não serem precisos os demorados testes laboratoriais convencionais; depois, pelo facto de a amostra de sangue ser mínima — apenas uma picada no dedo —, evitando-se o uso de agulhas, de que muitos, incluindo a própria empreendedora, têm medo. Num país em que as análises clínicas estavam centradas em duas grandes empresas, a Theranos — uma junção entre a palavra “terapia” e “diagnóstico” — ia transformar por completo o negócio da saúde nos EUA, tendo-se antevisto que se poderia tornar a nova Apple, Uber ou Microsoft.
A própria cultura de Silicon Valley, onde a Theranos estava sediada, acabava por incentivar os sonhos ambiciosos da jovem. Com as histórias de startups que depois se tornaram gigantes tecnológicos, Elizabeth Holmes encontrou o apoio moral (e depois financeiro) que lhe permitiu vender a sua alegada invenção. Tendo como inspiração Steve Jobs e Thomas Edison, declarava que não se importava “de falhar 10 mil vezes” para ter “sucesso na vez 10.001”.
Havia ainda outra particularidade que tornava Elizabeth Holmes especial aos olhos de Silicon Valley. Tal como Mark Zuckerberg, Bill Gates ou Steve Jobs, a empreendedora sentiu um ímpeto tão forte para seguir a sua suposta missão de vida que acabou por abandonar o curso de engenharia química na Universidade de Stanford com 19 anos, idade com que fundou a Theranos.
Mas tudo não passou de uma grande fraude, que enganou personalidades da política norte-americana, investidores — e até Joe Biden. Esta semana, o caso de Elizabeth Holmes chegou finalmente a tribunal.
Theranos: o “meio para salvar o mundo” de uma jovem competitiva
Elizabeth Holmes nasceu, em 1984, em Washington D.C., mas cresceu em Houston, no Texas. Enquanto criança, mostrava já uma personalidade “bastante séria e determinada”, aspirando a ser bilionária quando crescesse. Para isso, tentou inventar, com apenas 7 anos, uma máquina de tempo, enchendo cadernos com desenhos pormenorizados da engenharia do seu aparelho, conta a Business Insider.
Filha de um funcionário público com um cargo de relevo e de uma assessora política, Elizabeth Holmes foi uma excelente aluna e sempre se interessou por tecnologia. Mas o foco na área da saúde surgiu pela via de um tetravô que havia sido cirurgião. Com a Theranos, conseguia combinar as duas paixões.
Muito estudiosa e com uma ideia clara do que queria no futuro, no anuário em que normalmente os estudantes norte-americanos colocam a sua fotografia e uma descrição de si mesmos antes de se licenciarem, Elizabeth Holmes escreveu que era “perfeccionista” e referiu que “ficava a trabalhar até tarde” para as “coisas funcionarem”, lembra o The Wall Street Journal. Além disso, diz ter uma missão: queria “tentar salvar o mundo” em menos de 20 anos.
A Theranos foi o meio para cumprir as suas aspirações, que defendia com garra e determinação. Juntamente com a história do tio, Elizabeth Holmes conseguiu que vários investidores acreditassem nas suas promessas. Um ano após a fundação da empresa, em 2004, já tinha conseguido investimentos na ordem dos sete milhões de dólares (cerca de seis milhões de euros), estando a Theranos já avaliada na ordem dos 30 milhões (aproximadamente 25 milhões de euros).
O primeiro a envolver-se no negócio foi um dos mais famosos investidores de startups de Silicon Valley, Tim Draper, conhecido por impulsionar negócios como a Tesla, o Skype, o Twitter ou o Hotmail. “Na altura, ela disse-me: ‘Quero mudar o sistema de saúde’. Vi aí uma oportunidade, ela tinha uma energia extraordinária”, recorda Tim Draper no documentário da HBO que conta a história de Elizabeth Holmes.
Apesar de uma das filhas do milionário ser amiga de Elizabeth Holmes não foi isso que motivou Tim Draper a investir na Theranos: “Eu sempre invisto quando vejo visão e oportunidade e se me apercebo de que a pessoa pode ir longe”, explica, acrescentando que “acreditou” na jovem. “Vi-a a dedicar a vida a conseguir algo extraordinário.”
Mas nem todas as reuniões iniciais com os investidores corriam bem — e havia algumas que começavam a mostrar as debilidades daquilo que se veio a tornar uma fraude. O Wall Street Journal dá conta de que, em conversações em 2004 com a MadVentures Associates — empresa que desenvolve tecnologias inovadoras na área da saúde —, Elizabeth Holmes prometia um negócio que ia “mudar a Humanidade”, mas não dava nenhum detalhe específico sobre como é que a Edison, a máquina que recolhia as amostras de sangue, funcionava.
“Quando mais tentávamos aprofundar a parte técnica, mais desconfortável ela ficava”, recorda a fundadora da MadVenture, Annette Campbell-White, que relata ainda que, depois de insistir para obter respostas mais concretas, a jovem, na altura com 20 anos, veio-se embora a meio da reunião. “Ficámos espantados”, lembra a empresária. Esta versão da história é, no entanto, desmentida por Elizabeth Holmes.
Também Phyllis Gardener, professora de medicina da Universidade de Stanford, recorda que, no início da empresa, Elizabeth Holmes foi falar com ela, apresentando-lhe a ideia da Edison. “Ela queria incorporar microfluídica [a ciência que estuda o fluxo dos fluidos] com nanotecnologia a um patch onde o sangue pode ser armazenado para detetar infeções”, lembra a docente, destacando que este processo “não pode ser feito, é fisicamente impossível”.
No documentário da HBO, a professora universitária revela que Elizabeth Holmes não tinha “limites”, “queria conquistar o mundo” e que a abordou mais duas vezes para discutirem o assunto. A resposta de Phyllis Gardener manteve-se: não podia ajudar alguém com uma ideia que considerava não fazer sentido. Mas sugeriu que falasse com Channing Robertson, chefe de departamento de ciências médicas da Universidade de Stanford.
A posição de Channing Robertson não podia ter sido mais diferente da de Phyllis Gardener. “Quando a conheci, soube que ela não era comum. Eu ensinei milhares de alunos, possivelmente até mais”, conta, acrescentando que se apercebeu de que estava a lidar com alguém “muito diferente” do resto dos estudantes.
Channing Robertson acreditou tanto na ideia e no potencial de Elizabeth Holmes, que deixou o cargo que tinha na Universidade de Stanford e começou a trabalhar enquanto conselheiro científico da Theranos, ajudando-a, essencialmente, a tratar das questões das patentes.
Empresa cresce e secretismo aumenta
Passados três anos desde a fundação da empresa, a Theranos já valia mais de 197 milhões de dólares (cerca de 166 milhões de euros) e continuava a angariar investimentos. O desenvolvimento da tecnologia da empresa mantinha-se, contudo, aquém do valor real e das promessas de Elizabeth Holmes.
Um dos maiores falhanços da carreira de Elizabeth Holmes ocorreu em 2008, quando tentou convencer a farmacêutica suíça Novartis a investir na sua empresa. Numa reunião diante de diretores executivos da farmacêutica em Zurique — em que mostrava as potencialidades do aparelho Edison —, a máquina simplesmente não funcionou. A cobaia era a própria inventora, que, durante duas horas, não parou de tirar sangue do dedo. Mas a máquina continuou sem funcionar, tendo-se desvanecido uma grande oportunidade para fechar um negócio no mercado europeu.
Looking for a REAL Theranos machine.
This one on the left is a real centrifuge with a Theranos logo on it, but I’m interested in the one on the right – the mythical Theranos Edison machine.
If anyone has one, or worked on one or even just saw it in action, let me know. pic.twitter.com/iIOW2rBGO7
— Chris Fralic (@chrisfralic) November 24, 2020
Para fazer face às debilidades técnicas demonstradas em Zurique, a Theranos adotou uma nova estratégia: evitar mostrar a tecnologia que estava a desenvolver, justificando o secretismo com o risco de outras empresas poderem tentar copiar a sua invenção. Mais tarde, veio a perceber-se que, essencialmente, essa era uma estratégia para assegurar a sobrevivência do negócio.
Ao Wall Street Journal, Oscar Laskin, vice-presidente da Celgene — uma outra startup da área da saúde —, descreveu, em 2008, a tecnologia oferecida pela Theranos como algo “demasiado bom para ser verdade”. “O nível de sofisticação requerido envolvia uma mudança de paradigma”.
A entrada em cena do namorado secreto de Elizabeth Holmes e os investimentos milionários
Em 2009, Sunny Balwani, um empresário paquistanês na área do comércio eletrónico, é contratado para a função de diretor de operações da Theranos, passando a ter um papel preponderante na empresa, apesar da falta de experiência em áreas como a medicina ou a química. Elizabeth Holmes já o conhecia da Universidade de Stanford e mantiveram um relacionamento (vários meios de comunicação social indicam que desde 2003, embora não haja certezas), apesar da diferença de 19 anos de idade entre os dois. Aliás, a existência de uma relação amorosa só foi conhecida em 2019 — até essa data, mantiveram-na longe e dos holofotes e também dos investidores.
Uma das maiores rondas de investimentos na Theranos chega em 2010 e a avaliação da empresa atinge o patamar de mil milhões de dólares (aproximadamente 844 milhões de euros). E quem investia eram pessoas do meio político e económico, desde o diplomata e ex-secretário de estado Henry Kissinger, ao economista e ex-secretário do Tesouro George Shultz, e ainda Jim Mattis, ex-general e ex-secretário de Defesa de Donald Trump.
Segundo o documentário da HBO, Jim Mattis via em Elizabeth Holmes valores como “integridade, competência técnica e científica” e alguém que “valorizava os direitos humanos”: “Ela é uma autentica revolucionária”, disse. Por seu turno, Henry Kissinger descreveu-a como tendo uma “espécie de qualidade etérea” e quase como sendo “membro de uma ordem monástica”.
Este tipo de investidores eram os preferidos de Elizabeth Holmes. Segundo aponta Phyllis Gardener, “ela não se queria rodear de conselhos científicos, preferiu aliar-se com homens muito poderosos que pareciam sucumbir ao seu charme”, frisando ainda “que estes homens poderosos podiam influenciar pessoas dno governo, no departamento de Defesa…”.
Mas não foram apenas personalidades do meio político que colocaram dinheiro na Theranos. Até investidores na área das startups o fizeram, incluindo Avie Tevanian, um dos engenheiros de software mais conceituados da Apple, Larry Ellison, fundador da Oracle, e Don Lucas, diretor executivo da Oracle.
Como é que uma jovem com menos de 30 anos conseguiu convencer personalidades de renome e pessoas que tinham conhecimento do mundo empresarial? Para Dan Ariely, professor de psicologia e economia comportamental, os investidores foram conquistados pela “atração emocional” da história concreta da jovem, que aproveitou uma memória negativa para dizer que pretendia salvar o mundo.
“Os dados concretos não se assimilam tão bem na nossa memória como as histórias”, explica o especialista no documentário da HBO, referindo que as “histórias são a cola que liga as histórias”. E continua: “Mais importante do que isso, as histórias têm emoções, algo que os dados não têm”. Por sua vez, prossegue, as emoções levam as “pessoas a fazerem coisas boas e más”. “As pessoas que investiram confiaram e acreditaram nela, a sua história tocou-lhes”, destaca Dan Ariely.
Negócio com a empresa Walgreens abre portas, mas expõe problemas
A presença de Sunny Balwani começou logo a sentir-se na Theranos, com cada vez mais investidores, alguns do comércio a retalho, a quererem investir na empresa. Em 2010, a segunda maior cadeia de parafarmácias nos EUA, a Walgreens, propõe um negócio para, nas suas instalações espalhadas por todo o país, se fazerem análises clínicas com a picada do dedo. Também a cadeia de supermercados Safeway apresenta um modelo de negócio idêntico.
Embora estes investimentos permitissem que a empresa saísse da bolha de Silicon Valley, a tecnologia continuava a não corresponder às expectativas — e nem sequer havia sinal de uma possível autorização da autoridade de medicamentos norte-americana, a FDA. Os contratos assinados com as duas empresas nunca foram integralmente cumpridos — aliás, a Safeway desistiu da ideia de negócio em 2012. A Theranos vai continuar, ao longo dos anos, a insistir com a Walgreens, alegando que algumas das falhas registadas eram apenas problemas temporários.
As suspeitas de que a tecnologia inventada na Theranos não passasse de uma fraude começavam, contudo, a ganhar credibilidade. Em 2012, havia a possibilidade de a tecnologia da empresa poder ser utilizada no exército, devido à ligação com o ex-general Jim Mattis. A ideia motivou uma visita relâmpago à sede da Theranos por parte do Centro de Serviços da Medicare e da Medicaid, que terá sido sugerida pelo tenente-coronel David Shoemaker, que levantava muitas dúvidas sobre o eventual negócio e sobre o próprio funcionamento da empresa. Na visita, Sunny Balwani garantiu que a máquina Edison ainda estava em fase de desenvolvimento — não tendo daí resultado qualquer problema legal —, mas acabou por liquidar as hipóteses de o aparelho ser utilizado no Exército.
O nascimento da figura pública Elizabeth Holmes
Os problemas na Theranos, que só se tornaram públicos em 2015, pareciam não pesar na consciência de Elizabeth Holmes — nem tinham impacto no sucesso da empresa, que continuava a receber múltiplos investimentos.
Ao mesmo tempo, os media começavam a dar atenção à jovem na casa dos 30 anos que vestia sempre o mesmo conjunto todos os dias: um fato preto com uma camisola de gola alta por baixo. Numa entrevista, a empreendedora diz que se inspirou em Steve Jobs e que, tal como o fundador da Apple, via neste procedimento uma maneira de simplificar o seu dia-a-dia.
Mas a indumentária não era a única coisa que os meios de comunicação social destacavam. Também contavam a história da jovem que queria mudar o mundo e passavam uma imagem de sucesso da Theranos. Em 2014, a empreendedora vivia a melhor fase desde a abertura da empresa, que valia já nove mil milhões de dólares (cerca de 7,5 mil milhões de euros). Foi capa da revista Fortune, da Forbes (que a caracterizou como a mais jovem bilionária self made do mundo), dedicaram-lhe um perfil na The Yorker e a revista Inc. chamou-lhe a “próxima Steve Jobs”. Tinha, finalmente, o reconhecimento que sempre quisera ter.
Juntamente a esta notoriedade atribuída pelos meios de comunicação social, Elizabeth Holmes era convidada para discursar em conferências com convidados de renome, tal como o ex-Presidente dos EUA Bill Clinton, o diretor executivo da empresa Alibaba Jack Ma, a ex-Presidente do Brasil Dilma Rousseff, entre muitos outros. Aliás, a sede da Theranos foi inclusivamente visitada pelo atual Presidente dos EUA, Joe Biden, na altura vice-presidente de Barack Obama.
A má experiência no Arizona
O reconhecimento público e a história inspiradora de Elizabeth Holmes levaram muitos recém-formados a quererem ajudar a desenvolver a Theranos. Contudo, as condições de trabalho eram bastante invulgares e muitos ex-funcionários recordam que existia um sentimento de paranoia: a maior preocupação era evitar que o se passava dentro da empresa se tornasse público. Por isso, de acordo com o Wall Street Journal, os funcionários eram obrigados a assinar um contrato de confidencialidade, segundo o qual não podiam revelar, nem mesmo à família, as invenções da Theranos. Alguns colaboradores denunciaram ainda, no documentário da HBO, que Sunny Balwani tentava espiar tudo o que eles faziam nos computadores da empresa.
Relativamente aos investimentos, o acordo com a Walgreens mantinha-se e, em 2013, num projeto experimental, ficou acordado que várias parafarmárcias do estado do Arizona iriam utilizar a máquina Edison. Com um forte investimento em publicidade, a Theranos oferecia análises clínicas tradicionalmente mais baratas, menos dolorosas e com uma grande vantagem: a possibilidade da personalização, cabendo a cada um eleger que despiste a que doenças é que queria fazer.
Todavia, a Theranos teve de enfrentar uma batalha legal com as entidades do Arizona, que não permitiam análises clínicas sem que houvesse antes uma prescrição médica. Não houve tempo para conseguir medidas concretas — o negócio colapsou entretanto — mas Elizabeth Hornes e Sunny Balwani chegaram a discursar no Senado do Arizona.
A personalização e o controlo da monitorização da própria saúde dos pacientes ficavam para mais tarde. Pelo meio, havia que realizar as análises às pessoas que tinham prescrição nas parafarmácias. Ao lá chegarem, os utentes eram muitas vezes surpreendidos: a técnica indolor da retirada de sangue no dedo não funcionava. Em vez disso, era utilizada a normal agulha e seringa no braço, que enchia frascos de sangue. Segundo a assistente de saúde Serena Stewart, que trabalhou numa das parafarmárcias, a justificação assentava no “tipo de análise” e também na necessidade de haver uma “amostra suficiente para realizar os testes”.
“Esta decisão surpreendeu muitos técnicos”, disse no documentário da HBO a assistente de saúde, que também recorda que muitos clientes “quiseram um reembolso” e diziam que o serviço “era terrível”.
A par de as análises ao dedo passarem a ser raramente usadas, muitas vezes a máquina Edison, que supostamente faria o despiste das doenças, não era utilizada quando as amostras de sangue chegavam à sede da empresa, em Palo Alto, Califórnia, depois de serem transportadas do Arizona. Pelo contrário, utilizava-se aparelhos da Siemens e da Diasor, os mesmos que outras empresas de análises clínicas usavam.
Quando era utilizada a Edison, no entanto, as amostras mostravam resultados clínicos invulgarmente altos ou baixos, que não coincidiam com o historial clínico dos pacientes. Isto porque ou a máquina apresentava problemas, ou então os aparelhos simplesmente não funcionavam. Mesmo neste último caso, os resultados eram entregues — mas não passavam, naturalmente, de um engodo. A situação era, por isso, particularmente grave, uma vez que se tratava do despiste de doenças como o cancro, a diabetes ou a sífilis — podendo conferir uma sensação de confiança ilusória.
O jornalista que expôs o caso e a queda do império
Em fevereiro de 2015, John Carreyrou, um jornalista do Wall Street Journal, recebeu uma chamada invulgar que denunciava as práticas antiéticas no laboratório Theranos, relatando aquilo que se passava no Arizona. Intrigado pela história, o jornalista decidiu investigar o tema, tendo mesmo experimentado o serviço de análises clínicas.
Com a ajuda de alguns ex-colaboradores da Theranos, o jornalista começou a recolher as peças de um complicado puzzle. Em outubro de 2015, é publicada uma série de artigos que denunciavam todas as irregularidades da empresa, numa altura em que Elizabeth Holmes ainda era considerada uma figura pública de renome já fora de Silicon Valley.
Por sua vez, a resposta da direção da Theranos passou por desmentir todos os factos e argumentos expostos na peça jornalística, tendo também sido acionada uma equipa de advogados para tentar processar John Carreyrou.
A partir daí, o castelo de cartas megalómano de Elizabeth Holmes começou a desfazer-se. Sucederam-se inúmeros processos legais de investidores, pacientes no Arizona e até de ex-funcionários. A jovem que queria “salvar o mundo” não passava de uma fraude, bem como o seu negócio, que acabou por, inevitavelmente, falir. Aliás, Elizabeth Holmes foi impedida por um tribunal de administrar um laboratório clínico e a Theranos foi declarada insolvente em 2018.
O julgamento em tribunal
Passado seis anos desde que a fraude foi descoberta, Elizabeth Holmes e Sunny Balwani enfrentam agora um julgamento em que ambos terão de responder pelas mentiras que contaram ao longo dos anos, arriscando uma pena de prisão que pode ir até aos 20 anos.
A Justiça norte-americana acusa Elizabeth Holmes e Sunny Balwani de se envolverem num “esquema multimilionário para enganar investidores” e também “num esquema para enganar médicos e doentes”, utilizando para o efeito “uma combinação de formas de comunicação direta, materiais de marketing, comunicados para os media, modelos e outras informações para enganarem os potenciais investidores”.
A própria relação amorosa secreta entre Elizabeth Holmes e Sunny Balwani — que acabou em 2019 —, levanta problemas judiciais. Elizabeth acusa o ex-namorado de abusos sexuais e emocionais, argumentando que não foi responsável pelas decisões que fez enquanto chefiava a Theranos. A defesa da arguida diz mesmo que Sunny Balwani “manipulou” a cliente durante anos para conseguir obter o controlo da empresa.
“Sunny Bulwani controlava o que [Elizabeth Holmes] comia, como se vestia, quanto dinheiro podia gastar, com quem ela podia interagir”, indica a defesa da mulher de 37 anos, acrescentando ainda que o ex-namorado atirou “com objetos duros e pontiagudos contra ela”.
Por seu turno, Sunny Bulwani rejeita as acusações da ex-namorada, dizendo que só entrou para a Theranos em 2009 e que era ela quem controlava a empresa.
Num procedimento típico da Justiça dos EUA, esta terça-feira marcou o início do interrogatório dos potenciais jurados no tribunal de San José, no estado da Califórnia. Cada um teve de comprovar que conhece a longa história de Elizabeth Holmes. Para isso, tiveram uma grande ajuda, dado que já foram publicados dois livros, dois documentários e um podcast sobre aquela que foi um dia “a próxima Steve Jobs”. E até um vídeo num tom mais cómico de James Corden.
Tal como na história da vida de Elizabeth Holmes, tudo o que aparenta ser “simples” e “otimista” afinal não é. O próprio início do interrogatório já se arrasta há mais de um ano — primeiro foi travado pela pandemia, depois pela sua gravidez. Em agosto de 2021, a ABC revelou que em julho Elizabeth tinha dado à luz o seu primeiro filho com o atual namorado Billy Evans — informação que manteve em segredo durante um mês.
O futuro de Elizabeth Holmes vai ser agora decidido em tribunal. Há, no entanto, uma certeza: a jovem outrora “competitiva” conseguiu realmente “mudar o mundo em menos de 20 anos”. Mas pelos piores motivos.