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Nunca como em 2023 as “guerras culturais” nos EUA foram tão intensas, com os sectores mais progressistas e mais conservadores da sociedade engalfinhados em azedas querelas em torno da existência (ou não) de “racismo estrutural”; da presença de estátuas em lugares públicos que representem figuras históricas com vínculos à escravatura ou à opressão; da educação sexual no ensino básico e secundário; do domínio do “cis-heteropatriarcado branco” nos lugares de topo do Estado, das empresas e das instituições; da introdução de quotas raciais e de género e outras medidas para corrigir essa prevalência; da vigilância apertada da linguagem usada no espaço público; dos direitos e prerrogativas de quem que não se identifica com o sexo biológico com que nasceu; ou do “cancelamento” sistemático de indivíduos, marcas, empresas ou instituições que expressem ideias vistas como ofensivas por alguns grupos.
Estas “guerras”, que começaram nos EUA, têm vindo a alastrar pelo mundo ocidental e, nos anos mais recentes, começaram a perturbar a usual modorra portuguesa, pelo que é muito oportuna a edição por cá de The closing of the American mind: How higher education has failed democracy and impoverished the souls of today’s students (1987), do filósofo americano Allan Bloom (1930-1992), com o título A destruição do espírito americano: Como o ensino superior defraudou a democracia e empobreceu os espíritos dos alunos de hoje. A tradução é de Maria José Batista e o livro faz parte da meritória colecção “Os Livros Não Se Rendem”, da Guerra & Paz, consagrada a “grandes ensaios da história, filosofia e economia, nunca antes publicados em Portugal” e cujo livro inaugural foi O crisântemo e a espada, de Ruth Benedict (ver Dos samurai aos pokémon: De que é feita a identidade japonesa?).
Quando a filosofia veste Armani
Apesar da extensão (meio milhar de páginas, na edição portuguesa) e densidade de The closing of the American mind, da rebuscada argumentação e da constante remissão para obras clássicas da filosofia que, com excepção de estudantes universitários e professores dessa área, poucos terão lido ou conhecerão sequer a existência, o livro foi um sucesso de vendas nos EUA, permanecendo durante quatro meses na lista de best-sellers do The New York Times e vendendo meio milhão de exemplares na edição em capa dura e outros tantos exemplares na subsequente edição em capa mole, o que, segundo escreve Andrew Ferguson no posfácio a uma reedição de 2016 de The closing of the American mind (reproduzido na edição portuguesa), deixou atónitas “as melhores mentes” do mundo editorial americano e gerou royalties que permitiram a Bloom dar largas ao seu apetite por luxo.
O livro foi prefaciado pelo escritor Saul Bellow, amigo próximo de Bloom e que, oito anos após a morte deste, o usaria como modelo para Abe Ravelstein, o professor de filosofia que é o protagonista de Ravelstein (2000), derradeiro romance do autor e em que a personagem do narrador tem afinidades com o próprio Bellow.
Bloom e Ravelstein partilham a ascendência judaica; o facto de nos seus estudos avançados de filosofia em Paris terem tido como mentor o franco-russo Alexandre Kojève; o cargo de professor na Universidade de Chicago (onde Bellow também leccionou); a cultura prodigiosamente vasta; o brilho intelectual; a calvície; o carácter exuberante; o vício dos mexericos; o gosto requintado em termos de vestuário, malas, acessórios, peças decorativas, charutos e hotéis; a inclinação para dissipar rapidamente o dinheiro ganho; a atracção por efebos com corpos bem proporcionados; e o facto de terem escrito “um livro – difícil mas popular –, um livro espirituoso, inteligente e combativo, que tinha vendido bem” (Bellow), onde expuseram sem rodeios as suas ideias sobre a vida intelectual da América e lhes dera a ganhar uma pequena fortuna. Coroando estas semelhanças, há quem assuma que a SIDA que consome Ravelstein no romance foi também a verdadeira causa da morte de Bloom, que sempre esteve envolta em sombras e ambiguidades.
Ferguson informa, no posfácio, que “as vendas no estrangeiro [de A destruição do espírito americano] foram igualmente prodigiosas”, o que é talvez um exagero, pois na Europa o livro teve recepção discreta, por Bloom não ter aí a notoriedade como figura pública que tinha nos EUA e, quiçá, por a obra tratar de um problema que, aparentemente, era (então) só americano, levando a que, em muitos países, o livro só muito tardiamente fosse traduzido.
Abertura e estreitamento
Na raiz de muitos dos problemas identificados em A destruição do espírito americano está a excessiva “abertura” que as universidades começaram a cultivar, uma “abertura” que Bloom associa ao relativismo cultural: “O objectivo é forçar os alunos a reconhecerem que existem outras formas de pensar e que os métodos ocidentais não são melhores do que quaisquer outros” (pg. 43). Bloom não se opõe à abertura de espírito em si mesma, no sentido de disponibilidade para considerar outras experiências e pontos de vista, mas à sua degenerescência na aceitação acrítica de todas as alternativas e no nivelamento destas em termos de pertinência e validade. “A abertura costumava ser a virtude que nos permitia procurar o bem através do uso da razão. Agora significa aceitar tudo e negar o poder da razão. A busca desenfreada e irreflectida da abertura, sem reconhecer o inerente problema político, social ou cultural da abertura enquanto fim da natureza, deixou a abertura desprovida de sentido […] As mais recentes tentativas da ciência para compreender a situação humana – o relativismo cultural, o historicismo, a distinção facto/valor – são o suicídio da ciência. […] O relativismo cultural consegue destruir as pretensões universais ou intelectualmente imperialistas do Ocidente, tornando-o em apenas mais uma cultura” (pg. 47).
A preocupação relativamente aos riscos da abertura sem critério não foi introduzida por Bloom. Desde meados do século XX que, no meio intelectual anglo-saxónico, circula uma advertência similar, se bem que formulada em termos mais abruptos e jocosos do que os usados por Bloom: “Devemos manter a mente aberta, mas não tão aberta a ponto de o cérebro cair”. Esta frase, que tem sido atribuída a diversas personalidades, de Carl Sagan a G.K. Chesterton, parece ter sido proferida pela primeira vez nesta forma (ou numa muito semelhante) pelo cientista político austríaco Walter Kotschnig em 1939, em palestras perante alunos universitários no Massachusetts, mas há registo de avisos similares bem mais antigos. Por exemplo, nos cadernos de notas do escritor britânico Samuel Butler (1613-1680) já se encontra esta admoestação: “Maldito seja quem não sabe quando fechar a sua mente. Uma mente aberta tem certamente os seus méritos, mas não deve ser tão aberta que deixe entrar seja o que for e não consiga reter seja o que for”.
Embora A destruição do espírito americano esteja repleto de citações dos mais variados pensadores, Bloom deixou de fora aquele que foi, provavelmente, o principal promotor do relativismo na academia e nos círculos intelectuais do mundo ocidental durante o último quartel do século XX: Paul Feyerabend. A obra mais influente deste filósofo austríaco foi Contra o método: Esboço de uma teoria anarquista do conhecimento, que surgiu em 1970 e ganhou difusão com a publicação em 1975 da versão inglesa; nela podem encontrar-se afirmações como “a ciência do Primeiro Mundo é apenas uma entre muitas” e “as semelhanças entre ciência e mito são verdadeiramente surpreendentes” (ver capítulo “A cada um a sua verdade” em George Santos, a verdade da mentira e a política no século XXI), conceitos que acabaram por enraizar-se firmemente em muitas faculdades de ciências sociais e humanas.
A percepção da “busca desenfreada e irreflectida da abertura”, sobretudo pelos sectores mais liberais (no sentido que este termo tem na política americana, de “esquerdista” ou “progressista”), como via (paradoxal) para o “estreitamento” – ou seja, a incapacidade ou a resistência a colocar as questões relevantes – é central no livro de Bloom, daí o título original, The closing of the American mind. O que é difícil de perceber é a razão que terá levado a edição portuguesa a trocar “estreitamento” (“closing”) por “destruição”, termo que Bloom não emprega na obra e que não descreve adequadamente o fenómeno em apreço.
É a filosofia que faz girar o mundo?
“A universidade, de todas as instituições, é a que está mais dependente das crenças mais profundas daqueles que participam na sua peculiar vida. Os nossos actuais problemas educativos não podem ser seriamente atribuídos a maus administradores, fraca vontade, falta de disciplina, falta de dinheiro, insuficiente atenção aos três Rs [leitura, escrita e aritmética] ou a qualquer outra explicação comum que indique que as coisas poderão ser rectificadas se nós professores, simplesmente fizermos um esforço. […] A essência de tudo isto não é social, política, psicológica ou económica, mas filosófica” (pg. 397-98). Bloom situa a grande crise filosófica na universidade americana na década de 1960 e vê nela uma réplica “do desmantelamento estrutural da investigação racional por que passara a universidade alemã na década de 1930” (pg. 400). Consciente de que o paralelismo entre o nazismo alemão da década de 1930 e a esquerda americana da década de 1960 será surpreendente para os leitores, Bloom argumenta que “em ambos os países, as universidades cederam sob a pressão dos movimentos de massas, e fizeram-no, em grande medida, porque pensavam que esses movimentos possuíam uma verdade moral superior a qualquer outra que a universidade pudesse proporcionar […] O pensamento era efectivamente o mesmo. A Nova Esquerda na América era uma esquerda nietschianizada-heideggerizada [recorde-se que algumas ideias de Friedrich Nietzsche foram deformadas e apropriadas por ideólogos nazis e que Martin Heidegger foi membro do Partido Nazi (NSDAP) entre 1933 e 1945, período durante o qual exprimiu posições em consonância com o regime e a ideologia nazi]. O ódio irracional à ‘sociedade burguesa’ era exactamente o mesmo em ambos os países” (pg. 401).
Bloom gasta largas dezenas de páginas a discutir a evolução do pensamento ocidental e a argumentar em prol do papel central da universidade na definição da essência e do rumo da civilização; todavia, frequentes vezes ao longo do livro, insinua-se no leitor uma dúvida: mesmo sem pôr em causa a erudição do autor e a solidez das suas reflexões sobre os confrontos entre correntes filosóficas, não estará ele a atribuir uma influência excessiva à filosofia e à universidade na formação da mentalidade das massas? Não estará Bloom a confundir o vasto mundo, com o seu turbilhão de gentes, pulsões, questões e polémicas, com uma sala de aulas no departamento de Humanidades de uma universidade de elite? Os conceitos filosóficos nascido nas torres de marfim da academia podem percolar através dos estratos da hierarquia social e chegar ao cidadão comum que nunca leu um livro de filosofia, não frequenta livrarias e julga que Kierkegaard é um “médio criativo” dinamarquês apontado pelos media como reforço para o plantel do Benfica, mas serão esses conceitos o factor exclusivo que determina a forma como esse cidadão vê o mundo e se comporta? Mesmo entre as elites intelectuais, políticas e empresariais – que são quem efectivamente determina o rumo das nações, não os directores dos departamentos de filosofia das universidades – quantos terão lido, compreendido e assimilado as principais obras de Nietzsche e Heidegger e incorporado as ideias destes na sua mundividência, nos seus desígnios e na sua actuação? Não serão as decisões relevantes das massas e das elites ditadas mais por considerações pragmáticas, comezinhas e oportunistas do que por complexas e ponderosas ruminações filosóficas?
Tome-se o caso do relativismo: este é hoje dominante entre os cidadãos do mundo ocidental, mas tal não decorre de estes terem empreendido aturados estudos filosóficos sobre o tema. O relativismo – seja ele cultural, moral ou epistemológico – pode ser apenas uma forma prática (e, já agora, preguiçosa, cobarde e obtusa) de lidar com a extrema complexidade do mundo.
O relativismo moral é muito conveniente para que justifiquemos perante nós mesmos as pequenas infâmias que cometemos e a nossa falta de “coluna vertebral”; não andamos longe da célebre boutade de Groucho Marx, “estes são os meus princípios; se não gostarem, tenho outros”.
O relativismo epistemológico que hoje grassa pode ser visto sobretudo como consequência da disseminação dos conceitos de “pós-verdade” e de “factos alternativos” (ver Qual a palavra que dá mais pontos: Trump ou pós-verdade?), associada à desmedida popularidade das redes (ditas) sociais, que permitem que cada um viva na sua “bolha de realidade”, rodeado apenas de “informação” que confirma aquilo que já sabe (ou melhor, que julga saber). Outra parte do relativismo epistemológico resulta de muitas pessoas não terem arcaboiço mental nem tempo para construir e sustentar uma mundividência coerente; no lugar desta, amontoam meias-verdades, generalizações e preconceitos (por vezes contraditórios) e em constante mutação – aquilo em que acreditam é o que leram no último tweet que receberam ou ouviram a um comentador televisivo. Amanhã poderão exprimir ideias diversas, sem que se apercebam da incongruência, uma vez que muitas das suas “crenças” têm a consistência de fumo e a sua capacidade para reter informação é, nalguns domínios, comparável à de um pardal. “Tudo é relativo” é o argumento infalível brandido pelo tolo vulgar, desprovido de memória e de capacidade de raciocínio, a fim de “triunfar” em todas as discussões sobre assuntos dos quais nada sabe e aos quais não dedicou cinco minutos de reflexão em toda a vida. Na Era Pré-Relativista, um debate terminava quando um dos lados, confrontado com factos insofismáveis, reconhecia que “contra factos não há argumentos”; mas hoje é sempre possível encontrar um website, um podcast ou um vídeo que forneça “factos alternativos” para contrapor aos “factos”.
Talvez o excessivo foco de Bloom na filosofia e na universidade para explicar a crise existencial do mundo moderno resulte da sua peculiar experiência de vida e da sua insaciável sede de conhecimento. Quando tinha apenas 13 anos e ainda vivia na sua cidade natal de Indianapolis, Bloom leu um artigo nas Selecções do Reader’s Digest sobre a Universidade de Chicago que o deixou tão fascinado com esta instituição que, ingenuamente, propôs aos pais inscrever-se nela. Apesar de Allan Bloom já ter revelado uma inteligência precoce, os pais não levaram a ideia a sério; mas, após a família se ter mudado para Chicago e ter consultado um amigo cujo filho, também ele intelectualmente sobredotado, se inscrevera na dita universidade, a aspiração do jovem Allan acabou por realizar-se: aos 15 anos entrou na Universidade de Chicago, concluiu a licenciatura aos 18 e o doutoramento aos 25, com uma tese sobre o filósofo grego Isócrates.
Entretanto, aprofundara os seus estudos de filosofia na École Normale Supérieure de Paris, onde teve também o seu primeiro emprego como professor. Toda a sua vida profissional foi passada a leccionar filosofia em departamentos universitários de Humanidades (em Yale, Cornell, Toronto, Chicago e Tel Aviv) e a sua devoção aos textos clássicos levou a que aprendesse grego e francês para os poder ler no original – e levou também a que traduzisse algumas dessas obras para inglês, nomeadamente a República, de Platão, e Émile ou De l’éducation, de Jean-Jacques Rousseau.
A sua constante convivência com as obras-mestras da história da filosofia ocidental ajuda a compreender que Bloom se esforce tanto por explicar tudo o que se passa no mundo através de Platão, Sócrates, Hobbes, Descartes, Locke, Kant, Rousseau, Tocqueville, Hegel, Nietzsche, Marx, Weber, Freud e Heidegger – que são os pensadores mais frequentemente citados em A destruição do espírito americano.
Porém, há que dar razão a Bloom quando ele afirma que “considerando que, mais do que qualquer outra nação do passado, as nações modernas se fundaram nos vários usos da razão”, pelo que “ter uma crise na universidade, a casa da razão, é talvez a crise mais profunda que [aquelas] podem enfrentar”.
Infelizmente, não é de esperar que a crise da universidade possa vir a resolver-se tão cedo, já que, dos magníficos reitores aos assistentes-estagiários, quem tem o dever de pensar e gerir a universidade parece estar convencido de que as dificuldades vividas pelas instituições de ensino superior são quase exclusivamente financeiras, pelo que as suas reivindicações mais sonoras se prendem com o reforço orçamental para cobrir o efeito da inflação na conta da electricidade e do gás. Também os alunos entendem que a crise da universidade é, essencialmente, de ordem financeira: o que reclamam não é o regresso de Platão aos curricula, é a abolição das propinas.
O esvaziamento da universidade
O cenário que Bloom traça do estado do ensino superior nos EUA em 1987 é desolador: “É espantosa a quantidade de alunos universitários que se acotovelam para frequentar cursos, sem qualquer plano ou perguntas a fazer, apenas preenchendo os seus anos de faculdade. De facto, com raras excepções, os cursos são partes de especialidades que não oferecem qualquer base cultural nem analisam questões importantes para os seres humanos enquanto tais. A chamada explosão de conhecimento e a crescente especialização não têm preenchido os anos de faculdade, têm-nos esvaziado. […] Tem havido diversas tentativas de preencher o vácuo de forma indolor, com vários tipos de embalagens extravagantes com aquilo que já existe – opções de estudo no estrangeiro, majors individualizados, etc. Depois, há os Estudos de Cultura Negra e os Estudos das Mulheres ou de Género, assim como estudos de Aprenda Outra Cultura. Os Estudos de Paz estão em vias de ter semelhante preponderância. […] A última novidade é a literacia informática, cuja insignificância absoluta é apenas evidente para aqueles que pensam um pouco sobre o que a literacia pode significar. Faria algum sentido promover a literacia dos literatos, uma vez que a maioria dos alunos saídos das escolas secundárias tem, hoje em dia, dificuldade em ler e escrever” (pg.432-33).
Se Bloom regressasse à Terra em 2023, constataria que esta situação não só não tinha melhorado como alastrara dos EUA para o resto do mundo ocidental.
As escolas secundárias, perante um corpo discente cada vez mais desinquieto e incapaz de se concentrar numa tarefa durante mais de um minuto, fenómeno que tem sido diagnosticado como “Perturbação de hiperactividade com deficit de atenção” (ADHD, na sigla inglesa), mas cujos sintomas se confundem com a indisciplina, a incivilidade, a petulância e a sobrecarga energética resultante de uma dieta demasiado rica em açúcar, foram desistindo de tentar persuadir os alunos a ler os clássicos ou, na verdade, qualquer texto com mais de meia dúzia de páginas – nalguns casos, os textos literários ou filosóficos foram substituídos por “conteúdos” mais condizentes com os interesses e capacidades intelectuais dos alunos: letras de canções de rap, manuais de instruções de electrodomésticos, rótulos de produtos alimentares, etiquetas de roupa. A literacia informática, ainda incipiente nos curricula universitários americanos de 1987, assume, nos países desenvolvidos, lugar central na escola desde o ensino básico. No Portugal de 2023, governantes e pedagogos aspiram a uma escola hipertecnológica, expurgada de tralha arcaica, como livros em papel, cadernos e quadros de ardósia, e em que toda a aprendizagem e avaliação é mediada por dispositivos electrónicos, e o actual primeiro-ministro já anunciou como desígnio nacional que todos os alunos aprendam uma linguagem de programação, imaginando talvez que, assim, o país se converterá, do Minho ao Algarve, num florido Silicon Valley com unicórnios a pastar entre colinas coroadas por aerogeradores e estradas onde só circulam Teslas.
Face à crescente impreparação dos alunos que finalizam o ensino secundário – paradoxalmente acompanhada por uma luxuriante inflação nas notas – muitas universidades viram-se obrigadas a baixar drasticamente os seus níveis de exigência nos cursos já existentes, a criar “cursos-de-treta” (sobretudo na área das Humanidades), de natureza vaga, utilidade duvidosa e empregabilidade nula e a atribuir diplomas a quem quer que pague as propinas. Como que subvertendo um dito do físico e cosmólogo Lawrence Krauss, o sistema educativo desistiu da sua missão de fazer os estudantes superar a ignorância – agora contenta-se em certificá-la.
Paralelamente ao aumento do facilitismo pela parte de muitas instituições de ensino superior, regista-se uma mudança na atitude dos alunos: estes tornaram-se avessos a ser confrontados com ideias e conceitos que divirjam dos que já possuem; exigem ser advertidos antecipadamente pelos professores da eventual presença, nas matérias leccionadas e respectivos textos e materiais de apoio, de elementos que possam magoar a sua sensibilidade (o que no meio anglófono se designa por “trigger warning”); exigem o uso de “linguagem inclusiva”, nomeadamente a que contempla as múltiplas declinações da identidade de género e da orientação sexual. A principal preocupação dos alunos universitários de hoje parece ser que todos os campi universitários se transformem em “safe spaces”, isto é, lugares livres de preconceitos, conflitos e críticas e, a bem dizer, de quaisquer ideias, conversas ou acções vistas como potencialmente ameaçadoras, sobretudo as que envolvam minorias (étnicas, de género ou de orientação sexual) tradicionalmente oprimidas pelo cis-heteropatriarcado branco, cuja capacidade para se sentirem atacadas, ofendidas ou menosprezadas, ainda que de forma indirecta (as famigeradas “micro-agressões”), se tornou praticamente ilimitada. E, a fim de assegurarem que a universidade está meticulosamente desinfectada e convertida num caldo de cultura para florzinhas-de-estufa (“snowflakes”, no calão anglófono), estes grupos multiplicam-se em petições, manifestações, greves e outras formas de protesto destinadas a expulsar professores e proibir palestras de convidados, simplesmente por exprimirem ideias que não estejam alinhadas com as suas. Camille Paglia, uma das mais influentes feministas das últimas décadas – que, em 2021, se converteu no alvo dos alunos da University of Arts de Philadelphia, que exigiram a sua expulsão do corpo docente, por ter ousado divergir da posição “politicamente correcta” em matéria transgénero –, exprimiu com admirável concisão o actual estado do ensino superior: “A universidade deixou de ser um local de debate de ideias, tendo-se tornado um infantário onde a idade adulta parece ser adiada até à eternidade”.
“A geração mais bem preparada de sempre”
Allan Bloom lamentou que as universidades se enchessem com estudantes que “não aprenderam a ler, nem têm a expectativa de se deleitarem com a leitura […] [e têm] poucas pretensões culturais” (pg. 77), e que, em resultado dos tumultos ocorridos nas universidades americanas na década de 1960, esses estudantes, com o apoio de professores extremistas e a cobardia e passividade dos restantes, tivessem arrebatado ao corpo docente o poder de definir “os objectivos da universidade e o conteúdo daquilo que ensinavam” (pg. 399) e tivessem conquistado o poder de despedir os professores que não se submetessem. Porém, por veementes que sejam as invectivas de A destruição do espírito americano, Bloom teria dificuldade em imaginar que, na terceira década do século XXI, muitas universidades americanas estariam transformadas, do ponto de vista das ideias e da linguagem, em espaços rigorosamente policiados e meticulosamente acolchoados, de forma que nenhum aluno corra o risco de sentir-se “magoado”.
Esta situação tem sido denunciada em várias obras recentes, uma das quais, surgida em 2018, tem um título que presta tributo ao livro de 1987 de Bloom: The coddling of the American mind: How good intentions and bad ideas are setting up a generation por failure (numa tradução livre: “O apaparicamento do espírito americano: Como boas intenções e más ideias estão a encaminhar uma geração para o fracasso). Os seus autores, Greg Lukianoff e Jonathan Haidt, argumentam que a obsessão dos jovens em excluir da universidade tudo o que os possa ofender, irritar, incomodar ou fazer sentir desconfortáveis não só subverte os objectivos do ensino superior como está a criar uma geração de uma extrema fragilidade emocional, incapaz de enfrentar o mundo real, quanto mais de se transformarem em adultos autónomos e dar contributos válidos para a sociedade.
Entretanto, em Portugal, inviolável e perene remanso paradisíaco num mundo de tensão e turbulência, governantes, ex-governantes, líderes políticos, comentadores, professores, directores escolares e reitores, continuam a falar da “geração mais bem preparada de sempre”, uma ilusão que se baseia 1) em estatísticas “marteladas”, notas inflacionadas, passagens administrativas e cursos faz-de-conta; 2) na presunção, pela parte da elite, de que os seus filhos e os amigos dos seus filhos são representativos do jovem português médio; 3) no estardalhaço gerado nos media por uma pequena troupe de jovens com espírito empreendedor, discurso de uma assertividade sobranceira, autoconfiança ilimitada e mundividência hipercompetitiva e filistina, formatada pela psicologia de pacotilha dos manuais de gestão, dos livros de auto-ajuda e das palestras motivacionais.
Em contraponto, os media divulgam, cada vez com maior frequência, estudos que dão conta de uma juventude desorientada, desesperançada, incapacitada pela depressão e pela ansiedade, atormentada por “ataques de pânico” e que confessa ter medo, sentir-se só, alimentar pensamentos suicidas e recorrer à automutilação para, ao menos, sentir qualquer coisa (os inquéritos e estudos raramente vão ao ponto de explicitar de que têm medo os jovens – talvez tenham medo de ter medo, que é a forma mais abjecta que o medo pode assumir). Todavia, as notícias sobre esta juventude assustada e sem rumo parecem não chegar aos olhos e ouvidos da elite que domina o espaço público, que continua a repetir até à náusea o cliché da “geração mais bem preparada de sempre”, talvez por esta ficção acabar por ser lisonjeira para muitos adultos: se os jovens são os mais bem preparados, foi porque os governantes promoveram as reformas e os investimentos necessários, porque os tecnocratas delinearam os programas adequados, porque a classe docente desempenhou as suas funções exemplarmente e porque os pais souberam ouvir e acompanhar os filhos e proporcionar-lhes uma sólida formação cívica e moral.
Família + escola vs. TikTok + Playstation
Allan Bloom tece considerações pertinentes sobre o declínio da relevância da família na educação dos filhos: por um lado o papel da família enquanto transmissora da tradição foi esbatendo-se, já que, “com a explosão de informação, a tradição tornou-se supérflua” (pg. 71). Por outro lado, “os pais e as mães deixaram de ter a ideia de que a mais elevada aspiração que podiam ter para os seus filhos é que fossem sábios […] A competência especializada e o sucesso são tudo quanto conseguem imaginar” (pg. 71). Finalmente, “os pais já não têm a autoridade legal que tinham no Velho Mundo. Falta-lhes autoconfiança enquanto educadores dos filhos, aceitando generosamente que eles serão melhores do que os seus pais, não só no que diz respeito ao bem-estar, mas também na virtude moral, física e intelectual. Existe sempre uma crença mais ou menos aberta no progresso, o que significa que o passado parece pobre e desprezível” (pg. 71).
Ao mesmo tempo, aponta Bloom, “primeiro a rádio, depois a televisão, assaltaram e destruíram a privacidade do lar […] [pelo que] os pais já não conseguem controlar a atmosfera da casa e perderam até a vontade de o fazer. Com grande subtileza e energia, a televisão entra não só na sala, mas também […] nos gostos de velhos e novos, apelando ao prazer imediato e subvertendo tudo o que não esteja em conformidade com este” (pg. 72). A “velha” vida familiar é incapaz de apresentar aos seus membros propostas para conversas e actividades em comum que sejam capazes de competir com “as coisas admiráveis e interessantes com que são bombardeados dentro do seu próprio lar” (pg. 72).
Estas linhas de 1987, embora certeiras, poderão parecer ingénuas ao leitor de 2023, que está consciente de que o poder da televisão para dissolver a atmosfera familiar iria continuar a aumentar imparavelmente ao longo da década de 1990 e que, no século XXI, o smartphone e a Internet, nas suas múltiplas facetas e com a cumplicidade de uma parafernália de gadgets electrónicos, iriam pulverizar definitivamente a “família tradicional” e aniquilar de vez a autoridade e influência dos pais sobre os filhos.
Se a multiplicação do número de canais de televisão e de televisores em cada lar já favorecera que cada membro da família se isolasse dos outros e se consagrasse à sua esfera de interesses, o smartphone com acesso à World Wide Web envolve cada indivíduo numa “bolha de realidade” absolutamente exclusiva. A família pode estar sentada à mesa para uma refeição, ou a desfrutar de um dia na praia, mas o smartphone permite que todos se ignorem mutuamente durante a maior parte do tempo. Por outro lado, um dos efeitos da imersão permanente num avassalador caudal de “novidades” é o aumento da taxa de renovação das modas e a aceleração da obsolescência do conhecimento “tradicional”, o que, por sua vez, alarga o fosso entre gerações. É certo que, desde tempos imemoriais, sempre existiram desfasamentos e incompreensões entre gerações e que as inovações tecnológicas tenderam a produzir alterações na sociedade e no relacionamento intergeracional, mas o mundo nunca passou por uma mudança tecnológica tão rápida, abrangente, imersiva e poderosa como a que está associada aos smartphones e à Internet. Daqui resulta que o mundo dos pais e dos avós e dos professores se afigura aos jovens de hoje como absolutamente “pobre e desprezível”, pelo que eles não esperam que a família ou a escola tenham algo de apelativo e pertinente para lhes transmitir ou um conselho útil para lhes dar. Família e escola são, apenas, uma tremenda “seca” e urge regressar ao vídeojogo deixado em suspenso no computador ou averiguar que novos vídeos com outros miúdos a fazer estroinices foram “postados” no TikTok nos breves minutos que passaram desde a última vez que consultaram o smartphone.
Em Outubro de 2001, no artigo “Digital natives, digital immigrants”, publicado na revista On the Horizon, o especialista em educação Mark Prensky escrevia: “O que me espanta em todo o alarido e polémica de hoje em torno do declínio da educação nos EUA é não darmos atenção à mais fundamental das suas causas: os nossos alunos mudaram radicalmente. Os alunos de hoje não são os alunos para os quais o nosso sistema de ensino foi concebido. Os alunos de hoje não sofreram apenas uma mudança incremental em relação aos do passado, não se limitaram a alterar o seu calão, as suas roupas e os seu ornamentos corporais ou o seu estilo, como acontecia antes entre gerações. O que temos agora é uma descontinuidade abissal. Podemos até designá-la como ‘singularidade’ – um evento que introduz alterações tão profundas que não há retorno possível. Essa ‘singularidade’ foi a chegada e a rápida disseminação da tecnologia digital nas últimas décadas do século XX […] Os alunos de hoje pensam e processam informação de uma forma fundamentalmente diferente da dos seus antecessores”.
22 anos após este alerta, com fornadas de crianças cada vez mais “digitalizadas” a entrarem no sistema de ensino, pouco mudou de essencial neste, nem nos EUA nem em Portugal. Os decisores e os pedagogos continuam a desenhar programas, objectivos e metodologias concebidos para os “sistemas operativos”, os interesses e o mapa mental das crianças e adolescentes de meados do século XX. Em Portugal, os media tradicionais gastam muitas páginas e muitas horas de emissão com um tema a que costuma dar-se a designação de “Educação”, mas que, em vez de tratar do escancarar do abismo entre a escola e os alunos e do que significa “ensinar” na era da “realidade aumentada”, do Chat GPT, do TikTok, do Snapchat, do BeReal e do Twitch, são quase exclusivamente ocupadas com as reivindicações dos professores relativas a remunerações e carreiras, em particular a “recuperação integral do tempo de serviço” para efeitos de “progressão na carreira”. Entre 2018, quando este assunto foi abordado no capítulo “Exigimos respeito”, em “A eutanásia mata” e outros 9 slogans letais, e o presente, a eficácia da escola prosseguiu o seu penoso declínio – com a ajuda dos confinamentos impostos pela pandemia de covid-19 – e o mister de professor tornou-se ainda mais frustrante e desgastante, mas a única mudança relevante no discurso da classe docente foi a substituição das palavras de ordem “nove anos, quatro meses e dois dias”, por “seis anos seis meses e 23 dias”, mercê de algumas concessões pela parte do Estado em termos salariais. É como se os tripulantes do Titanic insistissem em discutir com o representante da administração da White Star Line a remuneração das horas extraordinárias enquanto o navio se afunda.
A universidade-empresa, o estudante-consumidor e o conúbio entre ciência e cupidez
É difícil compreender a vertiginosa decadência da universidade se, como Allan Bloom, buscarmos explicações apenas na filosofia. O historiador americano Daniel Bessner apresentou recentemente, no programa “Real Time with Bill Maher”, de 21.04.2023, uma análise dessa decadência, que envolve considerações económico-financeiras, empresariais, sociológicas e comportamentais: “Na última geração ou geração e meia [ou seja, desde a publicação de The closing of the American mind] ocorreu uma mudança de fundo na universidade americana – uma transformação centrada-no-consumidor, em que os estudantes se converteram efectivamente em consumidores. A ‘experiência universitária’ passou a estar no centro da universidade, tomando o lugar da educação, e isto teve vários efeitos negativos. Hoje em dia, a maioria das universidades é gerida como se fosse um negócio […] Cerca de 70% dos professores não fazem parte do quadro, o que significa que são mal pagos e não têm estabilidade profissional. Na década de 1970 […] cerca de 70-75% dos professores estavam integrados no quadro”. Esta precariedade crescente dos professores deixa-os incapazes de oferecer resistência quando são confrontados por alunos que discordam do que ensinam ou da forma como é ensinado.
Ainda segundo Bessner, “quando gerimos uma universidade como um negócio, afastamo-nos do propósito educacional que deveria estar no seu cerne. Situações em que os estudantes impedem oradores convidados de falar estão profundamente conectadas com o facto de o estudante universitário ser visto como um consumidor – ele está lá para desfrutar de uma ‘experiência’ e paga por isso uma pipa de massa e contrai uma dívida colossal, portanto está absolutamente determinado a divertir-se […] [A universidade de hoje] tem mais a ver com curtir álcool, drogas e sexo do que com educação”. Ou seja, o aluno, ao ser convertido em “cliente” e ao ter visto o seu curso convertido numa “experiência”, é natural que deseje que esta seja o mais agradável possível, o que inclui não ser desafiado nas suas certezas e preconceitos.
A universidade portuguesa não assumiu ainda contornos tão “empresariais” quanto a americana, mas o processo de conversão do estudante em cliente está em curso. Mesmo nas universidades públicas, o facto de o financiamento estatal estar vinculado ao número de alunos (e não à qualidade e relevância da sua produção científica ou ao nível de preparação e à empregabilidade dos seus licenciados) faz com que o principal objectivo das universidades seja hoje angariar estudantes, quaisquer estudantes, sem olhar ao seu grau de preparação, ao seu perfil psicológico ou à sua motivação. E como na universidade, pública ou privada, não há pior chamariz possível para estudantes indiferenciados, impreparados e sem ética de trabalho do que uma aura de exigência, as universidades fazem tudo para que a vida dos seus estudantes se escoe de forma plácida e aprazível e a instituição ganhe fama de possuir professores “porreiros” (ou o adjectivo actualmente em curso entre os jovens) e de proporcionar uma “vida académica” plena de oportunidades para “socializar”. E há estudantes e pais de estudantes que, depois, se surpreendem e barafustam por o “investimento” feito (muitas vezes com grandes sacrifícios no plano material) num curso-de-treta numa universidade-de-treta se salde num diploma que, na prática, não garante aos licenciados e mestres nada melhor do que um emprego a atender chamadas num call center (as galés da Era Digital), a repor stock num hipermercado ou a alugar toldos, “gaivotas” e espreguiçadeiras numa concessão balnear – que estaria, de qualquer modo, ao seu alcance se tivessem apenas concluído o ensino secundário.
Quem pretenda um curso universitário que lhe garanta um emprego bem remunerado, fará melhor em inscrever-se num MBA (Master of Business Administration), que é uma das bêtes noires de A destruição do espírito americano. Bloom classifica como “um grande desastre” o “estabelecimento […] do MBA como equivalente moral da licenciatura em medicina ou em direito, significando uma forma de garantir um estilo de vida lucrativo” (pg. 470). O MBA, lamenta Bloom, “tem provocado uma explosão de inscrições em economia, a disciplina que conduz à gestão. […] A economia esmaga as restantes ciências sociais e desvirtua a percepção dos alunos em relação a estas – o seu propósito e o seu peso relativo no que diz respeito ao conhecimento das coisas humanas […] [O estudante de economia] não é motivado pelo amor à ciência da economia, mas pelo amor daquilo com que ela se preocupa – o dinheiro” (pg. 471).
Bloom ficaria, provavelmente, descoroçoado com o facto de, nas últimas décadas, a economia ter ganho um papel absolutamente preponderante no meio académico, na condução dos destinos nacionais e no espaço público, o que veio reforçar a importância atribuída às escolas de gestão (business schools) que formam a elite empresarial e administrativa. No Portugal de hoje, a bazófia em torno das escolas de gestão atingiu proporções inauditas, em parte por o país, cujas instituições de ensino superior raramente figuram na parte superior dos rankings internacionais, ter visto, em 2022, cinco escolas de gestão incluídas no top 95 europeu do sector (elaborado pelo Financial Times), sendo apenas superado por França e Reino Unido. O desempenho das escolas de gestão nacionais tem sido exibido como prova da “excelente qualidade do ensino português” – logo por infortúnio, numa área que Bloom descreve como a “perfeita coincidência entre a ciência e a cupidez”. Mas o que dá mesmo que pensar é que, sendo Portugal o 3.º melhor país da Europa a formar gestores, os principais indicadores económicos portugueses – PIB per capita, produtividade por trabalhador, salário mínimo, salário médio – estejam tão distantes do 3.º lugar nos respectivos rankings europeus e o país seja sucessivamente ultrapassado, neste domínio, por rivais sem uma única escola de gestão no top do Financial Times.
Uma bola de cristal embaciada
Não foi só na classificação da literacia informática como uma “insignificância absoluta” que Bloom se mostrou incapaz de compreender e prever a dinâmica de transformação do sistema de ensino e da sociedade. Outro exemplo são as suas considerações sobre a aberrante escola desconstrucionista: “A literatura comparada caiu agora largamente nas mãos de um grupo de professores que são influenciados pela geração pós-sartreana dos heideggerianos parisienses, em particular Derrida, Foucault e Barthes. A escola chama-se desconstrucionismo e corresponde à última fase, previsível, da supressão da razão e da negação da possibilidade de verdade em nome da filosofia. A actividade criadora do intérprete é mais importante do que o texto; não há texto, apenas interpretação. Assim, aquilo que que é mais necessário para nós, o conhecimento daquilo que estes textos têm para nos dizer, passa para o controlo da personalidade subjectiva e criadora destes intérpretes, que negam quer o texto quer a realidade a que este se refere” (pg. 482).
A denúncia desta impostura intelectual é justificada, porém Bloom falha redondamente quando vaticina que “esta moda passará, como já aconteceu em Paris”. Desgraçadamente, 36 anos depois, a “moda” não só não passou como ainda é a corrente dominante nos departamentos de literatura e a aprovação em provas de mestrado ou doutoramento nesta área requer – seja qual for o assunto e a abordagem – a invocação dos santos nomes de Derrida, Foucault ou Barthes. Mesmo que o mestrando ou doutorando discorde das suas teorias, as considere estéreis e irrelevantes ou não as compreenda, deverá vergar o espinhaço e citar respeitosamente estas luminárias na sua tese (mesmo que a despropósito); se o fizer, será aprovado, por mais medíocre ou estulta que seja a sua tese e por mais inepta que seja a sua defesa, mas se ousar contestar a ortodoxia ou simplesmente a ignorar, incorrerá no desagrado do júri.
Se é compreensível que Bloom não tenha sido capaz de prever a longevidade no meio académico de uma sandice como o desconstrucionismo, é bem mais difícil perceber o que o terá impelido a fazer a afirmação seguinte: “algumas feministas radicais continuam a pregar a religião dos velhos tempos, mas a maioria das mulheres tem a confortável certeza de que já não existem muitos obstáculos às suas carreiras” (pg. 102). Sem dúvida que o estatuto da mulher na sociedade americana era bem melhor em 1987 do que, digamos, em 1957, mas, ainda assim, a carreira das mulheres, nos EUA e no mundo ocidental, estava pejada de obstáculos. Ainda hoje está, apesar dos progressos feitos, com a persistência de evidentes desigualdades salariais (para a mesma função) e sub-representação de mulheres nos cargos de topo no Estado, na política, nas empresas, nas artes e na academia; e se isto se passa no Ocidente, nos países desenvolvidos da Ásia (Japão, Coreia do Sul, China) o papel da mulher é ainda mais subalterno, e melhor será nem falar do mundo islâmico.
Bloom poderia alegar que, em 1987, em certos domínios, algumas barreiras legais e formais à carreira das mulheres já tinham sido levantadas, mas um homem tão culto e inteligente quanto Bloom deveria saber que as barreiras invisíveis podem persistir durante muitas décadas depois de eliminadas da legislação – barreiras invisíveis que, no mundo anglófono, costumam ser designadas pela expressão “glass ceiling” (“tecto de vidro”, não confundir com “telhado de vidro”).
Entre numerosos e relevantes exemplos que poderiam ser apresentados nas naus diversas facetas da sociedade americana para comprovar a falsidade da afirmação de Bloom, tomemos o da presença feminina no Congresso: embora, em 1987, não existissem, há muito, quaisquer barreiras formais à carreira política das mulheres, a verdade é que entre os 100 membros do Senado e os 435 membros da Câmara dos Representantes existiam apenas 2 mulheres no primeiro e 24 na segunda (2% e 5% do total, respectivamente). Em 2023 a situação é mais equilibrada, com 25 mulheres no Senado (25%) e 128 na Câmara dos Representantes (29%) e uma mulher – a democrata Kamala Harris – a presidir ao Senado, na qualidade de vice-presidente – a primeira mulher a desempenhar tal cargo na história dos EUA. Antes, em 2007, atingira-se outro marco histórico no domínio da igualdade de género no Congresso, com a primeira nomeação de uma mulher – a democrata Nancy Pelosi – para presidir à Câmara dos Representantes. É de sublinhar que, para que estes dois “tectos de vidro” no Congresso fossem quebrados foi necessário aguardar pela 117.ª e pela 110.ª legislatura (respectivamente) – isto num Congresso que, logo a 4 de Julho de 1776, na Declaração de Independência, proclamou serem “verdades auto-evidentes” que “todos os homens são criados iguais e são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”.
A afirmação de Bloom é tão infeliz e tão desligada da realidade que deixa uma dúvida: tratar-se-á de um momento de imbecilidade temporária, ou de uma provocação aos sectores feministas ou será que o distinto professor, em resultado de ter passado uma parte tão substancial da sua vida embrenhado no estudo de Platão e Aristóteles, terá, inconscientemente, assimilado a natureza profundamente misógina da sociedade grega da Antiguidade Clássica e creia, sinceramente, que, por comparação com esta, as mulheres americanas de 1987 eram tão livres quanto os homens e gozavam dos mesmos direitos efectivos?
Bloom também tece considerações bizarras sobre a evolução do combate entre esquerda e direita: “A direita – no seu único significado sério, o partido oposto à igualdade (não à igualdade económica, mas à igualdade de direitos) – a princípio, quis desfazer a Revolução [Francesa] em nome do trono e do altar, e esta reacção provavelmente deu o último suspiro apenas com Francisco Franco em 1975. Outra facção da direita, por ser uma direita progressista, quis criar e impor ao mundo um novo tipo de desigualdade, uma nova aristocracia europeia ou alemã, mas esta foi erradicada em Berlim em 1945”.
Antes de mais, é extremamente discutível resumir toda direita política aos saudosos do Ancien Régime e ao Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Por outro lado, é duvidoso que Francisco Franco possa ser descrito como um restaurador “do trono e do altar”: é certo que ele envergou o manto de defensor da “Espanha católica” contra o “ateísmo comunista”, mas no que toca à monarquia espanhola, embora fosse, em teoria, seu adepto, nada fez para recolocar o exilado Alfonso XIII no poder – apoderou-se do cargo de chefe de Estado em 1936 e quando, em 1941, Alfonso XIII faleceu e o seu filho Juan, Duque de Barcelona, reivindicou o trono, Franco ignorou-o. Em 1947, Franco declarou que Espanha voltara a ser uma monarquia, mas, na prática, nada mudou: Franco continuou a deter o poder absoluto e o Duque de Barcelona nunca foi aclamado como Juan III e nunca lhe foi atribuído qualquer papel no Estado espanhol. Só no fim da vida Franco – e talvez por falta de melhores alternativas – tomou medidas para que Juan Carlos, filho do Duque de Barcelona, lhe sucedesse; mas, ainda assim, só após a sua morte.
Por outro lado, em 2023, a extrema-direita espanhola não só está viva, como teve uma fulgurante ascensão nos anos mais recentes. Franco tem hoje um lídimo herdeiro em Santiago Abascal, líder do Vox, que foi, nas mais recentes eleições legislativas, em 2019, o 3.º partido mais votado em Espanha (3.6 milhões de votos, 52 deputados em 350) e que cultiva o nacionalismo, a xenofobia e o autoritarismo, concebe uma “hispanidade” definida por uma (imaginária) matriz genética, pela monarquia, pela fé católica e por uma visão jactanciosa e triunfalista da História (em particular a Reconquista e a colonização da América), e vê os avanços na igualdade de género como grave ataque aos valores tradicionais e à família. Como seria de esperar, o Vox opôs-se frontalmente à exumação dos restos mortais de Franco do seu mausoléu na soturna celebração do franquismo que é o Valle de los Caídos, decidida pelo governo “social-comunista” de Pedro Sánchez, e tem batalhado pela revogação da legislação espanhola contra a violência de género.
Com uma ou outra idiossincrasia nacional e com posições mais ou menos extremadas em determinados temas, partidos com características similares às do Vox têm vindo a ganhar terreno pela Europa fora e a constituir governo (Hungria, Polónia, Itália), a integrar coligações governamentais (Finlândia), ou, pelo menos, a afirmar-se entre as principais forças políticas do país (Portugal, França). Até na Alemanha e na Áustria, onde a extrema-direita teria sido (supostamente) “erradicada em 1945” e o seu historial de infâmias deveria estar gravado a fogo em todos os espíritos, ela ressurgiu, com postura menos crispada, tom menos vociferante e discurso mais moderado, sob a forma da AfD ou Alternative für Deutschland (ver capítulo “A história, entre a culpa e o orgulho” em “Como serias tu em Auschwitz?”), que já foi o 3.º maior partido alemão, com 94 lugares do Bundestag, mas caiu para o 5.º lugar, com 67 deputados, nas eleições de 2021, e do FPÖ ou Freiheitliche Partei Östreich, que já foi o 2.º maior partido da Áustria e governou o país em coligação com os conservadores, mas caiu para 3.º lugar, com 16% dos votos, após um escândalo em 2019, envolvendo Heinz-Christian Strache, então líder do FPÖ e vice-chanceler.
Também nos EUA se tem assistido ao crescimento da extrema-direita, por vezes identificada global e vagamente como alt-right e que inclui grupos e tendências muito diversas (o termo é impreciso e, consoante as definições e opiniões, pode ou não incluir grupos mais radicais e/ou lunáticos, como os Proud Boys, os Oath Keepers e os seguidores das teorias QAnon, mas será aqui empregue, por facilidade, como sinónimo da actual extrema-direita americana). Embora sendo minoritária dentro do Partido Republicano, a extrema-direita tem, na prática, vindo a determinar a agenda e o posicionamento deste (ver capítulo “Embriagados com teorias conspirativas” em George Santos, a verdade da mentira e a política no século XXI). A extrema-direita americana, embora esteja longe de ser um grupo definido, estruturado e homogéneo, tende a ser anti-igualitária, misógina (embora algumas das suas figuras de proa sejam mulheres) e isolacionista; a estar associada ao “supremacismo branco” (embora conte com muitos afro-americanos nas suas fileiras); a acreditar que uma vasta cabala (orquestrada por judeus, comunistas, pedófilos ou lagartos extra-terrestres, consoante as versões e a credulidade) controla, na sombra, o Estado, as grandes empresas tecnológicas e os media americanos. Dada a sua agressividade e a sua incapacidade para conviver com pessoas que não partilhem das suas ideias, algumas das suas figuras destacadas propõem que os EUA se cindam em duas entidades, seguindo linhas de fractura ideológicas, com estados “azuis” (democratas) para um lado e “vermelhos” (republicanos) para outro.
As “guerras culturais” na América do século XXI
Se ainda fizesse parte do mundo dos vivos, Allan Bloom estaria provavelmente alinhado com a alt-right na aversão ao “politicamente correcto”, ao “marxismo cultural”, ao feminismo radical, à discriminação positiva (affirmative action) e ao “wokismo” em geral, mas é de crer que rejeitasse outras crenças e atitudes dos alt-righters e muitas das posições que o Partido Republicano tem vindo a assumir desde que Donald Trump venceu as eleições presidenciais de 2016. Se dermos crédito a Andrew Ferguson, no posfácio a A destruição do espírito americano, “Bloom nunca foi um conservador. Na política eleitoral era um democrata moderadamente liberal, e mais liberal ainda em assuntos pessoais e sociais. […] Bloom não era adepto do mercado livre ou da incessante aquisição e luta que este encoraja”. O próprio Bloom o afirmou: “Não sou conservador – nem ‘neo’ nem ‘paleo-conservador’. O conservadorismo é uma opção respeitável […], acontece que não sou esse tipo de animal”.
Apesar disto, a verdade é que, em 1987, A destruição do espírito americano foi entusiasticamente acolhido pelos conservadores e ferozmente criticado pelo sector liberal (por exemplo, à esquerda, David Rieff rotulou o livro de “vingativo, reaccionário e anti-democrático”). Porém, é duvidoso que a nova direita americana tenha de A destruição do espírito americano a mesma opinião que a direita dos anos Reagan: a alt-right não só ignora ou despreza os textos clássicos amados por Bloom, como associa toda a “alta cultura” à elite intelectual que, na sua perspectiva, controla e parasita o país e olha com sobranceria para as massas – das quais os líderes da alt-right (como é típico dos populistas) reivindicam serem os únicos representantes legítimos e a que gostam de dar a entender que pertencem (ainda que muitos desses líderes – a começar por Trump – sejam milionários). No nosso tempo, quando são fotografados ou filmados para efeitos de campanhas eleitorais ou comunicação com os seus apoiantes, os candidatos republicanos ao Congresso não surgem a ler, com expressão grave, A Guerra do Peloponeso, de Tucídides, ou The Federalist Papers no recato das suas amplas bibliotecas, mas a disparar espingardas semi-automáticas com ostensivo gáudio.
As “guerras culturais” que hoje dividem a sociedade americana estão na continuidade dos fenómenos abordados por Bloom em A destruição do espírito americano, mas a natureza do combate alterou-se profundamente. Nos EUA da terceira década do século XXI não poderíamos estar mais longe da sofisticação intelectual de A destruição do espírito americano – o espaço público foi calcinado e esterilizado pelo sectarismo e pelo maniqueísmo, não restando lugar para a argumentação racional, para a consideração de subtilezas, para a ponderação ou para a tolerância. Boa parte do debate político transferiu-se para as redes (ditas) sociais e opera com a belicosidade, a grosseria, a ignorância, a superficialidade, o imediatismo, a impulsividade, a intransigência e infantilidade que é usual nesses meios e, neste caldo de (in)cultura, Allan Bloom é hoje uma figura menos conhecida e respeitada do que um qualquer YouTuber que nunca leu um livro, não é capaz de encontrar a Grécia num mapa-mundo, vive na cave da casa da mãe e julga que Isócrates é o novo chatbot que foi desenvolvido pela Apple e será instalado na próxima versão do iPhone.
Os radicais de esquerda, sobretudo os que estão associados a “minorias historicamente oprimidas”, vêem os Pais Fundadores dos EUA sobretudo como “escravocratas”; culpam genericamente o “cis-heteropatriarcado ocidental” por um longo cortejo de malfeitorias históricas que inclui o esclavagismo, o extractivismo, o genocídio, o “genocídio cultural” e a globalização (ver Escravatura: Culpa, ressentimento e histórias mal contadas e O que o mundo moderno deve à exploração de África e dos africanos); reclamam “reparações” financeiras para os que hoje se identificam como descendentes (por mais remotos que sejam) das “vítimas” da civilização ocidental; exigem a remoção do espaço público de estátuas de figuras históricas cujo comportamento não se tenha coadunado com os critérios éticos do presente; vêem o crime de “apropriação cultural” no uso, por um membro de um grupo “historicamente opressor”, de qualquer elemento que esteja tradicionalmente associado a um grupo “historicamente oprimido” (ver De Amanda Gorman a Lucky Luke: Correcção ou excesso? e Há turbas de linchamento à solta na Internet); pugnam pela expurgação das obras clássicas de todas as referências e palavras que hoje são vistas como “ofensivas” para essas minorias (ainda que não o fossem quando foram criadas); pretendem que os manuais e programas escolares sejam revistos de forma a dar relevo ao papel de elementos dessas minorias na História dos EUA e a fazer ver aos alunos que a sociedade americana continua a ser estruturalmente racista, sexista, homofóbica e transfóbica; exigem, na sequência de sucessivos episódios de violência policial injustificada contra afro-americanos, que se corte o financiamento às forças da ordem.
A alt-right e parte cada vez mais significativa dos líderes e apoiantes do Partido Republicano vêem nestas reivindicações uma ameaça aos valores nucleares da América e uma tentativa de reescrever a História – ou, pelo menos, a História que os conservadores conhecem e em que gostam de acreditar. Se o zelo da esquerda mais excitada em rever a estatuária pública pelos padrões éticos de hoje é asinino, também os conservadores que se opõem à remoção de estátuas, símbolos e nomes ligados à Confederação, invocando serem testemunhos históricos, estão equivocados, pois a esmagadora maioria deles foram criados nas primeiras décadas do século XX, muito depois de os homenageados terem morrido – ou seja, resultaram de um plano para impor uma visão do mundo, preservar um statu quo e, em última análise, reescrever a História.
O sector mais conservador do Partido Republicano (que, hoje, quase coincide com o Partido Republicano) agasta-se com as reivindicações das franjas radicais do Black Lives Matter, do movimento LGBTQ+ e do feminismo, mas tem tirado partido delas, seleccionando as mais tolas e desvairadas e inventando outras, ainda mais absurdas e ultrajantes, que amalgamam num assustador espantalho do movimento woke e, por arrasto, do Partido Democrata, uma estratégia que se tem revelado muito eficaz na conquista do eleitorado mais idoso e rural, mais apegado a velhos usos e com dificuldade em compreender o conceito de orientação sexual “não-binária”. Na verdade, no léxico do Partido Republicano dos nossos dias, “woke” é uma designação vaga e abrangente para tudo aquilo de que não se gosta ou que não se compreende.
O mais típico exemplo do aproveitamento do movimento “woke” (e, em particular, dos seus excessos) como arma de combate político está em Ron DeSantis, governador da Florida, figura popular entre o eleitorado Republicano e principal rival (não-declarado, por enquanto) de Donald Trump na corrida a candidato do partido às eleições presidenciais de 2024.
DeSantis fez das “guerras culturais” um dos eixos mais visíveis da sua actuação e da sua afirmação a nível nacional e assumiu o papel de líder da cruzada anti-woke, nomeadamente através 1) da oposição ao ensino da “critical race theory” (“teoria crítica da raça”) e à abordagem do tema da orientação sexual nas escolas da Florida, através do Stop Woke Act e do Don’t Say Gay Bill, respectivamente; 2) do banimento das bibliotecas escolares da Florida de centenas de títulos que abordam assuntos de raça e sexualidade e que foram considerados pelas autoridades como inapropriados para crianças e jovens; 3) da hostilização sistemática da Walt Disney Company (que gere uma das maiores atracções do estado, o Walt Disney World, perto de Orlando) por esta ter manifestado publicamente desacordo relativamente à Don’t Say Gay Bill e por DeSantis entender que os filmes recentes da Disney dão excessivo relevo a temas e personagens LGBTQ+; 4) de medidas para cortar o financiamento aos programas de Diversidade, Igualdade e Inclusão nas universidades públicas do estado, que DeSantis acusa de desviarem “a universidade da sua missão fundamental” e de terem fomentado a “discriminação, a exclusão e a doutrinação”; e 5) da adopção do slogan “Florida is where woke goes to die” (“A Florida é onde o woke vai morrer”), uma escolha pouco feliz, uma vez que recicla a imagem da Florida, corrente nos EUA, como “o lugar onde os velhos vão morrer”, por muitos americanos mudarem-se para a Florida quando se reformam, atraídos pelo clima ameno e pelos benefícios e isenções fiscais que a legislação estadual concede aos reformados.
As “guerras culturais” de hoje têm pontos de contacto com as preocupações de Allan Bloom em 1987 – é muito provável que Bloom concordasse que os programas de Diversidade, Igualdade e Inclusão desviam “a universidade da sua missão fundamental” – mas teria certamente discordâncias, atritos e dissonâncias com a reacção conservadora anti-woke. Constituiria bizarro espectáculo vê-lo na Fox News, no programa de Tucker Carlson (um dos mais populares comentadores televisivos de direita, entretanto despedido daquela cadeia de TV), tentando explicar, com longas citações de Nietzsche e Heidegger, como o declínio da América se deve ao facto de o relativismo de valores da filosofia alemã ter substituído a moral tradicional, enquanto Carlson contraporia a tese de que a real causa da decadência da América é o facto de a marca de guloseimas de chocolate M&M ter tornado as suas duas mascotes (“spokescandies”) femininas mais “modernas e inclusivas”, o que levou a mascote verde a trocar as botas por ténis, tornando-se, assim, no entender de Carlson, menos “sensual” e, quiçá, sexualmente desejável – “a M&M não ficará satisfeita enquanto todas as suas mascotes não se tornarem absolutamente destituídas de atractivos e completamente andróginas. Quando elas chegarem a um ponto em que não nos sintamos compelidos a tomar uns copos com elas, terão atingido o seu objectivo” (Carlson dixit).
Algumas “guerras culturais” dos EUA circunscrevem-se às fronteiras do país, mas é cada vez mais frequente que ganhem ramificações noutros países desenvolvidos. É o caso da polémica das casas de banho (e balneários) que deverão/poderão ser usados pelos alunos que se identificam com um sexo que não é aquele com que biologicamente nasceram, com as franjas mais à esquerda a reclamar a multiplicação de casas de banho transgénero ou o acesso às casas de banho de acordo com a identificação sexual e não com o sexo biológico, e os sectores conservadores a oporem-se. Esta polémica já chegou a Portugal e, em reacção às reivindicações dos activistas LGBTQ+ portugueses, foi posta em circulação uma petição à Assembleia da República que expressa a recusa em que “os nossos filhos e filhas sejam obrigados a partilhar os WCs e balneários com pessoas fisicamente do sexo oposto”, uma formulação que, logo à partida, assenta num conceito – o de “sexo oposto” – que choca frontalmente com a caleidoscópica combinação de identidades de género e orientações sexuais postulada e propalada pelos sectores mais progressistas.
Quem, em partes menos afortunadas do mundo, onde as “guerras culturais” têm escasso relevo face à “guerra” quotidiana para obter água potável, alimentar os filhos com dois dólares por dia e escapar às balas perdidas das lutas entre gangs, tenha conhecimento destas assanhadas controvérsias pensará que só nações sumamente bem-aventuradas, que já resolveram todos os problemas fundamentais que atormentam o indivíduo e a sociedade e onde o leite e o mel jorram das fontes, podem entregar-se a tão bizantinas logomaquias – e redobrarão a sua vontade de abandonar o país natal e encontrar refúgio nestes El Dorados.
A intenção (supostamente generosa) dos sectores mais progressistas de fazer equivaler todas as culturas, todas as perspectivas e todas as opiniões, acaba não só por criar um lamaçal de inanidades e uma vasta teia de interditos que ameaça sufocar a sociedade, as artes e a liberdade de expressão, como suscita uma forte reacção contrária dos sectores mais conservadores em defesa dos valores tradicionais – com consequências que, na prática, são similares. As “guerras culturais” raramente resultam em acordos de paz e concessões mútuas, antes exacerbam o radicalismo, o sectarismo e o entrincheiramento, com cada um dos lados a recusar ouvir os argumentos opostos, a rotular factos objectivos como “fake news” e a identificar o adversário com o Mal – ou até a negar ao adversário características humanas (como fazem os chalupas QAnon que crêem que os EUA são controlados por lagartos extra-terrestres). O mundo que resulta desta espiral de estupidez e casmurrice é, inevitavelmente, menos livre e mais tacanho.
Satanás é uma estrela do rock
A parte de A destruição do espírito americano que pior resistiu à passagem do tempo é a que diz respeito à música, tema a que Bloom consagra todo um capítulo. Bloom lastima que “uma percentagem significativa de jovens com idades compreendidas entre os 10 e os 20 anos vive para a música. É a sua paixão; nada mais os excita como a música; não conseguem levar a sério nada que seja alheio à música […] A música dos novos fãs […] não conhece classes nem nações. Está disponível 24 horas por dia e em todo o lado” (pg. 85). A música a que Bloom se refere é o rock, já que “a música clássica está morta entre os jovens “ (pg. 86).
E como vê Bloom o rock? Como uma perversão que faz o corpo dos jovens “palpitar com ritmos orgásticos, cujos sentimentos são expressos em hinos às alegrias do onanismo ou ao assassínio dos pais, cuja ambição é ganhar fama e riqueza imitando a drag queen que faz música” (pg. 93) e como um “negócio” que é “a forma perfeita de capitalismo, satisfazendo a procura e ajudando simultaneamente a criá-la. Tem toda a dignidade moral do tráfico de droga, mas por ser algo completamente novo e inesperado, ninguém pensou em controlá-lo, e agora é demasiado tarde” (pg. 96). O arrazoado de Bloom contra o rock é tão desvairado e incongruente que, ao mesmo tempo que vê no rock o pináculo do capitalismo, também acusa a esquerda de ter dado “carta-branca à música rock” e afirma que os marxistas aprovam o rock porque este “dissolve as crenças e a moral necessárias à sociedade liberal” (como é sabido, o rock conheceu o seu máximo florescimento na URSS de Brezhnev e na China de Mao).
A encarnação musical de Satanás é, para Bloom, Mick Jagger, “o niilismo […] epitomado numa simples figura […]. Um astuto rapaz de classe média que representava a possessão demoníaca de classe baixa e o sátiro que é adolescente até aos 40 anos, piscando um dos olhos a multidões de crianças de ambos os sexos que ele estimula até ao frenesim sexual e o outro olho aos adultos não-eróticos, motivados comercialmente, que lidam com o dinheiro. […] Mick Jagger podia entrar nos sonhos de toda a gente, prometendo fazer tudo com todos; e, sobretudo, legitimava as drogas” (pg. 98).
Se, por um lado, em 1987, Bloom entendia que “a chama de Mick Jagger começou a desvanecer-se”, não tirava daí grande consolo, pois receava que fosse substituído na idolatria dos jovens por protagonistas “ainda mais estranhos do que ele”, como “Michael Jackson, Prince e Boy George”. Bloom não estava consciente de que, em 1987, a indústria musical já promovia produtos com potencial corruptor dos adolescentes bem superior ao de Mick Jagger ou Boy George, mas é natural que um filósofo Armani não estivesse a par da existência de fenómenos como o thrash metal, o doom metal ou o sludge metal; e, embora possa alegar-se que estas “correntes musicais “ eram (e são) relativamente marginais (ainda que muito populares entre adolescentes e jovens adultos do sexo masculino), não seria preciso muito tempo para que alguém tão estapafúrdio e ultrajante como Marilyn Manson surgisse na TV generalista em horário nobre e se tornasse numa vedeta à escala planetária. Por outro lado, Bloom não parece dar-se conta de que, em 1987, os Rolling Stones há muito tinham perdido a aura irreverente, contra-cultural e “perigosa” de que tinham gozado em meados da década de 1960, e faziam já parte do establishment musical e social – o álbum de 1983 dos Rolling Stones, Undercover, pode ter uma mulher nua na capa, mas nessa altura tal tornara-se banal no meio musical, e o álbum de 1986, Dirty work, só tem “sujidade” no título, uma vez que, por essa altura, a música e as letras da banda eram perfeitamente inócuas e indistinguíveis dos produtos mainstream da indústria musical. Este processo de “normalização” e “institucionalização” culminaria com o agraciamento de Jagger com o título de “Sir”, pela Rainha de Inglaterra, em 2002 (Jagger não só aceitou como confessou sentir-se “tocado”).
Mesmo sem ter noção da verdadeira dimensão dos extremos de obtusidade e niilismo de que o rock é capaz (e quão inócuos eram os Rolling Stones por comparação), Bloom achava-se em posição para vaticinar que “as pessoas das civilizações futuras” acharão a paixão dos jovens do século XX pelo rock “tão incompreensível como nós achamos o sistema de castas, o acto de queimar bruxas, os haréns, o canibalismo e os combates de gladiadores” (pg. 93). Claro que a ideia de “civilizações futuras” comporta algum optimismo pela parte de Bloom, pois pressupõe que a humanidade não iria extinguir-se a breve prazo, arrastada pela voragem maligna do rock.
Para lá da dissolução da moral, da incitação ao assassínio dos progenitores e da conversão da vida dos jovens numa “ininterrupta e comercialmente pré-embalada fantasia masturbatória”, um dos pecados do rock é, segundo Bloom, que o seu ruído impede os jovens de “ouvir aquilo que a grande tradição tem para lhes dizer”. Isto pressupõe que, antes de, em meados do século XX, o rock ter desencaminhado os jovens, estes passavam o tempo de lazer a deleitar-se com a música de câmara de Brahms, as sinfonias de Bruckner e os madrigais de Sigismondo d’India.
É verdade que os grandes sucessos comerciais na música costumam ser de pífia qualidade e ter características alienantes, mas a sujeição ao mínimo denominador comum intelectual também vale para o cinema ou para a literatura – faz parte da natureza da cultura popular. Bloom não parece perceber que o gosto pela música erudita, pela filosofia e pelas grandes obras literárias estará sempre restrito à elite – na verdade, a uma pequena fracção da elite, pois boa parte do apreço da elite pela “alta cultura” não passa de fingimento, presunção e sinalização de estatuto social. Não são Rick Astley, Whitney Houston, os Bee Gees ou os Pet Shop Boys (para citar alguns dos protagonistas das canções mais ouvidas em 1987 nos EUA) que são responsáveis por as massas não ouvirem Mozart, Beethoven e Tchaikovsky, pela mesma razão que não são Stephen King, Scott Turow, Tom Clancy e Danielle Steel (autores responsáveis pelos principais best-sellers de 1987 nas livrarias dos EUA) que desviam as massas da leitura de Platão, Montaigne, Hobbes e Kant. As opções para ocupação do tempo livre do adolescente médio americano de 1987 não opunham o thrash metal dos Slayer (para escolher um exemplo mais “orgástico” – e em crescendo de popularidade em 1987 – do que os “aburguesados” Rolling Stones) e os quartetos de cordas de Mozart, eram uma escolha entre Slayer ou filmes de zombies, ou transmissões televisivas de competições de futebol americano, baseball, ou wrestling, ou praticar tiro ao alvo com latas de cerveja vazias num descampado, ou fazer peões com o carro dos pais no parque de estacionamento de um restaurante de fast food à beira da estrada.
As diatribes histéricas de Bloom contra a paixão assolapada dos jovens pelo rock e o vertiginoso declínio moral dela resultante, que eram anacrónicas já em 1987, tornam-se francamente ridículas e caducas quando lidas em 2023 e a sua argumentação é tão vaga e errática que nem sequer se percebe o que Bloom entende por rock; se classifica toda a música popular moderna como rock (aparentemente sim); qual será o lugar do jazz nesta visão maniqueísta da música; se entende que todo o rock é completamente destituído de valor artístico e é intrinsecamente estupidificante e “orgástico”; se alguma vez terá ouvido outra música popular para lá das banalidades que costumam dominar as playlists das rádios, os programas televisivos e os tops de vendas; e se, tendo ouvido algum rock exterior aos cânones comerciais dos media mainstream, o terá escutado e terá sido capaz de descortinar algumas das suas subtilezas e riquezas. O que é quase certo é que, se fosse vivo em 2016, Bloom teria sucumbido a uma apoplexia ao saber que o Prémio Nobel da Literatura tinha sido atribuído a Bob Dylan.
Este patético capítulo de A destruição do espírito americano não só atesta que o conhecimento de Bloom sobre música popular é extremamente superficial e está toldado por preconceitos primários, como desperta no leitor a suspeita de que também as (aparentemente) elaboradas argumentações de Bloom sobre filosofia, política e educação nos outros capítulos poderão estar eivadas de falsidades, deturpações, equívocos, raciocínios falaciosos e desonestidade intelectual, e retira autoridade ao livro. Afinal, como pode alguém que dá mostras de tal estreiteza de vistas ter a ousadia de fazer aos seus contemporâneos um ríspido sermão de 500 páginas sobre o estreitamento do espírito americano?
O crepúsculo de uma era
Bloom lamenta que, nos EUA de final do século XX, “os alunos têm poderosas imagens do que é um corpo perfeito e perseguem-no incessantemente. Porém, por estarem privados de orientação literária, já não têm qualquer imagem do que é uma alma perfeita e, por isso, não anseiam ter uma” (pg. 84). É muito discutível o que é “uma alma perfeita”, mas percebe-se onde Bloom quer chegar com esta dicotomia entre corpo e alma, que se tornou ainda mais contrastada no nosso tempo, em que a publicidade, a vulgarização da cirurgia estética, o Photoshop e as redes (ditas) sociais fizeram do “corpo perfeito” não só a aspiração máxima como, muitas vezes, a única aspiração de muitos indivíduos (jovens e menos jovens). Quem se dê ao trabalho de consultar os websites das residências universitárias de bom nível (“premium”, como agora se diz) constatará que elas se ufanam do seu ginásio, da sua sauna, da sua piscina interior aquecida, da sua sala de yoga, mas raramente mencionam a sua biblioteca – e esta, quando existe, não é uma biblioteca no sentido original e etimológico do termo, antes um espaço amplo, confortável e tranquilo onde os estudantes podem reunir-se para fazer trabalhos de grupo, função para a qual a existência de livros nas estantes é perfeitamente dispensável, uma vez que tudo o que alguém alguma vez precisará de saber está na Internet.
O adágio “mente sã em corpo são” provém das Sátiras do poeta romano Juvenal (“mens sana in corpore sano”), escritas na viragem dos séculos I/II d.C., mas a sua origem remonta à Grécia clássica, pátria de Sócrates e do ginásio – na verdade, mais de seiscentos anos antes de Juvenal, já Tales de Mileto definira os requisitos da felicidade humana como “um corpo saudável, um espírito desenvolto e uma natureza dócil”. Hoje não faltam jovens com corpos que rivalizam com os da estatuária grega, mas o estado geral das suas mentes é lastimoso, não só por, como aponta Bloom, a sua mundividência já não ser balizada pelas grandes obras da literatura e filosofia clássicas, como por as pressões da vida moderna e as insuficiências e desfasamentos da família e da escola modernas estarem a gerar nos jovens um novelo de ansiedades, medos e inseguranças com que não são capazes de lidar, como atestam os inquéritos sobre saúde mental, a multiplicação de casos de anorexia, bulimia, pulsões suicidas, etc., e a desmedida procura de consultas de psiquiatria (que começam na mais tenra idade).
Independentemente do que se pense sobre as teses defendidas em A destruição do espírito americano, é indiscutível que, 36 anos após a edição original do livro, quase tudo o que inquietava, abespinhava ou horrorizava Allan Bloom se agravou. A Grécia e a Roma da Antiguidade Clássica cuja cultura apaixonava Bloom e a que ele consagrou a vida não são mais do que colunas de mármore tombadas na poeira, miradas com enfado numas férias ou numa “escapadinha” de fim-de-semana, e os seus heróis, vilões, estadistas, generais, exploradores, filósofos e eruditos, que, durante tantos séculos, foram uma referência para a civilização ocidental, caíram no esquecimento (ver introdução a O que é que os gregos alguma vez fizeram por nós?), salvo um ou outro que foram “imortalizados” num blockbuster sádico e sanguinolento de Hollywood ou num jogo de vídeo ainda mais sádico e sanguinolento, e os grandes vultos da cultura alemã que dominaram a paisagem intelectual europeia do século XVIII ao início do século XX não gozam de maior visibilidade ou prestígio. O jovem universitário de hoje está tão longe de esperar que as Cartas a Lucílio, de Séneca, possam conter algum conselho válido para a sua vida, como de recorrer à ajuda da avó para instalar a app do Tinder no seu smartphone.
O Estudo de diagnóstico de necessidade de docentes de 2021 a 2030, promovido em 2021 pelo Ministério da Educação, estima que, no dito período, no 3.º ciclo do ensino básico e no ensino secundário sejam necessários 2861 novos professores de Português (654 só em 2023), 1551 a Matemática (407 só em 2023), 1253 a História (377 só em 2023) e 1311 a Inglês (350 só em 2023); no fundo da lista estão os professores de Alemão, cuja necessidade estimada é de 5 (cinco) para o período 2021-2030 e de 2 (dois) em 2023, e os professores de Latim & Grego, cuja procura será de 1 (um) no período 2021-2030 e de 0 (zero) em 2023. Neste último caso, restará o consolo de a procura quase nula não ir gerar desemprego maciço, uma vez que, no ano lectivo de 2021/22, o número total de inscritos nos mestrados de formação de professores de Latim & Grego era de 4 (quatro).
Platão e os deuses do Olimpo estão, pois, completamente “out” e Nietzsche, que, celebremente, anunciou “a morte de Deus”, também se finou, mas Mick Jagger continua a encher estádios e a pular e esbracejar em palco com uma vitalidade desconforme com os seus 79 anos, o que reforça a suspeita de que é o Diabo em forma de gente.