A informação sai “a conta-gotas”. Quem o diz é Jorge Mendes, professor da Nova IMS, referindo-se aos números de pessoas que recuperaram da Covid-19 em Portugal. O autor de um modelo epidemiológico que analisa os dados da pandemia e faz previsões a 30 dias sobre o que podemos esperar, diz não haver explicação clínica para que os doentes demorem, em média, 48 dias a livrar-se do vírus. Ou seja, estão inflacionados os casos ativos (doentes que, nesse dia, estão infetados) que a Direção Geral de Saúde apresenta diariamente.
Os números desta segunda-feira apontam para 39.696 casos ativos no país, números que têm sido “irrealistas”, na opinião de Jorge Mendes. Os médicos Filipe Froes e Ricardo Mexia não duvidam de que assim seja e preveem uma queda dos doentes com vírus ativo muito em breve. A explicação prende-se com a norma 004, atualizada na quarta-feira passada, e que muda um dos protocolos da DGS: deixa de ser necessário testar pacientes com doença leve ou moderada, terminando o isolamento ao fim de 10 dias sem febre e sem sintomas.
Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise Covid-19 da Ordem dos Médicos, diz mesmo esperar que o Governo tome as suas decisões com “base em dados mais credíveis”. Já Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, diz que seria “bizarro” que os portugueses demorassem 48 dias a ficar curados.
“Não acredito que os portugueses recuperem mais lentamente do que os italianos ou os espanhóis. Tem a ver com o protocolo que é seguido pela DGS para declarar os indivíduos como recuperados”, argumenta Jorge Mendes. Este número, diz o investigador da Nova Information Management School (IMS), tem sido “uma chaga” desde o início da pandemia.
Para além dos cerca de 40 mil ativos, número que não tem parado de crescer em outubro, há atualmente em Portugal quase 60 mil pacientes Covid recuperados, num total de 101.860 infetados desde o início da pandemia no país.
“É vergonhoso. Toda a literatura reporta de 14 a 21 dias como o tempo médio que um infetado demora a recuperar. A velocidade a que a DGS tem registado o número de recuperados — e terá seguramente a ver com o protocolo usado — sugere que os números médios da recuperação em Portugal andam à volta de 48 dias”, sublinha Jorge Mendes.
Sublinhando que não está a criticar o protocolo escolhido pela Direção Geral de Saúde para decidir se uma pessoa está recuperada ou não, o professor sublinha que 48 dias é apenas um valor médio. “Isto significa que há muita gente que recupera em menos tempo, mas também há outros que demoram mais a recuperar do que os 48 dias e isso não é verosímil.”
Jorge Mendes lembra que até há pouco tempo o protocolo da DGS exigia dois testes negativos com um intervalo de sete dias. “Se adicionarmos a isto mais algum tempo para obter o resultado do teste, significa que estamos a pôr em cima dos dias de recuperação quase mais duas semanas. É por isso que acho que os números de casos ativos são um pouco irrealistas. São menos do que aqueles que pensamos que são”, defende.
Vai haver uma limpeza massiva dos casos ativos
“Há casos ativos perdidos no sistema”, garante Ricardo Mexia. “Vai haver uma limpeza no sistema nos próximos dias com a mudança de protocolo. Desaparecem aqueles que estavam no limbo e estes números altos a que assistimos nos últimos dias, a maioria com doença leve, passados os 10 dias de fim de isolamento também vão desaparecer”, explica.
Assim, o especialista em saúde pública diz que até ao próximo fim de semana haverá uma massificação do número de recuperados. “Vai parecer que há uma grande melhoria, com os ativos a diminuir, mas vai ser consequência da mudança da norma”, diz Ricardo Mexia. Quanto a decisões do Governo que possam estar a ser tomadas com base nestes números, diz esperar que esteja a ser levado em conta estes casos perdidos no sistema.
Os casos ativos não são, apesar de tudo, a maior preocupação. “Estes doentes são pessoas que estão em casa, em isolamento, ou hospitalizadas, não estão no seio da comunidade. Se estivessem, e andassem a disseminar o vírus, aí seria preocupante”, sublinha o médico. O que deve preocupar o Governo, defende Ricardo Mexia, é o número de doentes internados e em unidades de cuidados intensivos. Se aumentarem para além da capacidade do sistema, poderão levar também a mais mortes.
O limbo de que fala Ricardo Mexia é explicado pelo pneumologista Filipe Froes com a necessidade, nos primeiros tempos de pandemia, de haver duas curas para os doentes: “Antigamente era preciso a cura clínica e a cura microbiológica. E esta nem sempre era possível. Havia doentes que continuavam a ter resultados positivos durante várias semanas e davam a falsa noção de que eram contagiosos”, explica.
O que acontecia muitas vezes, até por falta de zaragatoas para testes, é que os doentes com cura clínica seguiam para casa, para que o foco das equipas médicas fosse em quem precisava de cuidados de saúde. Assim, Froes não tem dúvidas de que muitos pacientes nunca irão fazer os critérios de cura microbiológica, havendo mais doentes recuperados do que aqueles que indicam as estatísticas das DGS.
O engano nos números pode agora passar a ser outro. Na maioria dos casos, os doentes vão ter critérios para terminar o isolamento sem a necessidade da cura microbiológica, mas o fim do isolamento — momento em que o doente deixa de estar contagioso — não é sinónimo de cura clínica. “Uma pessoa ainda está doente, tem de continuar a usar máscara, mas já não está fechada no quarto, pode estar com a família, que também usa máscara, e isto até pode ajudar à recuperação. Não quer dizer que esteja boa para regressar ao trabalho”, explica o coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos.
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“Agora vai acontecer é termos um doente que está no Trace Covid, tem apirexia [ausência de febre], os sintomas evoluíram favoravelmente, vai passar a aparecer como recuperado no sistema, mesmo que não esteja em condições de regressar à sua vida normal”, detalha Filipe Froes. Portanto, não tem dúvidas que vamos ver os casos de recuperados a aumentar e a acelerar muito em breve.
Sobre os números disponibilizados pela DGS, o pneumologista tem uma posição crítica. “Espero que o Governo tome decisões com base em dados mais estruturados. Com base nestes dados diários, eu não tomaria nenhuma decisão, a não ser tomar a decisão de que precisamos de dados melhores para melhorar as decisões.”
Uma das maiores críticas é à falta de dados sobre o que esperar dos internamentos, em enfermaria e cuidados intensivos, nos próximos dias. “Com base nos novos casos que surgem todos os dias, eu devia ser capaz de saber que percentagem desses doentes vão precisar de internamento e quantos vão precisar de cuidados intensivos para poder melhorar a resposta”, conclui Filipe Froes.