“Como é que é, Rabo de Peixe?”, ouve-se no palco. Estamos no auditório da Escola Básica Integrada da vila açoriana do município da Ribeira Grande, onde há várias horas se ensaia para o que promete ser um ponto alto da edição do festival Tremor: o encontro entre Sam the Kid, referência do hip-hop português, e rappers locais, selecionados pelo festival através de uma open call. O concerto acontece esta quinta-feira, às 19h, no Porto de Pescas de Rabo de Peixe.
No ensaio geral, o entusiasmo é notório: à vez, 14 artistas de várias ilhas que se candidataram em fevereiro à chamada do festival fazem uso do microfone. Lucas Jesus, 17 anos, nome artístico Madruga, é um deles. É de Ponta Delgada e fez o conservatório, começando pela guitarra, depois pelo piano, até descobrir que gostava de cantar e escrever as suas músicas. “Desde R&B, trap, desde que sinta a música, até já tive uma banda de rock”, conta ao Observador. “Muito orgulho deste sítio dessa nossa conexão, I’ll be rapping with my hommies, sente essa nova versão. Aqui não há competição, isto aqui é irmandade, ‘tamos juntos nessa cena cada um com a sua verdade”, canta. Prestes a completar 18 anos, vai começar um curso profissional “para trabalhar no check-in do Aeroporto”. “É mais ou menos o meu plano B. O meu plano A é a música, que para mim é tudo.”
Joya Black, nome artístico de Mickel Oliveira, é também um dos mais novos do grupo. Tem 16 anos e chegou até ali instigado pelo seu produtor, Lil Kyra. Submeteu a canção Red Moon, que lançou no ano passado. “Falo um bocadinho sobre a minha a vida amorosa”, diz com uma timidez contrastante com a desenvoltura com que se apresenta em palco. É mais palavroso sobre o tempo que tem passado com Samuel Mira (Sam the Kid). “Disse-me para melhorar algumas coisas e melhorei, agora acho que está perfeita”, afirma sem modéstia. “Melhorei a respiração e as vozes de fundo, que tirei. Ele prefere e eu também entendi que fica melhor só eu a cantar.”
Os testemunhos de todos evidenciam o lugar particular que Sam The Kid ocupa enquanto percursor do género no país e modelo de inspiração para gerações mais jovens. Palavras como “honra”, “privilégio”, “sonho” são as escolhidas para definir o contacto com o artista de Chelas, que começou a sua carreira nos discos em 1999 com Entre(tanto). Findo o ensaio, vários lhe pedem fotografias.
Desafiado pelo Tremor, o veterano MC e produtor orquestrou um espetáculo que gira em torno dos temas que compõem a história do hip-hop açoriano. Uma conjugação de vontades, já que Samuel Mira já havia expressado o desejo de participar no festival, numa conversa online que foi o pretexto que faltava para a organização do Tremor estender o convite.
MCs e DJs oriundos de várias ilhas — Cafaia, Dusk, itzjotap, Joana Pacheco, kyasutā, Lil kyra, Madruga, NicTobu, NTK, Oestrela, Outsidah, Valério, Joya Black e Bensky — estiveram durante sete dias com o artista de Chelas para a criação de um espetáculo inédito que gravita em torno do hip-hop açoriano. “Achei muito interessante a variedade de talentos, seja nas temáticas, seja na maturidade ou imaturidade consoante as idades, na musicalidade”, conta Sam the Kid ao Observador, após o ensaio-geral. Destaca também a “aptidão para tocar instrumentos” que considera pouco comum, e que descobriu nas jam sessions espontâneas entre ensaios. “Têm um background musical, sabem o que estão a fazer, nota-se que têm instrumentos em casa. Se calhar num leque de rappers do continente não ia encontrar [isso] assim tão facilmente. Fiquei surpreendido”, relata.
A residência artística começou na última semana, e contou também com mais de 20 estudantes da Escola de Música de Rabo de Peixe. “Tocámos em algumas, noutras não tocámos. Fomos equilibrando”, explica Carlos Mendes, professor de música e “uma espécie de maestro da orquestra” que acompanha os rappers locais e o MC de Chelas no concerto esta quinta-feira. “Nestes desafios do Tremor nunca sabemos o que vai acontecer”, confidencia. “O hip-hop não é bem a nossa praia, mas a música é universal e é bom desafiarmo-nos para o desconhecido.” A convite do Tremor, criaram arranjos para as músicas dos artistas, grande parte delas com base eletrónica. “Somos todos muito mais da área do jazz, da música experimental e da música do mundo. Foi um bocado assustador, em pouco tempo ter arranjos das músicas e tentar perceber o que poderíamos fazer. Foi bastante desafiador”, confessa. “Foi uma surpresa para mim também porque não conhecia grande parte deste panorama do hip-hop açoriano e destas novas gerações. Fiquei agradavelmente surpreendido com alguns enormes talentos que estão a aparecer.”
Com 28 anos, Ruben Almeida, que no palco dá pelo nome Outsidah, também não hesitou perante a possibilidade de trabalhar com Sam the Kid, que escuta desde Poetas de Karaoke. O jovem é de Água de Pau, Lagoa, já tem álbuns lançados e uma opinião forte sobre o rap do arquipélago. “Quando falamos em rap açoriano vamos buscar o Sandrinho [Sandro G], mas desde essa altura até agora houve uma grande evolução. Cada vez mais tem putos que querem ser rappers e artistas e estão a progredir nessa área. O que eu gostava é que tivéssemos mais reconhecimento”, lamenta. “É preciso que mais festivais consigam incluir artistas nossos. Claro que os artistas de fora vão render, mas devia-se incorporar artistas de cá para dar visibilidade ao que nós temos”, acrescenta.
Joana Pacheco, 26 anos, é a única mulher MC do grupo. É da ilha Terceira e está a acabar o mestrado em Ensino de Canto Jazz no Porto. “Mas adoro rap, os meus originais não têm nada a ver com jazz nem com baladas, têm a ver com rap”, explica. “Não vim do rap, mas o rap faz-me feliz.” Ouve com atenção as indicações de Samuel Mira e Vasco Ferreira (Sensi), durante o ensaio. “Fui muito bem recebida no meio destes rapazes todos. Confesso que estava com algum receio de ser a única rapariga e de haver algum tipo de distanciamento entre mim e o resto do grupo, mas isso não aconteceu, estou mesmo feliz”, comenta.
Serão jazz e hip hop mundos assim tão distantes? “Acho que não. Pelo menos é isso que vou escrever no papel da minha tese”, ri. E continua: “Vou misturar os dois mundos. O flow acaba por ser um jogo rítmico muito complexo, a forma como se distribui as sílabas… A improvisação jazzística acaba por ser quase um flow, só que com sílabas. E muitas vezes até há solos jazzísticos que têm letra improvisada. Há um casamento provável entre o canto jazz e o rap a ser estudado.”
O hip-hop acompanha-a desde sempre por influência do irmão, e admite que estar ao lado de Sam the Kid começou com uma inquietação: “Como é que eu vou fazer rap em frente a este homem?”. Surpreendeu-a a atitude “muito construtiva” do artista, que “tem o estatuto que tem, como o Valete diz, um ‘estatuto monstruoso’, mas é uma lição de humildade para todos nós”.
A par do rapper de Chelas, é rápida a nomear Sandro G, nome incontornável do cancioneiro açoriano, como símbolo. “Toda a gente sabe quem é o Sandro G. É uma referência para todos. A verdade é que ninguém conseguiu o que ele conseguiu, sendo de cá, no rap, a nível nacional. O Sandro tem um papel muito relevante. É uma referência para toda a gente”, diz.
Seria erróneo falar num deserto no rap açoriano após Sandro G, como já se notava em AZ-RAP: Filhos do Vento (2017), filme com chancela da Red Bull que tem como objeto de estudo o hip-hop açoriano e as suas singularidades. A curta-metragem documental, que se estreou no festival Tremor, nota o pioneirismo de Sandro G, mas também aponta para uma nova vaga de criadores (Fugitivo, Fred Cabral, LBC, Swift Triiga), com uma identidade única forçosamente ligada à insularidade.
Mas o que é certo é que nenhum conseguiu ainda os feitos daquele que se tornou um ícone de Rabo de Peixe nos anos 2000, sobretudo à conta de canções como Galinha ou Eu não vou chorar, num caso raro de popularidade nacional proveniente de fora do continente, recuperada no último ano à conta da Netflix série Rabo de Peixe, para a qual Sandro Dinis Raposo Gomes (o nome de Sandro G) foi consultor. O rapper inspirou, inclusive, a personagem interpretada pelo artista Romeu Bairos — uma história contada em detalhe em “Onde estás tu, Sandro G?”, artigo de Miguel Rocha no site Comunidade Cultura e Arte, em maio último.
“É muito difícil furar”, nota Sam the Kid. “O rap das ilhas tem mais dificuldade de chegar ao continente, o que não faz sentido nos dias de hoje”, alerta, lembrando “as páginas da cultura do hip-hop nacional também deviam ter essa função”. “Quando não é centralizado, mesmo no continente, há uma dificuldade maior em fazer com que as pessoas sejam ouvidas. Curiosamente, não sinto frustração nesse sentido, da parte dos artistas.”
“Há aqui jovens com autênticos hits e que, estivessem na voz de alguém com mais nome, seriam sons que todos os jovens estariam a adorar”, comenta. Esta quinta-feira, no Porto de Pescas de Rabo de Peixe, pode ser o primeiro vislumbre de um mundo novo para muitos. Mas se é certo que os artistas “têm de continuar a mostrar trabalho”, “talvez todos nós, incluindo eu, tenhamos de fazer o nosso papel”, diz Samuel.
Papel esse que passa por “pensar de forma global”, isto é, “pensar em mulheres, pensar em quem canta em crioulo, quem é brasileiro, não para ter aquela cota, ainda que compreenda que isso por vezes seja necessário para quem não pensa assim”. “Mas só posso mostrar a variedade que conheço, e agora já conheço esta, dos Açores. Numa próxima curadoria em que exista uma logística que faça sentido, já os irei ter em mente. Esse é um papel que tenho de fazer. Acrescentei ao meu conhecimento artistas de uma região da qual não conhecia tantos artistas, mas que no futuro irão estar na minha mente com certeza”, explica. “É importante cada um fazer o seu papel.”
No concerto, que promete ser um dos momentos-chave da 11.ª edição do festival Tremor, acontece esta quinta-feira às 19h e arranca com a orquestra da Escola de Música de Rabo de Peixe a interpretar Grândola Vila Morena, em jeito de celebração dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. Sam The Kid cantará Sendo Assim, do álbum Mechelas (2018), e depois, será a vez dos MCs locais mostrarem as suas canções, culminando numa versão de Eu Não Vou Chorar, com novas barras de cada um.
O Observador viajou até São Miguel a convite do festival Tremor.