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Empresas fictícias, persuasão e quase mil pessoas enganadas. Como funcionava a versão luso-brasileira do Lobo de Wall Street

Empresa recrutava exclusivamente brasileiros através do Olx. Objetivo era convencer outros brasileiros a investir em ações, sempre com o lema: "Pensem em vocês, esqueçam as vítimas".

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Em janeiro deste ano, Gleiton Carvalho estava à procura de emprego. E dava preferência aos anúncios que incluíam a palavra ‘marketing’, porque era essa a área na qual tinha trabalhado no Brasil, país que deixou há, mais ou menos, nove meses. Encontrou a oferta perfeita no Olx, plataforma habitualmente utilizada para compra e venda de produtos, e foi naquele momento que começou a sua relação com a Pineal Marketing, que já há um ano estava a ser investigada pela polícia brasileira. Na passada segunda-feira, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) deteve quatro pessoas relacionadas com esta empresa, por suspeitas de crimes de peculato, fraude eletrónica e comercial, lavagem de dinheiro e associação criminosa.

“Precisavam de pessoas com boa argumentação para vendas diretas. Candidatei-me e fui selecionado para uma entrevista”, conta ao Observador Gleiton, de 34 anos. A segunda quinzena de janeiro parecia ser então o início de uma nova etapa, com a perspetiva de encontrar um novo trabalho. Partiu de Lisboa de comboio, saiu na paragem de Paço de Arcos e foi até ao edifício Oeiras Tower para a sua entrevista. Naquele primeiro contacto ficou a perceber parte do esquema que tinha sido montado na Pineal Marketing: “Mostraram como é que funcionava, que entravam em contacto com os brasileiros, para que os brasileiros pudessem fazer investimentos na bolsa de valores, através de empresas como a [norte-americana] Apple, ou outras empresas da Europa”.

SEF detém quatro pessoas procuradas no Brasil por burlas ligadas à Bolsa

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Até aqui, nada indicava que aquela empresa seria, como concluíra a Polícia Civil de Minas Gerais, no Brasil, a versão portuguesa do Lobo de Wall Street, onde “centenas” de trabalhadores se dedicavam a burlar brasileiros, através da criação de empresas fictícias para supostos investimentos na bolsa. Gleiton estava então no 10.º andar daquele edifício, reservado, exclusivamente, para a Pineal Marketing, cuja atividade registada, oficialmente, é marketing, publicidade e comunicação. “As condições são ótimas, as salas são perfeitas, tudo é muito limpo e muito organizado. É realmente uma empresa. Uma pessoa chega e apaixona-se, porque parece uma coisa séria“, contou.

"Não sei explicar bem. Eu me interessei bastante pela empresa. Teria só de entrar em contacto com brasileiros e fazer com que eles fizessem um investimento inicial de 250 ou de 500 euros. Era o investimento inicial para começar a aplicar e assim ter um retorno."
Gleiton Carvalho, que chegou a frequentar a formação da empresa Pineal Marketing

Depois da entrevista, Gleiton foi chamado para a fase de formação. E, sem conseguir adiantar uma explicação, não fez qualquer pesquisa para saber mais sobre a empresa que tinha acabado de o chamar para a segunda fase do processo de recrutamento. Garante que procura sempre mais informação sobre as empresas com as quais se cruza no contexto profissional, mas desta vez, isso não aconteceu. “Não sei explicar bem. Eu me interessei bastante pela empresa. Teria só de entrar em contacto com brasileiros e fazer com que eles fizessem um investimento inicial de 250 ou de 500 euros. Era o investimento inicial para começar a aplicar e assim ter um retorno.”

Lema: “Pensem em vocês e nas vossas famílias, esqueçam as vítimas”

Já na formação, Gleiton e mais oito candidatos que estavam consigo perceberam que as pessoas que circulavam por aquele 10.º andar se dividiam em três grupos. O primeiro era aquele onde iria trabalhar Gleiton e incluia todos os trabalhadores que durante as habituais oito horas diárias ligavam para o Brasil. E aqui está um pormenor importante: apesar de ligarem a partir de Portugal, nas chamadas que fazem a partir de Oeiras o número apresentado no telefone das vítimas surge com o indicativo (+55) 61, que corresponde a Brasília.

Apesar de ligarem a partir de Portugal, é utilizado o indicativo (+55) 61, que corresponde ao de Brasília. Autoridades suspeitam que trabalham nos quatro escritórios abertos em Portugal cerca de 150 pessoas. 

Este primeiro grupo tinha então a tarefa de convencer brasileiros a investirem em ações de empresas. “Eram cerca de 40 operadores de telemarketing e estavam divididos por equipas. Cada equipa tinha o seu gerente e objetivos para cumprir”, explica o brasileiro que frequentou a formação ao Observador. O ordenado base fixava-se nos 760 euros e, a este valor, somavam-se as comissões por cada cinco brasileiros “conquistados”. E aqui há mais outro pormenor: uma das regras da empresa é não ligar, em momento algum, para um familiar.

Olhando para a pirâmide da Pineal Marketing, na base estavam os operadores, que faziam as chamadas, depois os gerentes, responsáveis por cada equipa e, numa das posições mais elevadas a cadeia, as equipas de trade marketing. “Depois de conquistar o cliente, de ele aplicar o dinheiro, eu não teria mais contacto com esse cliente. O contacto já seria com outra equipa”, acrescentou Gleiton. E este terceiro grupo não se misturava com os restantes trabalhadores: “Ficam numa sala especial.”

"A figura de Jordan Belfort [protagonista do filme O Lobo de Wall Street] era venerada. Nas festas da empresa havia prémios para os melhores vendedores e grande ostentação de riqueza. Nos grupos de WhatsApp, os gerentes incentivavam os vendedores a verem o filme e eram sistematicamente induzidos ao mesmo comportamento. O lema da companhia era: Pensem em vocês e nas vossas famílias, esqueçam as vítimas."
Polícia Civil do Distrito Federal

Nessa “sala especial”, vai contando Gleiton Carvalho na conversa com o Observador, um grupo de cerca de sete pessoas “contacta as pessoas que já aplicaram dinheiro e passa as informações sobre as marcas. Do género: ‘Hoje é a Apple que está em baixa, hoje vai comprar Samsung’. Enfim, as ações que eles escolhem”.

Independentemente da posição na pirâmide, há um lema que é passado a todos os trabalhadores — e que liga este esquema ao filme de Martin Scorsese e justifica a regra de não contactar familiares. “A figura de Jordan Belfort [protagonista do filme O Lobo de Wall Street, interpretada por Leonardo DiCaprio] era venerada. Nas festas da empresa havia prémios para os melhores vendedores e grande ostentação de riqueza. Nos grupos de WhatsApp, os gerentes incentivavam os vendedores a verem o filme e eram sistematicamente induzidos ao mesmo comportamento. O lema da companhia era: Pensem em vocês e nas vossas famílias, esqueçam as vítimas”, adiantou a Polícia Civil do Distrito Federal em comunicado, citado pelo jornal brasileiro Folha.

Quatro escritórios em Portugal, sites falsos e, pelo menos, 945 vítimas

Gleiton foi ao primeiro dia de formação, ouviu uma das gerentes a falar sobre a empresa e, sobretudo, sobre a facilidade com que poderiam ganhar dinheiro. Mas o cenário mudou quando fizeram uma pausa para almoçar e uma das pessoas que estavam também a frequentar a formação perguntou: “Algum de vocês pesquisou sobre esta empresa?” A resposta foi negativa e a pessoa que perguntou acabou por mostrar as informações que tinha encontrado através de uma breve pesquisa, usando o apenas o nome da empresa.

Gleiton Carvalho percebeu que existiam centenas de queixas e de testemunhos de pessoas que foram vítimas de burla por esta empresa. Segundo a polícia brasileira, há, pelo menos, 945 pessoas que perderam dinheiro neste esquema.

“Vi a reportagem, vi outras reportagens e disse: ‘Realmente, é uma empresa que dá golpes, então eu não vou participar nisso, eu não vou ficar’. Saí eu e mais cinco pessoas. As restantes continuaram”, conta Gleiton, que abandonou a formação e não acabou sequer o primeiro dia. E, quando começou a pesquisar, percebeu que existiam centenas de queixas e de testemunhos de pessoas que foram vítimas de burla por parte da Pineal Marketing. Segundo a polícia brasileira, há, pelo menos, 945 pessoas que perderam dinheiro neste esquema. Muito dinheiro.

Foi no Brasil, aliás, que começou esta investigação e que as autoridades perceberam que existiam quatro escritórios em Lisboa, do mesmo proprietário — um homem nascido na República Checa, que vive em Portugal –, “contando com mais de 150 brasileiros contratados”. Segundo a polícia brasileira, há “provas do ambiente sociopata existente dentro da empresa”, que incentiva os trabalhadores a burlarem pessoas que estão em território brasileiro.

Os "websites eram muito bem montados, dando a impressão de serem empresas idóneas. As vítimas faziam registo nessas páginas e depois usavam uma aplicação para fazerem os supostos investimentos".
Polícia Civil do Distrito Federal

Este esquema está repleto de pormenores e um deles escapou a Gleiton Carvalho, não percebeu durante as horas que passou naquela empresa que a Pineal Marketing criou páginas de empresas fictícias para convencer os “clientes” a investirem nessas mesmas empresas fantasma. Os “websites eram muito bem montados, dando a impressão de serem empresas idóneas. As vítimas faziam registo nessas páginas e depois usavam uma aplicação para fazer os supostos investimentos”, explica a polícia brasileira, que começou esta investigação no ano passado e que investigou o caso em conjunto com a Polícia Judiciária e com o SEF.

Muitas vezes, o dinheiro não chegava a ser aplicado em ações e era, simplesmente, desviado para contas pessoais. Para os investidores, a imagem que passava era a de que tinham perdido tudo na bolsa.

A história passou despercebida em Portugal durante algum tempo, mas no Brasil esta empresa já é conhecida e os testemunhos multiplicam-se — desde a pessoa que vendeu tudo até ao casal que investiu o dinheiro que seria para comprar uma casa. “Perdemos muito dinheiro, que usaríamos numa moradia própria. Agora estamos endividados e sem saber o que fazer”, escreveu um jovem num dos sites brasileiros que contam também esta história.

"Um brasileiro entrou em contacto comigo e disse que chegou a gastar quase um milhão de reais (mais de 180 mil euros). Perdeu a esposa, vendeu a casa, vendeu o carro à conta disso. É uma ilusão, eles fazem uma espécie de lavagem cerebral, a pessoa acha que vai ficar rica aplicando aquele dinheiro e ficam na miséria."
Gleiton Carvalho, que chegou a frequentar a formação da empresa Pineal Marketing

E a Gleiton chegaram já várias histórias: “Um brasileiro entrou em contacto comigo e disse que chegou a gastar quase um milhão de reais (mais de 180 mil euros). Perdeu a esposa, vendeu a casa, vendeu o carro à conta disso. É uma ilusão, eles fazem uma espécie de lavagem cerebral, a pessoa acha que vai ficar rica aplicando aquele dinheiro e fica na miséria.”

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