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Pouco depois do atentado contra o ex-Presidente Donald Trump, atingido a tiro numa orelha durante um comício na Pensilvânia, começaram a circular nas redes sociais as já habituais teorias da conspiração. Na rede social X, a palavra “staged” [encenado, em português] chegou ao segundo lugar das tendências e muitos internautas acusaram a campanha de Trump de ter encenado todo o incidente, com o objetivo de fazer aumentar a simpatia pelo ex-Presidente e galvanizar os seus apoiantes para a corrida eleitoral que se aproxima, em novembro.

Correm as teorias de que o sangue que o ex-Presidente tinha num dos lados do rosto era um gel colocado propositadamente para simular os ferimentos, de que tudo não terá passado de um operação de falsa bandeira (uma ação política ou militar realizada com a intenção de culpar uma pessoa ou grupo rival) possivelmente com a colaboração do Serviço Secreto (agência do Estado norte-americano responsável pela segurança de altas individualidades, incluindo Presidentes, ex-Presidentes e candidatos ao cargo) e que o facto de Trump ter erguido o punho é sinal de que o tiroteio em Butler foi uma encenação, nota o Washington Post.

BlueAnon, o movimento conspirativo que combate Trump

As teorias, difundidas por opositores do ex-Presidente — maioritariamente ligados à esquerda do campo político norte-americano — já são conhecidas por BlueAnon, um trocadilho com a teoria da conspiração QAnon, ligada à direita — que, há pelo menos três anos, promove a ideia de que existe um grupo de pedófilos canibais satânicos dentro de Hollywood, do Partido Democrata e daquilo a que chamam o Deep State norte-americano (uma espécie de establishment que tomaria conta do Governo e agências federais, mais poderoso do que o Presidente).

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Para o BlueAnon, forças obscuras, incluindo os grandes grupos de media, estão a trabalhar para prejudicar a candidatura de Joe Biden e colocar Trump novamente na Casa Branca. Estas ideias, que têm pontos de contacto com o QAnon, têm crescido nos últimos oito meses, disse ao Washington Post o investigador Karl Folk, que estuda os temas do autoritarismo e da radicalização na Universidade de Augsburg, em Minneapolis.

Os tiros regressaram à política americana. Que efeito vai ter na campanha?

Pelas redes sociais, nomeadamente no X, circularam, nos últimos dois dias, publicações recheadas de especulação sobre o tiroteio em Butler, vistas milhões de vezes, escreve a jornalista da BBC Marianna Spring, especialista em desinformação. Na rede social X, detida pelo multimilionário Elon Musk, a palavra staged” tornou-se rapidamente o segundo tópico mais usado na noite de sábado, com mais de 2,2 milhões de posts, nota o site FirstPost.

E a teoria da encenação não fez caminho apenas nas pessoas mais interessadas em política ou dentro da bolha político-mediática. As publicações que continham a palavra “staged” surgiram como recomendados para muitos utilizadores que queriam só perceber o que se tinha passado no comício de Butler. Para agravar a situação, muitas das publicações que disseminavam a teoria da encenação foram publicadas ou repartilhadas por utilizadores que compraram o selo azul de verificação do X, o que fez com que essas publicações tivessem um maior alcance.

“Não acham que esta m**** foi encenada? Em 2016, vejam o quão rápido eles tiraram Trump de lá apenas por alguém ter dito que, na multidão, uma pessoa tinha uma uma arma“, escreveu um dos utilizadores, questionado a atuação dos agentes do Serviço Secreto.

“Parece muito encenado”, notou outra pessoa, na rede social X, numa publicação que acumulou um milhão de visualizações. “Ninguém na multidão está a correr ou a entrar em pânico. Ninguém na multidão ouviu uma arma de verdade. Não confio nisso. Não confio nele”.

Os especialistas dizem que está a aumentar a disseminação das teorias da conspiração BlueAnon, o que significa que a criação de “factos alternativos” (expressão usada pela antiga conselheira de Trump Kellyanne Conway) e, em alguns casos, de uma realidade paralela, não está confinada ao campo da direita e que se alarga também ao espaço ideológico de esquerda. Este movimento corre em paralelo com a crescente perda de confiança dos norte-americanos nas instituições tradicionais e na comunicação social, com a população a procurar mais informação junto de comentadores políticos e fontes não fidedignas.

“O paradigma do bem contra o mal do QAnon tomou conta do movimento anti-Trump”

O paradigma do bem contra o mal do QAnon tomou conta do movimento anti-Trump e estamos a ver que os dois lados sentem que estão numa batalha entre o bem e o mal”, disse Mike Rothschild, autor de The Storm Is Upon Us: How QAnon Became a Movement, Cult and Conspiracy Theory of Everything [A tempestade está sobre nós: como o QAnon se tornou um movimento, um culto e uma teoria da conspiração de tudo]. “[O chamado BlueAnon] está a surgir da parte de grandes influenciadores de ‘resistência’ de esquerda e liberais, que acreditam que Trump é tão desonesto que fingiria sua própria tentativa de assassinato para ajudar a sua campanha”, sublinhou o especialista, em declarações ao Washington Post.

Numa outra publicação, um utilizador do X defende que o tiroteio no comício da Pensilvânia foi encenado porque as pessoas que assistiam ao comício não saíram do local e sugere que o ferimento na orelha de Trump foi provocado pelo próprio.

“Ele não foi baleado! Se realmente tivesse havido um tiroteio, as pessoas teriam corrido. Parece que ele estendeu a mão e cortou ou arranhou a própria orelha. Eu acredito que, de facto, isto foi encenado! Pensem! Se uma bala que o tivesse atingido de raspão, teria atingido outra pessoa na plateia“, escreveu. Recorde-se que, além de Trump, duas outras pessoas ficaram feridas com gravidade e um homem de 50 anos acabou por morrer depois de ter sido atingido pelos disparos.

Uma conta do YouTube com sede nos EUA também alinhou pela teoria da encenação, argumentando que a foto tirada pelo fotojornalista da Associated Press, Evan Vucci (e que mostra Trump de punho levantado, com sangue no rosto e com a bandeira norte-americana ao fundo) era “muito perfeita”, sublinhando que  conseguiram “posicionar a bandeira de forma perfeita e tudo mais”, nota a BBC.

A teoria de que o atentado contra Trump, que teve lugar no sábado na Pensilvânia (o primeiro em quase 45 anos contra um Presidente ou ex-Presidente dos EUA), foi encenada para favorecer a campanha de Trump foi impulsionada, num primeiro momento, por pelo menos um influente membro do Partido Democrata: Dmitri Mehlhorn, um conselheiro político do doador democrata Reid Hoffman, que encorajou os democratas — num email enviado ao final do dia de sábado, poucas horas depois do tiroteio — a consideraram a “possibilidade” (que Mehlhorn realça “parecer horrível, alienígena e absurda na América”, mas “bastante comum globalmente”) de que que o tiroteio tenha sido “incentivado e talvez até encenado para que Trump pudesse ter as fotos [em que surge como sobrevivente] e beneficiasse da reação [que o incidente geraria]”.

“Nenhum jornal ou líder de opinião nos EUA está disposto a considerar abertamente a possibilidade de Trump e Putin terem encenado isto de propósito”, acrescentou Mehlhorn no email. No domingo, Mehlhorn recuou e disse sentir-se arrependido por ter enviado o email, uma vez que, admitiu, não consultou a sua equipa. Pediu desculpa por, disse, as suas palavras terem distraído as pessoas do “facto essencial” de sábado: o de que “a violência política levou mais uma vida inocente de um norte-americano”.

A atriz Amanda Seales, conhecida pelo papel na série da HBO “Insecure”, foi mais uma das pessoas que alinhou nas teorias conspirativas, colocando em causa a autenticidade da tentativa de assassinato contra Trump por causa do som dos disparos. “Essa m**** foi mais encenada do que uma produção de Tyler Perry de Madea Runs for President“, disse, referendo-se à personagem cómica de ficção que chegou a ser retratada num sketch humorístico no programa de Jimmy Fallon como diretora de comunicação da Casa Branca. “Eu morei no Harlem o tempo suficiente para saber que tiros não soam como pipocas no fogão.”

Inicialmente usado por conservadores em 2021, com o objetivo de ridicularizar a cobertura noticiosa de factos ocorridos durante a presidência de Donald Trump (como a investigação sobre a interferência da russa nas eleições de 2016, que, alegadamente, favoreceu o candidato republicano), o termo “BlueAnon” tem sido usado desde então por pessoas de todos os quadrantes políticos para descrever conspirações bizarras e posições negacionistas dos apoiantes de Biden.

No mês passado, por exemplo, ao aperceberem-se do mau desempenho de Biden no debate contra Trump, muitos apoiantes do candidato democrata sugeriram que este tinha sido propositadamente drogado e acusaram ainda, sem provas, a ABC News de ter adulterado o áudio de Biden com o objetivo de fazer o presidente norte-americano parecer doente durante uma entrevista transmitida a 5 de julho — a primeira após o debate com Trump.

Nas redes sociais, surgem também acusações contra a CNN, que organizou o último debate entre Biden e Trump, acusando a estação de ter passado uma má imagem de Biden. Outros utilizadores acreditam que a cobertura que os media têm feito da campanha de Biden é “a coisa mais próxima de um golpe interno que a América viu desde o que Trump tentou fazer o mesmo no [Departamento de Justiça] em 2020”.

Especialistas como Imran Ahmed, diretor do Centro para Combater o Ódio Digital, notam que o pensamento conspirativo não é exclusivo de nenhum quadrante político: “As teorias da conspiração oferecem uma história fácil que as pessoas podem contar a si mesmas e que lhes dá uma razão para não lidarem com a realidade como ela é”, resumiu ao Washington Post.

“Trump é o herói dos QAnoners não por ser Republicano, mas porque é um outsider”

Em 2021, Joseph Uscinski, especialista em Ciência Política da Universidade de Miami e autor do livro American Conspiracy Theories já defendia em entrevista ao Observador que a tendência para se acreditar em teorias da conspiração não é determinada pelo quadrante político dos que a defendem nem pelo tipo de teoria em si: “Até podíamos livrar-nos do QAnon ou das conspirações dos Reptilianos, mas os crentes continuam a existir e a ver o mundo da mesma forma. Portanto não tem a ver com as especificidades [de cada teoria], tem a ver com a forma como estas pessoas olham para a realidade”, afirmou à altura.

Do outro lado, apoiantes de Trump apontam o dedo a Biden, Obama e Pence

Por outro lado, muitas páginas e pessoas apoiantes de Trump — que, frequentemente, disseminam teorias da conspiração relacionadas com a pandemia, as vacinas, ataques terroristas ou grupos que alegadamente têm o controlo da ordem mundial — também entraram em cena.

Este é o preço que se paga quando se derruba a elite de pedófilos satânicos”, escreveu um dos utilizadores do X, citado pela BBC, numa referência à teoria da conspiração QAnon. Vários utilizadores apoiantes de teorias da conspiração sugeriram que a “ordem” para o assassinato de Trump “provavelmente veio da CIA” e acusaram Barack Obama, Hillary Clinton e Mike Pence de estarem envolvidos no alegado plano. Um golpe falhado do chamado “Deep State” contra Trump foi das acusações mais difundidas; outra foi a de que o ataque contou com a cumplicidade do Serviço Secreto, o organismo que outras publicações dizem ter sido propositadamente enfraquecido ou desfalcado para facilitar o ataque em Butler.

Alguns republicanos com responsabilidades não foram tão longe, mas responsabilizaram politicamente o Presidente Joe Biden e o Partido Democrata por terem de alguma forma incentivado ao ódio e contribuído, na sua leitura, para o ataque. Foi o caso do senador J.D.Vance, por exemplo, que culpou “a esquerda” e a campanha de Biden por terem como “premissa central” a ideia de que “Donald Trump é um fascista autoritário que tem de ser travado a qualquer custo”.

Também o congressista republicano Mike Collins escreveu no X que “Biden deu as ordens” para o ataque contra o rival, partilhando uma declaração recente do Presidente dos EUA, na sequência do seu mau desempenho no último debate, em que este sublinha a necessidade de colocar agora Trump “na mira”.

O post de Collins foi visto mais de seis milhões de vezes e tem acoplado um esclarecimento feito por utilizadores do X que refere não exister nenhuma evidência de que o atual Presidente norte-americano tenha estado envolvido na tentativa de assassinato de Trump. Collins escreveu mais tarde que considerava que a declaração de Biden sobre pôr o candidato republicano “na mira” era uma forma de “incitamento ao assassinato”, razão pela qual defende que as autoridades locais deveriam abrir uma investigação judicial contra o atual Presidente.

Para além de tudo isto, circulam ainda teorias da conspiração relacionadas com a identidade do atirador, o jovem de 20 anos Thomas Crooks, apelidado de “antifa”, extremista e ativista anti-Trump — adjetivações que, mais uma vez, carecem de apoio factual. Neste momento, as informações sobre as crenças políticas do atirador são escassas: sabe-se que estaria registador como eleitor simpatizante do Partido Republicano, mas recentemente deu um donativo de 15 dólares a um grupo ligado ao Partido Democrata.