Alojado nas profundezas do organismo, entre o estômago e a coluna vertebral, aninhado em vasos sanguíneos fulcrais para a sobrevivência de outros tecidos, o pâncreas vai produzindo algumas das hormonas e enzimas mais importantes para a nossa sobrevivência. Um cancro que se desenvolva aqui pode passar despercebido durante longos anos — tantos anos que, em 80% dos casos, a doença está já numa fase muito avançada. Muitos não sobrevivem e, neste momento, mesmo com a combinação da quimioterapia moderna e de cirurgia mais avançada (quando ela é possível), só quatro em dez pessoas vivem pelo menos mais cinco anos.
Mas a Fundação Champalimaud e a família Botton, fundadora da Danone, uniu esforços para preencher as lacunas que as últimas cinco décadas de investigação não conseguiram preencher. Inaugurado esta segunda-feira, pronto a receber o primeiro paciente em janeiro do próximo ano, o novo Centro do Pâncreas Botton-Champalimaud vai aliar a vanguarda da investigação científica com o estado da arte da prática clínica para encontrar soluções para os doentes com cancro do pâncreas. Em entrevista ao Observador, João Silveira Botelho, vice-presidente da Fundação Champalimaud, revela o que vai acontecer de mais vanguardista, nunca antes visto no mundo, para que, em 2023, até mesmo encontrar os tumores seja uma tarefa mais fácil.
Há muitos tipos de cancros, muito complicados. Porque é que decidiram concentrar-se só neste?
Neste momento, o cancro do pâncreas é aquele que, com mais incidência, tem o maior índice de letalidade. E dou aqui um exemplo muito concreto: nos Estados Unidos, o National Institute of Health [em português, “Instituto Nacional de Saúde”] fez uma comparação entre os vários tipos de cancro há 50 anos — mais ou menos na altura em que o Nixon fez uma declaração em como ia curar o cancro — e em 2016. E nesses 50 anos, os índices de cura e de sobrevida em todos os cancros aumentaram significativamente — o cancro da mama, por exemplo, passou de 18% [de cura] para 82%; no da próstata passou para 50%, contra 10% na altura. Mas o cancro do pâncreas, há 50 anos, tinha 3% de sobrevida e passado esse tempo só tinha 6%. Ou seja, o progresso que houve no tratamento e na cura do cancro do pâncreas nos últimos 50 anos foi marginal. E destes cancros todos, aquele que ganhou mais incidência foi o do pâncreas e pensa-se que, daqui a cerca de 10 anos, será a quarta causa de morte no mundo ocidental. É o cancro mais difícil com que temos de lidar, relativamente ao qual se sabe menos e aquele em que o desafio e o investimento faz valer a pena.
O que tornou tão difícil o combate ao cancro do pâncreas ao longo dessas cinco décadas?
O nosso programa está desenhado de uma maneira em que a investigação e a clínica andam a pari passu. Nós julgamos que tem havido quase um divórcio entre o desenvolvimento da investigação científica e a prática clínica. O que nós pretendemos é por médicos e cientistas nos mesmos factos, atentos à mesma coisa e a tratarem do mesmo problema. Pode ser que estes esforços conjuntos permitam que os casos de cancro do pâncreas tenham uma conclusão mais feliz. Nós vamos ter aqui novas técnicas terapêuticas, nomeadamente as técnicas terapêuticas celulares, que podem ser uma janela aberta para alguns ganhos na sobrevida do cancro do pâncreas. Neste momento, já temos um protocolo com o National Institute of Health e com o seu chefe de cirurgia Steven A. Rosenberg. A ideia é fazer um tratamento celular relativamente ao cancro do pâncreas.
Este centro tem objetivos concretos, de aumentar em determinados pontos percentuais a sobrevida dos doentes com cancro do pâncreas?
Nós aqui temos dois objetivos: aumentar a sobrevida dos doentes com cancro do pâncreas e contribuir significativamente para a cura. É esse o nosso grande objetivo: é mais curar o cancro do que propriamente esticar o tempo em que as pessoas vivem com cancro. É evidente que a quantificação disto é difícil, e é uma quantificação que só pode ser vista relativamente aos doentes que cá vêm. A nossa ideia é contribuir de uma forma mais global, quer a partir da investigação, quer a partir da prática clínica. Mas os resultados que tivermos aqui serão publicados anualmente.
Como é que pretendem fazer isso? O que vai ser feito aqui que não é feito noutros lados?
O tratamento cirúrgico que vamos desenvolver aqui é muito avançado, requer equipamentos muito particulares. As salas de operações têm de ter tomografias computadorizadas (TACs) para se fazer um processamento de imagem — e assim poder entrar-se no momento em campos operatórios que não eram explorados. São técnicas avançadas de cirurgia. Neste momento, 18% dos casos gerais de cancro do pâncreas são sujeitos a cirurgia, mas esta técnica aumenta para os 40% a 45%.
Têm planos para investir também na deteção precoce do cancro?
Sem dúvida, porque este é um cancro silencioso por dar sintomas muito tarde. Muitas vezes, o tarde é mesmo tarde demais. Então estamos a trabalhar em duas áreas. Uma delas é a avaliação de risco — o risco que cada pessoa tem de vir a ter cancro do pâncreas em função do estilo de vida ou da componente genética, por exemplo. Estamos a desenvolver, através de uma plataforma de ressonâncias pré-clínicas — são ressonâncias magnéticas, mas com uma enorme densidade de fluxo magnético –, a deteção de quistos e perceber imediatamente se têm uma predisposição maligna ou não. Isto já se fez em tecidos humanos, mas queremos traduzir isso para máquinas usadas em humanos para ver se os quistos que temos no pâncreas podem originar cancros ou não.
E a segunda área em que estão a trabalhar?
É algo que já introduzimos no cancro do pulmão e que queremos introduzir no cancro do pâncreas e do ovário, que também é silencioso. É um aparelho em que as pessoas sopram e libertam elementos voláteis que, depois de estudados, permitem saber se há algum elemento celular relacionado com o pâncreas. O ensaio clínico com este aparelho no cancro do pulmão vai iniciar agora com 1.500 pessoas e estamos a desenhar o estudo pré-clínico para o cancro do pâncreas. Isto pode ser muitíssimo promissor para a deteção do cancro do pâncreas de forma precoce. Queremos ter os primeiros resultados sobre isto em 2023.
E sobre a terapia celular?
O que nós vamos fazer é retirar as células do tumor do paciente, manipular essas células e transformá-las noutras que vão combater o próprio tumor. Quando essas células são manipuladas e transformadas em células guerreiras, são depois reinjetadas no organismo do doente. Ora, retirar as células e fazer esta manipulação — que requer um esquema laboratorial muito complexo — é uma das grandes janelas de oportunidade relativamente ao cancro do pâncreas avançado. Quando já há algum grau de metastização, este pode ser um tratamento que tem uma eficácia que todos os outros não têm.
Outras investigações com terapia celular demonstraram algumas limitações. Se ela não resultar tão bem quanto se julga, qual é o plano B?
O plano B pode ser utilizar as próprias células do sistema imunitário. Mas sabemos que os modelos celulares e genéticos parecem mesmo ser o padrão da nova era na luta contra o cancro. Depois é preciso não esquecer que vamos estar a apostar também na investigação: queremos descobrir porque é que algumas metástases de repente aparecem noutros órgãos, por exemplo. E essas coisas podem trazer aqui novas hipóteses, mais conhecimento sobre a doença e como ter mais esperança de sobrevida. Além disso, também apostamos muito no percurso do doente, achamos que isso fará diferença.
Como assim?
Qualquer que seja o desfecho, este percurso é sempre uma fase de vida muito difícil. E nós temos uma preocupação muito grande em olhar não só para o cancro, mas para o doente. Este centro não é para o cancro do pâncreas: é para os doentes com cancro do pâncreas. E os resultados que procuramos só podem obter-se oferecendo algum bem-estar, alguma confiança e conforto. Por isso, contactámos uma empresa britânica, a Factory Design, que constrói cabines de avião, na executiva, e criámos um hospital de dia que são verdadeiras cabines de executiva. Durante o tempo em que a pessoa tem de estar em tratamento, e que demora três a cinco horas, estará nas melhores condições possíveis de conforto, ambiente e funcionalidade. Queremos proporcionar isto: dentro da tragédia que é ter cancro do pâncreas, ter o melhor percurso possível.
Isso nunca foi feito em nenhum centro, nem mesmo no estrangeiro?
É a primeira vez. Aliás, o próprio construtor, que trabalha para 25 companhias aéreas, disse-nos que foi a primeira vez que alguém os contactou para fazer uma coisa destas e para fazer estas câmaras em ambiente hospitalar. As funcionalidades já existiam, claro, mas nunca tinham sido aplicadas num contexto destes. Era bom que agora isto se repetisse, até para mudar as mentalidades por todo o mundo: há uma tendência para dar mais importância a aspetos puramente técnicos e profissionais; e menos importância à questão do conforto para o doente.
Como é que surgiu esta ideia?
No centro atual, na área em que as pessoas são tratadas, tentámos, de uma forma um bocadinho amadora, fazer um ambiente parecido. Por exemplo, temos aqui a possibilidade de os doentes poderem fazer quimioterapia no jardim, ao ar livre. Mas resolvemos tornar esta ideia, esta nossa prática, ainda mais avançada e convencer os construtores e embarcarem nela. Mas claro que isto só é possível com muito investimento.
É precisamente por causa desse investimento que as doenças menos comuns, mais difíceis, são menos abordadas pela indústria farmacêutica e pela investigação científica. Porque é que a Fundação pensa de forma diferente?
Precisamente porque é difícil, precisamente porque é preciso curar estes doentes. Nós somos uma instituição não lucrativa, que não tem acionistas e só precisa de ser sustentável. Todo o nosso propósito é precisamente investir em coisas em que muitas vezes os outros não investem porque têm outro tipo de preocupações. A nossa natureza permite-nos abraçar causas que outros não podem abraçar.
Então porque é que não o fizeram mais cedo?
Faltava mais tempo. Nós estamos aqui apenas há dez anos, o centro atual só começou a funcionar em 2012. O cancro do pâncreas exige que nós ganhemos algum ritmo para nos lançarmos numa operação deste tipo. Este é um projeto muito mais exigente, concentrado num só tipo de cancro. Precisamos de algum tempo de por todos os peões no tabuleiro para podermos fazer o xeque-mate que pretendemos fazer ao cancro do pâncreas.
Quando vai chegar o primeiro doente ao novo centro?
Esperamos que o licenciamento europeu esteja completamente definido até ao dia 15 de janeiro, mas as consultas e investigação científica vão arrancar. E as pessoas podem chegar até nós por chamada, por email ou batendo às portas. Nós neste momento temos acordos com todas as companhias de seguros e com todos os subsistemas públicos. Todas as pessoas cobertas com este tipo de seguros podem usufruir destes acordos pré-estabelecidos.