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Amália Rodrigues, Carlos do Carmo, Maria da Fé e Tony de Matos: alguns dos protagonistas de um 1971 que procurava cruzar a tradição com o inevitável futuro
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Amália Rodrigues, Carlos do Carmo, Maria da Fé e Tony de Matos: alguns dos protagonistas de um 1971 que procurava cruzar a tradição com o inevitável futuro

Amália Rodrigues, Carlos do Carmo, Maria da Fé e Tony de Matos: alguns dos protagonistas de um 1971 que procurava cruzar a tradição com o inevitável futuro

Entre Amália e Tony de Matos em 1971: o impasse do fado, com uma no cravo e outra na ditadura

De Amália e Carlos do Carmo a Tony de Matos, o fado é glorificado e atacado, na mesma medida e com a mesma paixão. Maria da Fé, João Braga, Rui Vieira Nery e Luis Osório recordam um ano histórico.

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[Este é o terceiro de uma série de especiais a publicar mensalmente, durante 2021, a propósito do 50.º aniversário de um ano que marcou a música portuguesa. Aqui pode ler o primeiro e aqui o segundo]

Camisa aberta, fio de ouro de soslaio e peito bronzeado. A voz grave é inconfundível, de homem espadaúdo, batizado como António Mourão, um dos maiores sucessos de vendas de discos — e de suspiros adolescentes — em Portugal. O ano é o de 1971, o fadista apresenta o novo álbum Meu Amor, Meu Amor com a canção-título de José Carlos Ary dos Santos e Alain Oulman, uma escolha inusitada tendo em conta o restante repertório, canções ardentes que coram os mais desinibidos: “Procurei-te de noite em minha cama/ E tal como te queria, extenuada”. A editora Valentim de Carvalho não entendia esta insistência do cantor popularucho em gravar um poema tão complicado como “Meu Amor, Meu Amor, Meu Limão de Amargura” e a necessidade do acompanhamento de primeira-linha: o Conjunto de Guitarras de Raul Nery. O público, responsável pelo juízo final, é ainda mais enfático:

“Eu subo ao palco e digo que vou cantar uma música que é muito bonita, que certamente vão apreciar. Depois canto e vejo como as pessoas reagem. Dou tudo o que tenho em mim, entende? Enfim, o acolhimento não é famoso. Daí, eu salto para ‘Ó Tempo Volta Para Trás’, por exemplo. Acredite: a casa vem abaixo. Que posso eu fazer?” (Flama, 1971)

A questão é pertinente. O fadista do Montijo revelou-se no palco do Maria Vitória, teatro de revista, a cantar “Ó Tempo Volta Para Trás”, uma canção saudosista que é apontada pelos críticos e jornalistas da época como o exemplo mais vil da nostalgia fascizante e anacrónica, responsável direto por uma anestesia nacional que impede o povo da necessária insurreição. No entanto, como confessa em entrevista à Flama, este mesmo povo desmotiva António Mourão a cantar Ary dos Santos. “De repente, uma mudança poderia trazer-me o afastamento, e eu sou um profissional, compreende?”, defende-se, ciente que existe uma resistência do próprio público à mudança. No mesmo ano, António Henriques, um vendedor de sorvetes no verão, e de castanhas no inverno, defende ao Diário de Lisboa que não existe melhor cantor que Mourão: “Canta com um certo sentimento e a gente percebe”. E nem por acaso, a meio da entrevista de António Mourão com a Flama, um transeunte interrompe a conversa e comenta: “Ó senhor Mourão, o senhor agora canta uma coisa do limão que eu não entendo bem”.

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É a renovação estética e lírica de Amália Rodrigues que abre caminho, além da insistência da fadista em cantar Portugal por inteiro, da cidade às serras, do operário ao grémio literário

Augusto Cabrita

O ano de 1971 é de um profundo impasse para o fado. “É uma espécie de pausa de reflexão em relação a muito do que tinha sido a evolução do fado ao longo de toda a década de sessenta”, concorda o musicólogo Rui Vieira Nery, recordando a obra-prima de Amália Rodrigues do ano anterior, Com que Voz, e um progressivo desenvolvimento de uma cultura jovem, “marcada pela ânsia de democracia”, que lidera um discurso de contestação da qual o fado não escapa, como alegado companheiro e símbolo espiritual do Estado Novo. E ao mesmo tempo, a imagem nostálgica da portugalidade que os oposicionistas querem abolir — a alegria da pobreza, o cheirinho à alecrim — permanece no imaginário da população, até hoje. A canção ligeira ergue-se entre duas barreiras aparentemente intransponíveis, que a dado momento são indissociáveis da situação política: a tradição e o gosto popular; a mudança e a revolução. No meio do turbilhão está uma mulher, Amália Rodrigues, e uma voz que desafia qualquer barreira, que une afetos e desafetos, e aponta o norte da música popular portuguesa.

“Amália canta porque lhe apetece. Importa-se lá com o resto!”

Entre 1970 e 1971, Amália Rodrigues ensaia em casa, na Rua de São Bento, em Lisboa, e nos Estúdios da Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, com supervisão do compositor luso-francês Alain Oulman, o maior responsável pela renovação musical e lírica na obra da fadista e, por arrasto, da canção portuguesa. Amália canta um poema de Manuel Alegre, “Meu Amor é Marinheiro”, entoa “liberdade”, fala de abrir janelas “e abrir todas as cadeias”; e canta a sublime “Alfama” de Ary dos Santos, um poema de parto difícil, que obrigou o poeta e a fadista, às tantas da manhã, a ligar para Manuel Alegre, naquele dia em Londres, que dá a sua achega à letra. Ligam como quem liga a um vizinho, que convém relembrar, era um célebre exilado político, locutor contestatário da Voz da Liberdade, na Argélia, e com os poemas absolutamente proibidos pela Emissora Nacional.

[“Meu Amor é Marinheiro”:]

Em entrevista à Capital, Alain Oulman revela que estão efetivamente a gravar um novo disco, o sucessor de Com Que Voz — o clássico absoluto com “Meu Amor, Meu Amor, Meu Limão de Amargura” e “Gaivota” — e que este disco vai ser totalmente dedicado aos novos poetas, entre eles, Ary dos Santos e Manuel Alegre. O jovem compositor não entra em detalhes por onde andou nestes últimos anos. A saber: cinco semanas preso em Caxias e dois anos exilado em Londres por associação à Frente de Ação Popular (FAP), um grupo dissidente do PCP fundado em Paris.

Acabado de regressar do exílio, a obstinação de Alain em gravar estes poetas comunistas em pleno Estado Novo não é inocente, assim como Amália não tinha sido inocente quando cantou “Abandono” em 1962, o poema de David Mourão-Ferreira em homenagem ao preso político Álvaro Cunhal. No entanto, e por diversas razões logísticas — uma sucessão de digressões e constipações, segundo a própria Amália –, este álbum saiu somente em 1977, com o nome Cantigas numa Língua Antiga, e num cenário político muito diferente. Os jornalistas denunciaram o álbum como uma estratégia oportunista, à mercê do vento revolucionário. E qual seria o nosso fado se Amália Rodrigues, em 1971, no mesmo ano de “Grândola Vila Morena”, tivesse cantado todos estes poemas de Manuel Alegre, incluindo o premonitório “Abril”? Que canções seriam entoadas na revolução, qual seria a música popular portuguesa?

“O José Manuel Osório teve um destaque importante, porque é talvez o fadista mais conhecido com uma postura declaradamente oposicionista”, reflete Rui Vieira Nery, acrescentando: “Distinguiu-se por essa postura pró-democracia que contrastava um bocadinho com aquela espécie de pacto implícito no meio do fado em não afrontar diretamente o regime.”

A nova música popular portuguesa, protagonizada por José Afonso, não tinha propositadamente qualquer vestígio do fado lisboeta. Numa enquete do Diário de Lisboa, sobre a alegada morte do fado, considera José Afonso: “Agora o que me parece importante é dizer-se que as pessoas gostam de fado porque não lhes dão a escolher. O fado foi-lhes (é-lhes) imposto”. O orquestrador Pedro Osório é mais agressivo: “Infelizmente ainda não está a morrer. Sublinho o infelizmente e justifico-o: entendo que uma expressão musical que se mostra totalmente incapaz de evoluir o melhor que tem a fazer é desaparecer”. O pretexto para a ausência do fado da nova canção é o aparente distanciamento da mudança e da juventude, e sobretudo, é um contraste à ebulição que deriva das crises académicas em Coimbra, Lisboa e Porto que formam uma juventude e música politicamente comprometidas.

O inquérito no Diário de Lisboa sobre o "estado do fado", com José Carlos Ary dos Santos, António Santos, Pedro Osório, Rui Mendes, Torquato da Luz e José Afonso

Porém, é precisamente a renovação estética e lírica de Amália Rodrigues que abre caminho, além da insistência da fadista em cantar Portugal por inteiro, da cidade às serras, do operário ao grémio literário. “Ela canta porque lhe apetece. Importa-se lá com o resto! O seu bom gosto, o seu bom senso artístico ficam pelas ruas da amargura? Bem lhe importa”, escreve colérico, como de costume, Mário Castrim no Diário de Lisboa, depois de Nuno Martins entrevistar Amália na RTP, que para a amargura de Castrim, não se justificou perante o país a propósito das gravações simultâneas de José Afonso, Nóbrega e Sousa, Alexandre O’Neill, Alberto Janes e uma série de malhões e Oliveirinhas da Serra, “olarés” e “ó-i-ó-ais”, canções avulso do folclore mais vulgar. “O público não gosta nada, mesmo nada, de comer gato por lebre. Mesmo na voz de Amália”.

Há 50 anos, a secção Amália Rodrigues nas discotecas era extensa e esquizofrénica. O repertório diverso era mais uma prova do génio da fadista, que reverbera e transforma a canção popular portuguesa. Estava na prateleira uma versão de José Afonso, “Natal dos Simples”, ainda do final de 1970 — canção altamente subversiva para o Secretariado Nacional de Informação, inclusive reprovada em eventos ao longo de 1971, exceto quando Amália a canta, que a coragem não chegava a tanto. “Chegamos ao Natal, era preciso fazer um disco para ser vendido em doses Amaliares”, ironiza Arnaldo Jorge Silva, na Mundo da Canção, desafiando a fadista a gravar canções ainda mais subversivas: “Qual a razão porque a D. Amália não gravará ‘O Cavaleiro e o Anjo’, ‘A Cidade’, ou, o ‘Menino do Bairro Negro’, já que tanta admiração tem por José Afonso?”. E na prateleira estava a nova safra de lançamentos: uma canção dedicada a Covilhã de Nóbrega e Sousa que o próprio Rui Valentim de Carvalho desgosta e Amália reitera querer gravar. “É que eu canto aquilo exatamente como se fosse uma mulher do campo, lá da Covilhã”, explicou na altura ao seu amigo e biógrafo, Vítor Pavão dos Santos, a justificar a sua reconhecida capacidade de transfiguração, que ainda emprega em Amália Canta Portugal 2, um segundo álbum dedicado ao folclore.

O outro LP de 1971 é Cantigas de Amigos, com a icónica capa de colagens assinada por Maluda, composto por poemas medievais do galaico-português com Ary dos Santos e Natália Correia. E ainda, entre outros lançamentos, um single carnavalesco dos anos 20, “Ó Careca”, que segue assim:

“Eu faço um vistão
Com a cabeça ao léu
Acho um piadão
Andar sem chapéu”

Escreve o Diário de Lisboa: “A simples enumeração de tal repertório é significativa e diz-nos muito sobre os gostos, interesses e intenções de Amália Rodrigues, que vende Camões ou Alberto Janes como quem vende laranjas”.

“É com a Amália, e a ligação com o Oulman em particular, que vemos cada vez mais grandes poetas contemporâneos a serem cantados e poetas patrimoniais como Camões”, diz-nos o musicólogo Rui Vieira Nery, a partir de sua casa, em Lisboa. “Mas não podemos esquecer que, ao mesmo tempo que fazia esta ponte com a cultura erudita, a Amália continua a ter grandes sucessos populares junto do grande público como ‘Vou Dar de Beber à Dor’”. O letrista de “Vou Dar de Beber à Dor”, Alberto Janes, morre em 1971, deixando um vazio no reportório de Amália, que necessita de novas canções para permanecer relevante entre as camadas populares. Alberto Janes era professor do Ensino Técnico, na Escola do Cacém, e morre de ataque cardíaco após uma acalorada discussão sobre o salário de férias que lhe era devido. “Oiça Lá Ò Senhor Vinho” é uma última e engenhosa composição para Amália, em discurso direto com a pinga:

“Oiça lá, ó senhor vinho
Vai responder-me, mas com franqueza
Por que é que tira toda a firmeza
A quem encontra no seu caminho?
Lá por beber um copinho a mais
Até pessoas pacatas, amigo vinho
Em desalinho
Vossa mercê faz andar de gatas”

Neste ano de embates políticos, de tira-teimas, de profunda reflexão do que deve ser a canção portuguesa, é incompreensível para os jornalistas a existência de algo como “Oiça Lá Ò Senhor Vinho” — de “espírito marialva”. Pior ainda: no mesmo EP de 1971, “Não é desgraça ser pobre”, de José Alfredo Santos Moreira e Norberto de Araújo, mais uma prova flagrante de como o fado é um perpetuador de pobreza e ditadura. O episódio é paradigmático, os jornalistas e críticos de cultura não tem qualquer dúvida: diretamente ou por omissão, o fado salvaguarda o regime ditatorial. Esta reação adversa ao género deve-se ao próprio sucesso transversal do fado nas décadas anteriores, e aos eventuais apoios declarados do Estado Novo, através da Secretaria de Estado de Informação e Turismo. E a embirração particular com Amália Rodrigues tem uma justificação milenar: a morte do maior mito para ceder espaço a novos mitos. “O faduncho é insuportável e os ídolos estão a envelhecer. Mórbido, incapaz de corresponder a uma real dimensão musical, monótono, entrou em declarada crise”, escreve Jorge Cordeiro na Mundo da Canção. Uma leitora atenta responde na edição seguinte da revista: “Estou convosco na destruição dos ídolos e dos mitos”.

Na incómoda Mosca, o suplemento satírico do Diário de Lisboa, surge uma entrevista inesperada à mais célebre fadista de Portugal, de nome Amélia Francisques — qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência:

“Diz-se, Amélia, que você anda alheia da vida e da evolução do país (…) Afirmam alguns, que a mocidade não lhe tem por si grande admiração que lhe consagram os seus admiradores mais — como lhe direi… idosos (…) Há, mesmo, quem diga, que tudo que você hoje canta é tão valioso como o folclore do Dr. Homem de Melo, isto é, que não tem nada a ver com o Portugal de hoje” (Diário de Lisboa, 1971)

Neste suplemento, então editado por Luís de Sttau Monteiro — com o fundador José Cardoso Pires exilado em Londres — menciona-se o poeta Pedro Homem de Mello como uma arma de arremesso, um representante de tudo que estava errado na cultura portuguesa: o folclore plácido e o conservadorismo. A redação musical da Mosca era composta por jovens recém-formados como José Jorge Letria, alinhados à esquerda após o efervescente convívio das crises académicas, e eternos companheiros dos cantores de intervenção. O fado é descrito como “uma droga coletiva nacional” e Amália como a sua principal distribuidora, que vive “rodeada de todos os luxos só acessíveis a quem tem muito dinheiro”, falsamente preocupada com o povo português e uma das responsáveis por “continuaremos a ocupar o lugar que ocupamos na história”.

Página do suplemento "A Mosca", com um artigo dedicado a Amélia Francisques

Hoje sabemos (e Amália – Ditadura e Revolução, o livro de Miguel Carvalho publicado no ano passado, é o mais recente capítulo nesta consciência) que a fadista entregava regularmente donativos ao PCP sob a forma de assistência aos presos políticos, através de intermediários próximos como Ary dos Santos e Alain Oulman. E sabemos também que Amália era genuinamente dúplice: no mesmo ano que grava o hino estudantil “Trova do Vento que Passa”, de Manuel Alegre, está de luto no funeral de Salazar e canta na gala “Flores para a Fundação Salazar”, no Teatro São Luiz. Maior que qualquer regime, as canções da fadista deixam um legado irreversível, confundindo-se onde começa a canção portuguesa e acaba a Amália Rodrigues.

“Toda a gente queria a Maria da Fé, estava na moda”

“O Joel Pina dizia que a Amália quando estava a ouvir Maria da Fé não sabia se era ela ou a Maria da Fé”, revela-nos com orgulho a própria Maria da Fé, na Caparica, enquanto a situação epidémica não permite reabrir a sua casa de fados em Lisboa, não por acaso, inspirada numa canção de Alberto Janes: Senhor Vinho. “Não era agradável para mim estarem a comparar-me com o nome máximo, que era minha diva”, recorda a fadista-sensação de 1971 que era designada como a descendente do cantar amaliano. “Não vim à procura de ser igual a ninguém. Mas fui muito pressionada com essa situação e chorei muito, porque podia me ter trazido problemas”.

A fadista do Porto defendia-se como podia, aproveitava qualquer oportunidade para se demarcar, primeiro nas versões arrojadas de pop-fado, por iniciativa de José Duarte, e depois com “O Vento do Norte”, a estreia de um fadista no Festival RTP da Canção, em 1969. E 1971 foi um ano da aclamação: “Eu não parava, estava em todo lado, toda a gente queria a Maria da Fé, estava na moda”.

"Até aos 18 anos tinha uma autorização do Tribunal de Menores e tive que ir a Lisboa tirar a carteira profissional. Foi quando um senhor que era poeta, o Radamanto, levou-me a um restaurante na hora de almoço, apresentou-me ao Armando Machado, e à noite já estava a cantar na Adega Machado, com o cachet máximo", lembra Maria da Fé.

A fadista canta em Paris, no Rio de Janeiro, e assume o horário nobre na célebre casa de fados Luso, coração do Bairro Alto, na Travessa da Queimada, depois de uma longa temporada na Parreirinha de Alfama, de Argentina Santos. “Saí da Parreirinha para ir para o Luso só porque mudaram um grande guitarrista da Parreirinha — sou muita chata, sempre fui, desde que me conheço, chamavam-me o Alfredo Marceneiro de saias”, reconhece, sublinhando que a sua história não começou na Parreirinha nem no Luso, mas no Porto, e só depois, quase por acaso, em Lisboa:

“A minha mãe trouxe-me para tirar a carteira profissional. Até aos 18 anos tinha uma autorização do Tribunal de Menores e tive que ir a Lisboa tirar a carteira profissional. Foi quando um senhor que era poeta, o Radamanto, levou-me a um restaurante na hora de almoço, apresentou-me ao Armando Machado, e à noite já estava a cantar na Adega Machado, com o cachet máximo.”

Em 1971, Maria da Fé canta Ary dos Santos por duas vezes: a “Menina” vencedora do Festival RTP da Canção; e “Saudade da Partida”, com o poeta a declamar parte do poema, especialmente ternurento, mais um poema da época alegadamente dedicado a José Francisco, o eterno amigo que está longe, e a relação mais duradoura na vida de Ary dos Santos. “Foi muito importante ter gravado a voz do Ary a declamar. Foi composto para um rapaz, o José Francisco, que fui encontrar na Guiné, estava na tropa”, confirma a fadista, cantando-nos o trecho: “Tu vais partir do meu corpo deserto”.

[“Saudade da Partida”:]

E Ary dos Santos não era o único comunista — sequer o único homossexual comunista — que estava dentro da comunidade do fado a derrubar barreiras ideológicas e preconceitos. “Tanto o meu pai como o Ary dos Santos foram naquela área intelectual do partido comunista os exemplos de homossexuais assumidos a serem aceites”, recorda-nos o escritor e jornalista Luís Osório, que nasceu precisamente em 1971, filho do fadista e investigador José Manuel Osório. “O meu pai não era um homem frágil, era bastante convicto, forte e louco, isso também contrabalançou um pouco os estereótipos que as pessoas poderiam ter”.

“O José Manuel Osório teve um destaque importante, porque é talvez o fadista mais conhecido com uma postura declaradamente oposicionista”, reflete Rui Vieira Nery, acrescentando: “Distinguiu-se por essa postura pró-democracia que contrastava um bocadinho com aquela espécie de pacto implícito no meio do fado em não afrontar diretamente o regime.” José Manuel Osório nasceu em Kinshasa, Congo, e quando o país declarou independência, em 1960, a família mudou-se para Cascais, o porto seguro da aristocracia portuguesa. Aí, o jovem incompatibiliza-se com o pai conservador e abraça a vida errante do fado e do Marxismo-Leninismo, rapidamente despertando a atenção da PIDE. A solução é passar largas temporadas em Paris, onde está grande parte de 1971, na casa do amigo José Mário Branco, em Villeneuve-la-Garenne. “A mãe do meu pai, Alice, ficava cheia de medo, porque a PIDE ia a casa. Uma vez foi de madrugada às seis da manhã, ele escondeu livros no piano”.

A perceção do fado como uma doença nacional, de Amália como um surto pandémico, é imposta na imprensa da especialidade, e nenhum Ary dos Santos ou José Manuel Osório consegue contrariar este ódio de estimação: “O folclore das vielas é para chorar comercialmente: as verdadeiras histórias diurnas e noturnas desses bairros não merecem as atenções fadistas”, escreve César Príncipe, na "Mundo da Canção".

Em 1971, sobe ao palco para receber o Prémio de Imprensa de melhor fadista, referente ao ano anterior, mas é impedido de cantar pela polícia política. “Outros valores mais altos se levantam”, justifica em palco, ao receber o prémio sem cantar. A embirração da PIDE prossegue: o novo EP Romance de Manuel Domingos Louzeiro com dois poemas de António Aleixo é imediatamente apreendido. “Era uma fase de carreira em que a cultura, a arte, se confundia com a necessidade de intervir politicamente, de fazer alguma coisa para que o país deixasse de viver numa ditadura”, reflete Luís Osório, sublinhando a importância das gravações claramente oposicionistas de António Aleixo, e pelo período de Paris a cantar canções de intervenção com José Mário Branco e Luís Cília — um universo que se acreditava ser absolutamente distante do fado. “Os discos que ele lança antes de 74, são discos de intervenção, mas de fado, o que é quase subversivo, ele apropria-se do fado como elemento da própria revolução quando a  revolução achava que o fado fazia parte da imagética do salazarismo e devia ser combatido”.

A perceção do fado como uma doença nacional, de Amália como um surto pandémico, é imposta na imprensa da especialidade, e nenhum Ary dos Santos ou José Manuel Osório consegue contrariar este ódio de estimação: “O folclore das vielas é para chorar comercialmente: as verdadeiras histórias diurnas e noturnas desses bairros não merecem as atenções fadistas”, escreve César Príncipe, na Mundo da Canção. E volta à carga para ferrar no mito Amália: “O essencial é que não nos tornemos cúmplices de uma fadista, cuja nefasta influência se associa a muitas outras de diversa natureza que concorrem para o nosso subdesenvolvimento global”. Resume: “Os tempos mudam. O futuro constrói-se a todo o momento”. Mas o fado é inseparável de qualquer tempo, e de facto, o futuro constrói-se, e dá-se a conhecer como Carlos do Carmo.

O jovem que dos negócios chegou aos fados

O impasse do fado neste ano é notório em Carlos do Carmo. O fadista, que morreu a 1 de janeiro deste ano, estava entre o passado — a imensa tradição que herda da mãe fadista, Lucília do Carmo — e o futuro — as canções da sua juventude, a chanson, a bossa nova, Frank Sinatra e o requinte de uma orquestra com cadência, nervo e sensualidade. No álbum de 1971, O Fado De Carlos Do Carmo — com quatro temas instrumentais do Conjunto de Guitarras de Raul Nery — o fadista regrava “Estranha Forma de Vida” de Alfredo Marceneiro e Amália Rodrigues, o primeiro fado que cantou em público. E ao mesmo tempo, Carlos do Carmo está em estúdio com Jorge Costa Pinto a gravar para a editora do próprio orquestrador, a Tecla, com arranjos de ímpeto e sofisticação inéditos dentro do género:

Neste álbum lançado no ano seguinte, grava a nova geração da canção ligeira, como Nuno Nazareth Fernandes e Fernando Tordo, sublinhando que além de filho de uma grande fadista, nascido na Bica, é um jovem que cresceu na década de sessenta, com a mesma ânsia de arrojo e democracia. “É um momento importante para marcar a ideia que o fado pode ter um acompanhamento orquestral que não seja apenas aquela rotina das orquestras de teatro de revista”, sublinha Rui Vieira Nery. Na RTP, Carlos do Carmo apresenta uma série de programas que subvertem o imaginário do fado, despe o xaile da canção, e subtilmente, pé ante pé, por dentro das próprias regras deste cancioneiro, desenha a regeneração do fado como hoje o conhecemos.

“Desejaria apenas que, na minha geração, se encontrasse o caminho certo para a música portuguesa”, reflete Carlos do Carmo à Flama, debruçado sobre a papelada de escritório, ossos do ofício deste co-gerente da casa de fados O Faia desde a morte do pai, com a lição estudada num curso de hotelaria na Suíça. “Vamos abrir os braços, sem reservas, à música nova, mas deixemos que o fado continue. Se tiver de desaparecer, desaparecerá por si próprio”. Descreve o momento atual do fado como uma “rebaldaria” e apresenta um culpado: “A produção em série tem matado a qualidade. Os fadistas repetem-se e os temas começam a esgotar-se (…) Ultimamente, os intérpretes e os guitarristas atravessam uma metamorfose que os leva à procura desmedida de dinheiro e à consequente produção sem qualidade”. Carlos do Carmo é cortês, não concretiza a acusação, mas temas que se repetem, produção em série e sem qualidade, aos olhos de 1971, tem um nome óbvio: Tony de Matos.

“Desejaria apenas que, na minha geração, se encontrasse o caminho certo para a música portuguesa”, reflete Carlos do Carmo à "Flama"

As cartas de amor de Tony de Matos

A Mosca descreve Tony de Matos como “voz de homem de pôr os cabelos em pé”, que conquistou “os corações das mulheres dos emigrantes”, e canta no Parque Mayer porque “já ninguém queria vê-lo nem ouvi-lo”. Certa terça-feira à noite, o cantor que toda vida foi romântico é convidado do “Canal 13”, programa da RTP; e no dia seguinte, olha quem, abram-alas a Mário Castrim: “Aí está a voz romântica, este gesto grave e seguro de lançar ao chão fértil a semente do amor, da queixa, da ternura e do drama tão característico do nosso meio, do nosso povo, do nosso etc!”. “O Tony de Matos era um grande fadista. Só que era um grande fadista que cantava também canções sentimentais”, esclarece Rui Vieira Nery. “Era fundamentalmente um fadista que percebeu que havia ali uma franja de mercado a explorar ao lado do fado e que ele explorou com muito sucesso.”

O álbum homónimo de Tony de Matos em 1971, 50 anos depois, ecoa como o seu conjunto de canções mais definitivo, com a imagem de capa encostado ao corrimão de uma linha de comboio, de cigarro aceso e olhar intenso. Nestas canções, o cantor é um andarilho solitário da noite pelas tascas e cabarets, num queixume de dor-de-corno e saudade.

Um sucesso que foi semeado muito antes, a começar no teatro ambulante nos anos 40, na Companhia de Rafael de Oliveira com a restante família de Tony de Matos, a percorrer Portugal de lés a lés; e depois, os tempos áureos do Café Luso, o cântico lacrimejante de “Cartas de Amor” e o divulgador do fado-canção no Brasil, como dono e chefe de cerimónias do restaurante O Fado, em Copacabana.

O álbum homónimo de Tony de Matos em 1971, 50 anos depois, ecoa como o seu conjunto de canções mais definitivo, com a imagem de capa encostado ao corrimão de uma linha de comboio, de cigarro aceso e olhar intenso. Nestas canções, o cantor é um andarilho solitário da noite pelas tascas e cabarets, num queixume de dor-de-corno e saudade, que tenta preencher — em vão — um lugar vazio que é uma “mágoa profunda”. “É de noite que eu me lembro/ De tudo o que eu tinha”, canta em “Lugar Vazio”, um sucesso da década anterior que recupera neste LP, onde canta ainda sem qualquer pudor “Tender Is The Night”, qual Tony Bennett, e “Recusa”, porventura a sua canção mais imponente.

[Tony de Matos em “Lugar Vazio”:]

É o tipo de álbum de repescagem e regravações que Carlos do Carmo acreditava ser culpado pela rebaldaria do estado do fado. No entanto, este entrosamento do fado com a canção romântica, e a figura do cantor-empresário que percorre o país incessantemente, deixa uma descendência profunda na canção portuguesa. E assim como os grandes nomes da nossa canção romântica mais recente, Tony de Matos não estava preso às grandes editoras, era co-proprietário da Estúdio com Emílio Mateus, onde grava inclusive a sua amiga Maria da Fé; e também não estava preso aos estúdios de cinema. Em 1971 está em Angola a atuar e a produzir o filme “Derrapagem” de Constantino Esteves, com canções de Nóbrega e Sousa e a seguinte sinopse: “História: um mecânico de automóveis apaixona-se por uma jovem da alta sociedade, nascendo daqui o conflito que anima o entrecho”.

Neste ano frenético de Tony de Matos, o palco mais mediático é mesmo a revista Frangos na Grelha, no Parque Mayer, ABC, com Nicolau Breyner, Ivone Silva e Camilo de Oliveira. O teatro de revista perdura como uma opção financeiramente viável para a criação de novos fados. “Em Portugal só há dois processos de ganhar bom dinheiro com a composição musical: revista do Parque Mayer ou festivais da TV”, explica o orquestrador Pedro Osório à Flama, confessando que, “a revista, do ponto de vista musical, representa a maior das facilidades, a maior das concessões”. As concessões não afligem Tony de Matos, António Mourão ou Ana Rosmaninho, estes dois últimos no teatro Maria Vitória, em Ó Zé Aperta o Cinto! e Pimenta na Língua, duas revistas de sucesso de Giuseppe Bastos e Vasco Morgado. Os casinos são outra alternativa de estabilidade económica: Tony de Matos faz uma residência no Casino de Espinho; e Beatriz Da Conceição no Casino do Estoril, entre malabaristas e dançarinas burlescas — “de lantejoulas e biquínis refulgentes”.

Mestre Marceneiro: “Só tenho memória fresca de noite, mas as minhas recordações são agressivas”

No meio deste carnaval, acredita-se, existe uma pessoa que sustenta a credibilidade e genuinidade do fado. Em 1971, o nosso maior diletante da canção, Alfredo Marceneiro, é um espécime ameaçado, somente visível à meia-luz da noite, de lenço ao pescoço, no habitat natural das tabernas e do bagaço. Na companhia das guitarras de Francisco Carvalhinho, António Chainho e António Bessa, Ti’Alfredo edita Alfredo Marceneiro e o Fado, a contragosto, que o fado castiço não é bicho que seja domesticado em estúdio. No dia 25 de fevereiro celebra 80 anos de vida, a imprensa rende-se à autenticidade deste cantor, o Diário de Lisboa esclarece que: “é sempre a noite que o traz e parece envolvê-lo em sombras de mistério”. O Século Ilustrado, com fotografias de Eduardo Gageiro, acompanha o fadista irrequieto no Tendinha, ainda com a noite por começar. Em entrevista, recorda com dificuldade oito décadas intensas, marceneiro toda a vida, das construções navais às oficinas militares, reformado desde 1963, conseguindo finalmente, a tempo inteiro, dedicar-se com afinco a — como canta em “Sonho Dourado” — morrer cantando o fado nos braços de uma mulher. “Realmente, só tenho memória fresca de noite, mas as minhas recordações são agressivas. Metem mulheres, não convém!”.

[Alfredo Marceneiro e “Sonho Dourado”:]

O fadista João Braga confirma-nos, 50 anos depois, ao telefone de sua casa, em Lisboa, que as noites de Alfredo Marceneiro eram de facto longas e que invariavelmente terminavam em Alfama, na Taverna do Embuçado de João Ferreira-Rosa, por onde também cantava Celeste Rodrigues e o próprio João Braga. Mas o jovem fadista, então com 26 anos, opta por uma combinação à tasqueiro, ao invés de assinar contrato: “O João Ferreira-Rosa teve uma conversa comigo e disse-me: eu não tenho dinheiro para te pagar o cachet, fazemos assim, cantas à hora que te apetecer, não entras no horários dos fadistas, comes e bebes o que quiseres, não pagas e eu também não te pago. E com esta combinação passava lá quase todas as noites”.

A Taverna do Embuçado era um refúgio para os crentes do fado castiço, de frequência seleta, consumo mínimo de 90 escudos. “Hoje a única casa que exige fato preto é a Taverna do Embuçado, mas acho que isso é snobismo”, comenta Maria da Fé ao Diário de Lisboa. As restantes casas de fado e restaurantes mais populares são a metade do preço e definitivamente conquistados pelos turistas que pagam em libras para ouvir uma fadista e ver um bailarico — very typical — seja no Timpanas, Parreirinha de Alfama, O Faia, Largo da Hermínia, o Folclore, a Adega Mesquita ou até no Luso, onde antes de Maria da Fé subir ao palco, o Conjunto Privado de Danças Regionais de António Cunha diverte a clientela.

Entrevista de Maria da Fé ao Diário de Lisboa, em julho de 1972

Na entrevista ao Século Ilustrado, Marceneiro põe “o dedo na ferida”: “Naquela altura havia dois públicos: o que gostava de ouvir cantar e os intelectuais. Hoje, há o público que não diz nada e o público estrangeiro”. Não é casmurrice de fadista octogenário, o fado de Lisboa é então inseparável do acréscimo de turistas. Segundo a Comissão de Turismo da OCDE, o turismo em Portugal representava seis milhões de contos, uma subida de 33%, um aumento destacado entre os congéneres europeus. A Secretaria de Estado da Informação do Turismo revela que somente em abril de 1971 entraram 275,3 mil estrangeiros em Lisboa, um aumento de 25% em comparação com o ano anterior.

“O fado descobriu o turismo e o turismo descobriu o fado na década de cinquenta, quando tínhamos a Europa em grande reconstrução no pós-guerra, sobretudo os países do Norte da Europa, e cria-se uma classe média bem remunerada, com um poder de compra muito superior à dos portugueses do mesmo nível social”, explica Rui Vieira Nery, contextualizando um cenário que se agrava em 1971, e consequentemente, é outra prova que o fado está desvirtuado e corrupto. Escreve César Príncipe: “Fado — canção desabafo de provincianismo lisboeta, tabernismo cosmopolita, bairrismo encenado, regionalismo de aldeia mental no século das conquistas espaciais”. E não fica por aqui: “bairros típicos que apenas se devem conservar para atrair turistas com whisky estrangeiro e saudade-sexy à portuguesa”.

"Eu não gostava de fado. A lírica do fado era na sua imensa maioria uma coisa que mexia comigo num sentido negativo. Em 1962 ouvi um fado chamado 'Povo', que ficou conhecido como 'Povo que Lavas no Rio', da Amália”, recorda João Braga. Foi aí que o fadista percebeu "que a lírica do fado podia ser outra”.

Além das casas de fado, dos casinos e das revistas, o incremento da emigração portuguesa abre mais um mercado estável para a indústria do fado. A ilustre fadista Hermínia Silva, por exemplo, estreia-se nos EUA apenas em 1971, a convite da comunidade portuguesa em New Bradford, e apresenta mais uma canção jocosa, “Às Ginjas Com Elas”:

“Bacalhau às lascas em todas as tascas
Uns tipos mais rascas, andei lado a lado
Meti-me no tinto e depois do quinto
Talvez por instinto, cantei o meu fado”

Na guitarra desta paródia está Raul Nery, que como é evidente ao longo deste texto, era o líder do conjunto mais requisitado da época. “Lembro-me das minhas primeiras memórias de criança, do meu pai estar constantemente em estúdio”, confirma o musicólogo, filho do guitarrista e engenheiro da SACOR. “Ele tinha um horário de trabalho normal, das nove às cinco, e todas essas gravações eram feitas depois disso, aos fins de semana eu quase que não o via, de tanta sobrecarga de gravações”. E assim como Raul Nery, os seus camaradas da guitarrada também batiam o ponto das nove às cinco, e gravaram ininterruptamente ao longo do ano: o eletricista portuense Fontes Rocha; Júlio Gomes, escriturário de contabilidade da CP; e ainda o recentemente falecido, aos 101 anos, funcionário público e viola-baixo Joel Pina, nascido em Idanha-a-Nova.

“Maria da Fé tem uma qualidade que aprecio imenso nas pessoas: nada de meias palavras. Diz o que pensa sem subterfúgios ou receio de melindrar este ou aquele”, escreve a jornalista do Diário de Lisboa, Lourdes Féria, que pergunta à fadista o que pensa dos fadistas amadores: “Teresa Tarouca, Maria do Rosário Bettencourt e essas ‘meninas de bem’ vão aos espetáculos onde ganham tanto como eu e depois dizem que são amadoras… porque naturalmente, é chique”. Teresa Tarouca e Maria do Rosário Bettencourt prosseguem a tradição de Maria Teresa de Noronha, a instituição do fado aristocrático que lança Fado Antigo aos 53 anos, o seu último álbum, na companhia de Raul Nery e de Joel Pina. O progressivo distanciamento da fadista dos palcos e discos não seria a morte do fado aristocrático, com Vicente da Câmara a guiar uma nova geração para esta tradição. “O meu pai dizia sempre, não há fado aristocrático, há aristocratas que cantam fado”, acrescenta Rui Vieira Nery. Em 1971, Teresa Tarouca é uma das principais aristocratas que cantam fado, tanto ao lado do poeta Pedro Homem de Mello na Taverna do Embuçado, como no EP A Micas do Trapo, com — obviamente — o Conjunto de Guitarras de Raul Nery. Outro é João Braga, uma presença constante na rádio da época, que advém do reduto particular do fado de Cascais, com uma liberdade de pensamento e movimento que era habitual em espaços de privilégio social e económico.

[Teresa Tarouca e “A Micas do Trapo”:]

“Eu frequentava as casas do fado todos os dias, deixei de estudar e comuniquei ao meu pai que não ia ter um filho advogado mas fadista, com algum desgosto da parte dele, mas a vida é assim”, recorda-nos João Braga, que é descoberto por João Martins na Rádio Renascença, e participa no mediático programa Zip-Zip. Em 1971 é desafiado por Rita Olivaes para participar no Festival RTP da Canção do ano seguinte e continua a gravar canções que o situam justamente no meio desta história: entre a inovação poética de Amália Rodrigues e o canto castiço e aristocrático de Marceneiro e Maria Teresa de Noronha. “Eu não gostava de fado. A lírica do fado era na sua imensa maioria uma coisa que mexia comigo num sentido negativo. Assim que começava a ouvir um fado na telefonia mudava logo o posto”, confessa o fadista, demonstrando um estado de espírito em relação ao fado que era sintomático na sua geração. “Em 1962 ouvi um fado chamado ‘Povo’, que ficou conhecido como ‘Povo que Lavas no Rio’, da Amália”, recorda. Percebeu “que a lírica do fado podia ser outra”, e começa a gravar letristas contemporâneos como António Calém, Manuel Andrade e João Fezas Vital.

A Grande Noite de todo aquele fado

O fado não estava estagnado, compreende João Braga, estava em movimento perpétuo, inclusive em Cascais. Neste momento, a casa de fados mais célebre na zona é O Arreda de José Pracana, pouso frequente de João Braga, Teresa Tarouca, Carlos Zel, e surpreendentemente, José Manuel Osório. A convivência do fado aristocrático com o comunista é uma demonstração da resiliência do género às intrigas ideológicas e um indício que iria sobreviver ao processo revolucionário pós-25 de Abril. O filho de José Manuel Osório fundamenta: “Ele era um radical defensor do fado, achava que era uma canção portuguesa. Achava que o fado estava presente em todos os domínios da intervenção, tanto no domínio do conservadorismo salazarista como no domínio dos que acreditavam numa ideia progressista. O fado poderia ser várias coisas”.

No final, indiferente à imprensa e aos compositores que decidiam o que seria a música popular portuguesa nos próximos anos, estavam milhares de pessoas a bater palmas a novos fadistas, a ouvir poemas intrincados de Amália Rodrigues, canções de taberneiro de Hermínia Silva, a suspirar pela lamechice sensual de António Mourão e as casas de fado à pinha de turistas, aristocratas a fazer sala com comunistas.

Neste ano de 1971, um fenómeno social e cultural não encaixava no argumento que o fado estava distante da juventude, e que, consequentemente, deveria ser expulso da nova música popular portuguesa. A Grande Noite do Fado era um evento organizado pela Casa da Imprensa no Coliseu dos Recreios desde 1953, uma espécie de prova de resistência que se alongava pela noite adentro, uma maratona de fado para premiar o melhor fadista amador de Lisboa. Nos intervalos da competição, sobem ao palco Simone de Oliveira, Madalena Iglésias, Raul Solnado, Trio Harmonia, António Mourão, Hermínia Silva e claro, Amália Rodrigues. Na plateia estão seis mil pessoas a bater palmas por cada concorrente amador, a duração do aplauso decide a vitória, e os contemplados são Artur Batalha, do Clube Recreativo Atlético de Algés, e Maria da Nazaré dos Santos, da Sociedade Filarmónica Alunos Esperança. Aos 18 anos, Maria da Nazaré recebe uma ovação de um minuto e três segundos, alento para uma longa carreira que continua 50 anos depois.

Um adepto da Grande Noite do Fado esclarece ao Diário de Lisboa: “Todos os anos cá venho, primeiro porque o meu bairro concorre sempre, depois porque isto é um espetáculo do povo”. E vai ao detalhe: “Trouxe um garrafão, trinta carcaças, um quilo de queijo, dois frangos, dois chouriços, duas garrafas de litro de laranjada e uma de gasosa, e mais umas coisitas”. E no final, indiferente à imprensa e aos compositores que decidiam o que seria a música popular portuguesa nos próximos anos, estavam milhares de pessoas a bater palmas a novos fadistas, a ouvir poemas intrincados de Amália Rodrigues, canções de taberneiro de Hermínia Silva, a suspirar pela lamechice sensual de António Mourão e as casas de fado à pinha de turistas, aristocratas a fazer sala com comunistas. Comiam-se carcaças, chouriço, e mais umas coisitas. Tudo isto era fado.

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