Sílvia Gaspar estava a trabalhar no Hospital de Cascais quando recebeu o telefonema do filho. Um incêndio de grandes proporções acabava de deflagrar na freguesia de Alcabideche, consumindo tudo no seu caminho. Bastou uma ida rápida ao sétimo andar da unidade de saúde, junto à localidade de Cabreiros, para a auxiliar de limpeza confirmar o seu maior receio: o fogo andava na zona por detrás da sua casa, apesar de ainda estar longe de a ameaçar. Enquanto se apressava para chegar à moradia, na Rua Manuel Henriques, já Carla Lima, que estava em casa quando viu despontar o incêndio, corria para junto do pai, que numa rua não muito longe procurava regar vários terrenos de que é proprietário.
“É muito desesperante, muito. Vivi momentos de terror ali em cima”, reconhece a moradora, de 46 anos, apontando para uma rua larga onde o fumo negro é tão denso que já não permite ver a totalidade. Depois de várias viagens acima e abaixo, a mulher já não se aventura a subir novamente. E não é a única. Uma pequena mota desce por ali a acelerar, o homem que nela segue com um balde vazio pendurado no braço.
Já passam das 20h e a maior parte dos moradores, muitos de máscara no rosto para se protegerem do fumo, saíram às ruas da localidade de Cabreiro. O vento fustiga desgovernado, enquanto os carros dos bombeiros andam para trás e para frente, de sirenes ligadas, alertando a população para se desviar à medida que passam. Por entre o céu cinzento, vários helicópteros vão sobrevoando a zona, em direção aos principais focos de incêndio. Apesar dos vários meios de socorro que já foram alocados, Carla mostra-se crítica. “Tive de gritar com os bombeiros. Tive de telefonar, gritar até mais não para eles poderem vir. Fui um bocado desagradável porque já estávamos a ver o fogo tão perto e não havia ninguém. Eles chegavam aqui e iam-se embora. Passei por eles lá em cima e eles sem fazer nada”. Vai ser uma noite de “plantão”, prevê.
A azáfama é grande. Sentada junto ao muro de uma moradia, Inocência Brás, já com uma idade avançada, observa tudo à distância. Passaram pelo menos cinco horas desde que as autoridades lhe disseram para sair de casa. Ainda fechou as janelas antes de sair, juntamente com o marido, que antes disso regou tudo o que podia até “faltar a água”. O casal saiu sem trazer nada, apenas os animais, incluindo a Fifi, uma cadela de pêlo castanho encaracolado que Inocência segura agora entre os braços. Cansada da espera, e ansiosa para saber como está a casa, mostra intenções de regressar, mas os familiares e vizinhos que se reúnem à volta demovem-na. “Está muito perigoso”, insistem. “Estou com medo de perder a minha casa. Uma coisa que me custou tanto, passei a vida inteira a trabalhar para conseguir a casa que tenho”.
“Não podemos deixar isto ir assim”: população mobiliza-se para combater o incêndio
Com os bombeiros a seguirem para as zonas onde o incêndio ganhou maior intensidade, é a própria população que trabalha, sem pausas, para garantir que as chamas não chegam perto das habitações. A maior parte das pessoas reúne-se junto a uma moradia, na Rua Manuel Henriques, cujo terreno em frente, e que acaba numa descida íngreme, tem vista para a serra, onde as chamas avançam sem parar.
É para esta zona que os moradores vão carregando baldes dos mais variados tamanhos para garantir que, se as chamas ameaçarem subir encosta acima, conseguem travá-las antes de chegarem às zonas de habitações. Neusa Mota, é uma de muitos que colaboram nesse esforço.”Os bombeiros estão a fazer tudo o que podem, a gente tem noção disso. São poucos e nós temos de nos ajudar uns aos outros”, explica em declarações ao Observador.
Já passam mais de quatro ou cinco horas desde que a jovem, que é assistente operacional da ação educativa, ali chegou. Veio de propósito de São Domingues de Rana, onde mora, para junto da tia e dos avós, que ali têm casa e onde cresceu. “São 27 anos aqui. Não podemos deixar isto ir assim”, sublinha.
São muitos os que ali se concentram, de diferentes idades, uns combatendo as chamas que espreitam na encosta, outros preocupados com os familiares que ali andam. “O que andas aqui a fazer”, pergunta um homem para uma mulher que passa. “Estou só a ver se o meu marido não morre”, retorna.
São já 21h quando um carro de bombeiros e da GNR se aproxima do local e começa a apelar aos moradores para que abandonem a zona. Enquanto começam a retirar-se, as labaredas vão subindo de intensidade, ameaçando chegar ao terreno junto da habitação. Pelo meio, população vai discutindo sobre a atuação das autoridades. “Eles não chegam a todo o lado”, defende um morador, enquanto se ouvem frases como: “Vieram aqui olhar e foram se embora”, ou “o Marcelo Rebelo de Sousa é que não vem para aqui”. Os próprios moradores foram ajudando a tirar cerca de dez residentes, incluindo pessoas mais idosas, que ainda se encontravam em casas nessa zona.
“A minha casa está agora em risco”, lamenta Carla. “Isto é muito complicado (…) Vou para casa já começar a embalar as minhas coisas para sair”, afirma, prevendo passar a noite com os filhos e despedindo-se com um “boa noite”. É por essa altura que as luzes dos postes de eletricidade na rua se apagam. Se é do incêndio, não sabe dizer, o que é certo é que já estão a falhar há pelo menos uma semana.
“Temos uma noite longa pela frente e estamos preparados”
Num posto de comando móvel estabelecido não muito longe, junto ao Hospital de Cascais, Carlos Carreiras, presidente da Câmara de Cascais, vai acompanhando todos os desenvolvimentos desde o início da tarde. É no interior de uma unidade de transporte que, vestido com um casaco laranja e cinzento da Proteção Civil, vai monitorizando tudo através de um ecrã digital onde é possível ver um mapa da área de Cascais. Uma linha a verde delimita a extensa zona que, após várias horas, continua a arder e, a vermelho, são muitos os pontos que se sobrepõem, representando as equipas de socorro no terreno.
Num ponto de situação à Rádio Observador, Carlos Carreira destacou aquele que se assumiu como o maior adversário desta tarde e noite: o vento. “Esteve com uma intensidade muito forte. Chegou a estar entre os 60 a 70 quilómetros por hora, neste momento abrandou ligeiramente, ainda assim com velocidades grandes”, afirmou. Momentos antes informava que numa das horas de pico chegaram a estar 863 operacionais, 239 veículos e 22 meios aéreos no local. Por volta das 22h, os números tinham reduzido, estando no terreno 658 operacionais, 176 veículos e apenas um helicóptero.
Questionado sobre as causas do incêndio, o autarca recusou especular, dizendo apenas que caberá às autoridades de investigação apurar o que se passou. “Essa certeza só pode ser dada pelas autoridades. Mas posso dizer que não há uma suspeita de crime. Não terá sido uma ação criminosa”, adiantou.
O posto de comando foi estabelecido junto ao Hospital de Cascais que, garante o presidente da câmara, nunca esteve em perigo, apesar de algumas notícias “alarmistas” que diz terem sido difundidas. “Não esteve, não está e não se prevê que venha a estar sob perigo”, garantiu. Acrescentou, no entanto, que foi afetado pelo fumo, mas que desde o primeiro momento foram tomadas medidas para colmatar esse problema.
Por esta altura, Carlos Carreira já tinha sido contactado pelo ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, pelo ministro da Saúde, Manuel Pizarro, e pelo próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Sobre o que esperava do combate durante a noite, era claro: “O que nos é dito é que temos uma noite longa e estamos preparados para isso. E mais do que isso o próprio dia de amanhã, que na melhor das hipóteses será um dia de rescaldo”, antecipa. “Estaremos em prevenção quer na noite de hoje, mas muito provavelmente nos próximos dois dias”.