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Entrevista a José Fragata. "Os hospitais são locais de emprego para delegados políticos"

Em entrevista ao Sob Escuta, o cirurgião José Fragata diz que gostava de ver uma DGS mais técnica e menos política, critica a falta de apoio a doentes não Covid e o relaxamento das restrições no Natal

José Fragata não gosta de apontar culpas quando vê os números de infeções por Covid-19 aumentarem, assim como as mortes — que compara a um avião de passageiros a cair todos os dias em solo português –, mas não hesita em identificar falhas no que deixou de se fazer. Mesmo que admita que ele próprio não queria estar “ao volante” do Ministério da Saúde numa altura destas.

Depois do “milagre” da primeira vaga, aquele que é um dos rostos mais conhecidos da Medicina em Portugal diz que faltou a “consideração” do risco que ainda aí vinha. Faltou também olhar para os outros países europeus e agir ainda antes do Natal e da Passagem de ano para evitar a hecatombe que agora se vive nos hospitais, e que não tem apenas reflexo nos doentes com Covid-19, mas também nos outros. No seu serviço, por exemplo, as listas de espera triplicaram no último ano.

O cirurgião reconhece que nem sempre é fácil o confronto entre a ciência e a política, que caminham em tempos diferentes. Ainda assim, esperava que a Direção Geral da Saúde tivesse tido, ao longo de todo o combate à pandemia, um papel mais técnico e menos político.

[Pode ouvir a entrevista completa no podcast Sob Escuta]

José Fragata: “Gostaria de ver uma Direção Geral da Saúde muito mais solta do ditame da política”

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José Fragata, que aos 67 anos já operou mais de 12.000 doentes, entre crianças e adultos, diz, aliás, que a política interfere demasiado no setor da Saúde. À frente do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta e do centro de transplantação pulmonar, o também vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa diz mesmo que os hospitais se transformaram em “grandes empresas públicas” e “locais de emprego para delegados políticos”, que mudam sempre que muda o Governo.

Há muito que José Fragata defende reconfiguração urgente do Serviço Nacional de Saúde, que considera que deixou de cumprir o seu papel de equidade no acesso aos cuidados de saúde. Para ele, parte do modelo ideal até já existe: os setores público, o privado e o social a funcionarem. Falta que os três setores andem de mãos dadas numa “concorrência sã” e que sejam de acesso a todos os cidadãos, não só por via do pagamento de um seguro ou dos impostos, como já acontece atualmente, mas também do financiamento do Estado para aqueles que não possam pagar esse acesso. Por outro lado, diz, o trabalho no setor público devia tornar-se mais atrativo para os profissionais de saúde, que saem à procura de melhores salários. O que implicaria que ficassem impedidos de prestar serviço simultâneo no público e no privado, como acontece atualmente com grande parte dos profissionais. Fora aqueles que decidem emigrar.

Como é que olha para a situação atual dos hospitais com serviços esgotados, ambulâncias à porta e profissionais completamente exaustos?
Esta é uma situação que nós tínhamos visto e ouvido e lido algures em março e abril, em Itália e, depois, em Espanha. E pensámos todos que nunca nos bateria à porta.

O que é que falhou?
Eu acho que nós estivemos muito bem na segunda vaga. Aliás, disse-o em alguns sítios, até com uma liderança muito boa do senhor primeiro-ministro, que teve um papel muito notável na altura. E eu acho que, da primeira vaga para a segunda — ou para a terceira que se segue, vamos ver onde é que vamos ficar –, o comportamento mudou. Nós, os portugueses, somos ótimos nos sprints, mas não somos bons corredores de fundo. Ficámos muito a olhar para o milagre português. Mas, verdadeiramente, acho que faltou a consideração do risco. E isso teve várias dimensões: teve, como tudo em Portugal, uma dimensão política; teve problemas de comunicação; e teve, para mim o mais gritante — não só em Portugal, também tem acontecido no Reino Unido –, o clash, que é o confronto nem sempre fácil entre a ciência e a política.

A ciência foi obrigada pela política, e pela emergência da necessidade de soluções, a produzir respostas rápidas de coisas para as quais não tinha resposta. E, como tantas vezes acontece em ciência, as respostas não foram todas uniformes.

Porque é que diz que houve um problema com esse confronto também em Portugal? Acha que os políticos não ouviram a ciência ou a ciência não foi suficientemente clara?
Eu acho que é todo o modelo. À política cabem as decisões de ordem social, de ordem económica, na representação daquilo que se pensa que é o bem dos povos, das sociedades. E a ciência tem um passo diferente e uma urgência diferente da política. A ciência normalmente é mais refletida e leva mais tempo. A ciência foi obrigada pela política, e pela emergência da necessidade de soluções, a produzir respostas rápidas de coisas para as quais não tinha resposta. E, como tantas vezes acontece em ciência, as respostas não foram todas uniformes. Por exemplo: a polémica, que foi quase um folhetim, sobre o uso das máscaras, que hoje é obrigatório — e que estamos quase a dever fazer um upgrade da sua qualidade. Os cientistas foram obrigados a produzir respostas que não tinham ainda, a um passo muito rápido, e os políticos precisavam dessas respostas para tomarem as suas decisões.

Parece-lhe que essa polémica das máscaras foi mais científica ou mais política?
Foi mais política. Quando nós queremos definir situações muito graves, temos um gabinete de crise que é, sobretudo, um gabinete de estratégia. Não é um gabinete de orientação política. As reuniões do Infarmed foram bem o exemplo do espetáculo da ciência e do espetáculo da política. Ninguém consegue decidir, ir ao encontro da necessidade emergente, daquela forma. E este conflito latente entre ciência e política, que aparentemente deviam estar alinhados, é um conflito que tem a ver com a exatidão e com a pressão do tempo. Porque, de facto, a política precisa de algumas decisões mais rápidas do que aquilo que a ciência lhe pode dar. Nós vimos isso, por exemplo, com o doutor Fauci, nos Estados Unidos, e como ele sobreviveu ao Trump e agora está na nova administração Biden. Realmente, ele tem o lado da verdade, mas ouvimos interpretações políticas muito diferentes dessa verdade. E dizia noutro dia um jornalista inglês, num artigo que eu li, que, quando se fizer a história de toda esta pandemia, entraremos numa coisa a que as pessoas chamam “the tragedy of denial”, que é a tragédia da negação. De facto, é muito mais fácil à política ouvir as boas notícias da ciência do que as más notícias.

José Fragata defende uma reforma profunda no sistema de Saúde, sem ignorar os setores privado e social

Observador

Mas parece-lhe que isso aconteceu, nomeadamente nessas reuniões do Infarmed, que houve resistência dos políticos em ouvir aquilo que não queriam ouvir?
A ciência não esteve toda em uníssono nas mesmas posições, basta ouvir os telejornais e perceber que, ao longo do dia, nos vários canais, vários cientistas, que são gente capaz, têm visões diferentes sobre a pandemia. Agora, quando tudo se tornou óbvio, as visões são muito mais convergentes.

E mesmo assim houve divisão em relação às escolas, por exemplo.
Como vê, exatamente o que os políticos fazem: “Nós tínhamos indicações contraditórias, logo não pudemos decidir”.

As próprias Direções Gerais estão hoje mais próximas da política do que da técnica. É um facto, não vale a pena negá-lo, e nós vimos isso muitas vezes.

Isso também não é uma boa desculpa?
É isso que eu estou a tentar dizer. O alinhamento entre a política e a ciência não tem de ser exemplar, mas devia ter sido um bocadinho melhor. Em crises verdadeiras, nós temos o Gabinete de Crise com meia dúzia de pessoas ao mais alto nível de responsabilidade — e as próprias Direções Gerais hoje estão mais próximas da política do que da técnica. É um facto, não vale a pena negá-lo e nós vimos isso muitas vezes.

Mas porquê? Porque são escolhidos por políticos e porque respondem às pessoas que os escolheram?
É fruto do tempo. Eu já tenho idade suficiente para me lembrar que as Direções-Gerais, ou, aliás, os diretores-gerais dos Ministérios eram quadros técnicos. Quando mudavam ministros ou altos dignatários do Estado, essas pessoas mantinham-se. Hoje em dia, a onda da política e da mudança política toca mais baixo na escala hierárquica. Uma Direção-Geral tem de ser eminentemente técnica ou científica e, obviamente, tem de ter políticas coordenadas com o Ministério da Saúde e com o primeiro-ministro.

A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, foi demasiado política e menos técnica? Alinhou demais com o Governo?
Eu conheço a doutora Graça Freitas muito bem, sou amigo dela, tenho um respeito muito grande por ela, mas eu gostaria de ter visto uma maior tecnicidade na Direção-Geral da Saúde. Mas não será um problema da doutora Graça Freitas, que é uma pessoa que eu muito prezo e respeito.

Mas Graça Freitas é a Diretora-Geral.
Eu sei que é a Diretora-Geral. Uma coisa são as pessoas, outra coisa são os cargos. E o que eu lhe digo é que gostaria de ver uma Direção-Geral de Saúde muito mais ligada à componente técnica e muito mais solta do ditame da política. Não tem a ver com o valor pessoal, mas com o modo como as coisas são feitas. Nós somos o momento e somos a circunstância.

As medidas que foram sendo tomadas parecem-lhe acertadas?
Houve uma ou outra teimosia, como já disse. É preciso dizer que a Direção-Geral de Saúde — e bem — alinha-se com a Organização Mundial de Saúde. O que também não é a 100%, nem sempre está certa. Nem sempre foi uma grande ideia. Dou o exemplo das máscaras. Penso que hoje é óbvio para toda a gente que usar uma máscara, num conjunto pessoas, em que as outras pessoas também estão de máscara — se a máscara estiver bem colocada e se, além disso, respeitarmos as distâncias e os cuidados de higiene, que toda a gente já absorveu —, a probabilidade de contágio e disseminação do vírus é menor. Este ano quase não ouviu falar da gripe, o próprio vírus SARS da Covid terá tomado o seu espaço, mas toda a gente anda de máscara hoje em dia. Aliás, a polícia repreende-nos e multa-nos quando não usamos máscara. E esta evolução não resultou de uma evidência científica necessária, foi uma opção política que teve alguma teimosia.

Essa polémica está ultrapassada. Mas aqui estamos nós, quase um ano depois do início da pandemia, e de repente temos hospitais completamente a abarrotar. Estas medidas, que foram sendo tomadas, umas mais apertadas, outras menos…
Deixe-me dizer uma coisa: a pior coisa que podemos fazer no momento de crise é, na altura da desgraça, tentarmos assacar culpados. Há um momento para agir, um para mitigar e, depois, há um momento para apurar responsabilidades. Não é esse o momento, agora é para fazermos melhor. Mas, tendo dito isto — e não faz parte da minha personalidade deixar de ser direto —, devo dizer-lhe que podíamos ter feito melhor o trabalho de casa. Podíamos ter sido mais proativos. Um comentador conhecido, que é uma pessoa distinta na televisão, noutro dia mostrava exatamente os momentos em que devíamos ter tomado algumas medidas, porque outros as tomavam.

Este filme desenrola-se em vários países a velocidades diferentes. Não há nenhuma razão plausível para nós, país civilizado, estarmos hoje no pior dos piores lugares da crise pandémica.

Paulo Portas.
Sim. E é muito claro, são números! Este filme desenrola-se em vários países a velocidades diferentes. Não há nenhuma razão plausível para nós, país civilizado, estarmos hoje no pior dos piores lugares da crise pandémica.

A Diretora-Geral da Saúde, Graça Freitas, durante a conferência de imprensa sobre o novo coronavírus (covid-19), realizada na Direção-Geral da Saúde, em Lisboa, 29 de dezembro de 2020. De acordo com o boletim da DGS, o país contabiliza hoje mais 74 mortes relacionadas com a covid-19 e 3.336 novos casos. MÁRIO CRUZ/POOL/LUSA

José Fragata diz que gostaria que a Direção Geral da Saúde tivesse um papel menos político e mais técnico

MÁRIO CRUZ/LUSA

Não aprendemos com o exemplo dos outros países?
Sinceramente, não acompanhámos o passo, ou o desenrolar, das evidências. Não interpretámos as mensagens mais ou menos subliminares ou claras para tomar as ações que deviam ser tomadas. É claro que o senhor primeiro-ministro hoje fala-nos na variante inglesa, que podia, em março, ter 20% de penetração, mas que, se calhar, neste momento tem 40, ou 50 ou 60. Não sabemos bem, porque nós não estamos a fazer ainda o genoma da maior parte dos testes — até 5%, que a UE recomenda, de testes positivos para genoma para percebermos qual é. Mas temos a noção que que alguma coisa na doença e no padrão mudou. Eu não gostaria de fazer aqui de comentador de bancada, porque nunca vi tanta gente a falar de virologia como agora, e eu próprio sou de cirurgia. Mas, de facto, alguma coisa mudou e aquele período antes do Natal e Ano Novo, por exemplo, ou a partir dos primeiros dias de dezembro, foi um período em que nós provavelmente podíamos ter feito qualquer coisa diferente. E já todos disseram isso: os políticos que lhes convém, os homens da ciência e os homens da medicina. Foi o período em que nós quisemos ser bons para os nossos cidadãos. E eu até percebo a vontade da política, mas há alturas em que o sermos bons e populares não ajuda os cidadãos. Nós hoje em dia temos uma situação dramática que é um jato Jumbo a cair todos os dias no solo português.

O período antes do Natal foi aquele em que podíamos ter feito alguma coisa diferente. Há alturas em que o sermos bons e populares não ajuda os cidadãos. Nós hoje temos uma situação dramática, que é um jato Jumbo a cair todos os dias no solo português.

É como se caísse um avião todos os dias.
São 200 e muitos doentes a morrer e é um número que vai demorar um mês até amortecer. Mas há uma outra crise de que nós não estamos a falar — ou, por outra, que nós não estamos a avaliar suficientemente. Nós temos a crise Covid os hospitais estão em sinais de rutura. Eu não estou na linha da frente e imediata, porque não estou a tratar doentes Covid, mas estou na outra linha que trata os doentes não Covid.

Em 2019, numa entrevista, disse que o centro de transplantação que dirige fazia 30 transplantes por ano. Quantos fez em 2020 com a pandemia e de que forma foi afetado?
Fez 35 ou 34, mas foi um esforço excecional e eu nem sei como é que conseguimos. Muito graças à equipa médica e cirúrgica que lá tenho, porque, de facto, os transplantes foram feitos em situações, às vezes, épicas. Mas fizemos.

E houve casos prejudicados pela pandemia?
Isso é uma conversa diferente… É que se nós acautelámos a pandemia na primeira vaga e reagimos menos bem ou mal na segunda vaga, onde estivemos verdadeiramente mal foi no acautelar aos cuidados aos doentes que não tiveram Covid. Esses doentes são os que estão hoje nas listas de espera, os que têm os seus diagnósticos adiados, porque o número de broncoscopias caiu, ou porque o acesso aos cuidados, em termos gerais, baixou. E essa crise já mata — porque nós sabemos hoje que cerca de 50% das mortes não são atribuíveis à Covid. Mas essa fatura vai pagar-se mais tarde. As mortes por Covid-19 são reportadas diariamente, mas estas mortes não são.

E era possível fazer diferente com uma pandemia?
Este é o pior momento para o shaming and blaming, para atribuir culpas e vergonhas. E eu nem queria, nem me disponho, mas nós temos de olhar factualmente. Esta é uma altura de uma enorme provação e as pessoas que estão a dirigir o país, nos seus vários sítios, podem ter ações certas ou erradas. Estão certamente a fazer o melhor, a História julgará o que fizeram. Eu dir-lhe-ei que, parece-me, nessa área podíamos ter feito melhor. Era previsível que viria uma segunda vaga. Depois do turbilhão que foi a primeira, onde nós estivemos muito bem, nessa altura era altura de ter elencado as necessidades de cuidados não Covid do país, ter abordado os grupos privados de saúde, os do setor social e do setor público, e ter feito, a 6 meses a um ano, uma contratualização de serviços. Não é de repente, não é forçada nem é requisitada, é algo que se chama de programação e planificação: saber quantas listas de espera havia e como é que essas listas de espera poderiam ser dirimidas, tratadas em tempo. Estas pessoas confiam no serviço nacional de saúde para os seus cuidados. E se o Serviço Nacional de Saúde, por alguma razão qualquer de emergência pandémica justificada, não consegue tratá-las, então temos de assumir e prever, ouvir as pessoas no terreno. O estado não tem obrigação de as tratar, tem obrigação de assegurar que elas têm tratamento.

O Serviço Nacional de Saúde tinha, em janeiro de 2020, quando esta crise começou, graves deficiências. Deficiências quer no acesso, no desempenho geral, no desempenho económico e na perda de pessoal.

Nós já vamos a essa tensão entre público e privado. O que é que este cenário a que estamos a assistir diz sobre o nosso Serviço Nacional de Saúde?
Diz o que nós já sabíamos, que o Serviço Nacional de Saúde tinha em janeiro de 2020, quando esta crise começou, graves deficiências. Deficiências quer no acesso, no desempenho geral, no desempenho económico e na perda de pessoal — não nos esqueçamos do êxodo dos profissionais, ainda este ano penso que foram 1.200 enfermeiros. O Serviço Nacional de Saúde, que é joia da coroa da revolução e dos 40 anos de modernidade desta República, há muito tempo que vem reclamando uma reforma verdadeira — que não é, obviamente, a reforma dos cortes. É uma reforma verdadeira, uma reforma que coloque o doente e o interesse do doente no centro do sistema.

Uma reforma que seja, como disse em 2019 numa entrevista, um “entendimento de regime”, que não esteja à mercê da “guerrilha entre partidos da direita e da esquerda”.
Voltamos outra vez à dicotomia entre política e a saúde. Qualquer um de nós, quando adoece, a preocupação que tem é se é grave, como e onde deve ser tratado, em quanto tempo pode ser tratado e se pode pagar esse tratamento. Portanto, são questões de acesso e de qualidade. Não tem muita preocupação se vai ao público ou ao privado. Hoje em dia, por razões que não vêm aqui ao caso, temos uma oferta pública e privada larga de serviços. Na interpretação constitucional, ao Estado interessa-lhe garantir que os cidadãos têm cuidados de saúde de qualidade em tempo útil e que quem não pode pagar também tem acesso a eles. Porque os cuidados de saúde, não nos iludamos, são pagos por todos nós. Quem paga a saúde em qualquer país são os cidadãos que contribuem para o PIB: podem pagar diretamente pelos impostos — no nosso caso ,financiando pouco mais de metade daquilo que a saúde gasta; podem pagar por seguros; ou podem pagar diretamente do bolso — no caso português, 26 ou 27%, que é quase o dobro daquilo que os outros europeus pagam.

O Professor defende que o Estado não poderá assumir o financiamento e a prestação integral desses serviços, porque não tem fundos. Se não for o Estado a financiar, que modelo propõe?
Nós temos uma mistura em Portugal. Nós devíamos ter um sistema Beveregiano, como o sistema inglês, que aliás foi desenhado numa altura de grande necessidade, após a II Guerra Mundial. Mas temos uma mistura disso com o sistema Bismarckiano. Temos uma mistura neste nosso sistema, no modo como somos financiados. Somos financiados por seguros do Estado, como a ADSE; somos financiados por uma taxa de seguros que já chega aos 30%; e somos financiados por poucos seguros de empresa e pelo SNS, que é pago pelos nossos impostos. Eu, por exemplo, pago um seguro privado de saúde, pago à ADSE 3,5% do meu vencimento e ainda desconto nos impostos para o SNS.

Quem tem apenas acesso ao SNS e não tem acesso a outros seguros de saúde fica prejudicado no acesso à Saúde?
É exatamente aí que eu quero chegar. É que o Serviço Nacional de Saúde — e esta parte da conversa, sim, é política, embora eu não seja político — foi desenhado como meio de equidade social, isto é, permitindo cuidados de saúde iguais, independentemente da capacidade de os pagar. Isto é basilar. Quando o Serviço Nacional de Saúde não responde totalmente às necessidades de saúde, pelas listas de espera, pelas dificuldades no acesso, as pessoas são obrigadas a recorrer ao setor privado da saúde.

O SNS é de equidade se chegar a todos, como seria desejável. Mas, não chegando a todos, está-se a transformar num meio de esforço desigual e, portanto, numa forma que não promove a equidade, mas promove exatamente o contrário.

E o facto de as pessoas recorrerem cada vez mais ao setor privado mostra que há cada vez mais falhas no SNS?
Claro. Do financiamento global da Saúde, 25 a 27% é dinheiro diretamente nos nossos bolsos, e esse esforço atinge os ricos, mas também atinge os pobres, porque os pobres, coitados, tentam zelar pela sua saúde, como é normal. O SNS é de equidade se chegar a todos, como seria desejável, mas, não chegando a todos, está-se a transformar num meio de esforço desigual e, portanto, de numa forma que não promove a equidade, mas promove exatamente o contrário.

Qual seria a solução? Termos seguros como seguros privados para financiar o SNS?
Eu não queria cair na redundância de dizer que a solução é simples, porque a solução não é simples em parte nenhuma. Mas, mesmo assim, dir-lhe-ei que temos modelos como da Alemanha, de França, ou modelos um bocadinho mais socializados, como nos países do norte da Europa, modelos que funcionam. E em nenhum destes países o tema da política à volta da Saúde está tão aceso como entre nós. E vou-lhe dar um exemplo muito simples: há uma questão de prestação e na prestação existe o Serviço Nacional de Saúde, existe o setor privado e o setor social. Não é eticamente aceitável excluir nenhum destes setores, que hoje em dia têm uma parte muito importante do tecido hospitalar. Eu não deixaria que os médicos e os enfermeiros trabalhassem em acumulação no setor público e no setor privado, colocaria estes setores em concorrência sã, os doentes iriam onde quisessem, quem estivesse nesses serviços não saberia se o doente era público ou era privado, cada serviço desses aceitaria a totalidade do tratamento dos doentes e, no final disto, restam-lhe dois aspetos. O aspeto do financiamento — que, de qualquer maneira, já está feito, porque é feito pelos impostos e é feito por seguros de saúde e do bolso cidadão; e depois o outro aspeto, que é aquilo a que o Estado se devia cometer: a regulação, controlo de acesso e de qualidade, promoção de acesso e de qualidade.

Sente que há um melhor cumprimento do controlo da qualidade dos hospitais privados, quando entram em Parcerias Público-Privadas, do que dos próprios hospitais públicos?
As PPP foram uma cedência do setor público ao setor privado.

Errada?
Não, teve boas experiências. Mas o pior de tudo é que, mais uma vez, mesmo face a bons exemplos, depois a política atravessa-se. Os hospitais — isto é um bocadinho difícil dizer — são grandes empresas públicas e também são locais de emprego para delegados políticos. E, de facto, o Estado vive mal com o outorgar da independência.

Para o médico, é urgente segurar os profissionais de saúde no setor público, tornando-o mais atrativo em termos salariais

MÁRIO CRUZ/LUSA

E com a concorrência?
Sim, também. O Estado vive mal, isso sim é uma visão política. Nós temos Estado demais na nossa economia e o estado é um espartilho. Dou-lhe um exemplo: é muito fácil licenciar um hospital público, mas é um processo muito complexo licenciar uma Parceria Público-Privada ou um hospital privado. Há um anátema de desconfiança permanente e, ao longo dos anos, foi-se criando a noção de que o que é público é bom e transparente e o que é privado deve ser visto com alguma suspeição. E isso é algo que tanto foi repetido que entrou nas consciências.

Quando vemos os relatórios do Tribunal de Contas, normalmente pedem às autoridades que sejam tão exigentes com os hospitais públicos como são com as PPP.
Mas sabemos qual é o resultado disso. Esta pandemia ensinou-nos várias coisas. Ensinou-nos que nós temos de ter um sistema, uma espinha dorsal de serviço ou de sistema de saúde e, de facto, ao Estado compete zelar por esse acesso à saúde — como, se calhar, cuidar da rede elétrica ou cuidar da rede de saneamento. Mas o Estado, se calhar, zelava melhor se não se comprometesse demasiado com a prestação. Ainda por cima, hoje em dia, a Saúde é uma indústria enorme, que envolve milhões e necessidades de gestão para as quais o Estado não está a sequer muito vocacionado. Portanto, não se trata aqui de retirar a obrigação do Estado de zelar pela qualidade e pelo acesso. É muito importante que o Estado consiga definir que a região de Bragança precisa de ter uma ressonância magnética, não sei quantas TAC, o serviço de cirurgia cardíaca ou o que quer que seja. Essa distribuição cabe ao Estado, prover cabe ao Estado, forçar os setores privados e social. Mas depois tem de deixá-los respirar. Neste momento, o Estado paga, presta e fiscaliza-se. São muitas funções para o Estado, que nós julgamos que é um Estado de bem.

Se quisermos ter um sistema de saúde moderno, esse sistema vai ter de integrar o público, o privado e o social. E é inexorável que isso vá acontecer.

Integrou uma comissão que desenhou alguns dos princípios orientadores para a Lei de Bases da Saúde. Muitos deles não foram vertidos na lei. Ficou desiludido?
Fiquei. Eu sou um técnico, mas, à medida que a lei vai andando, nos anos e na idade, nós às tantas vamos cruzando as mãos com a política, porque estas decisões acabam por ser políticas. Se quisermos ter um sistema de saúde moderno, este sistema vai ter que integrar o público, o privado e o social. E é inexorável que isso vá acontecer.

Então diria que o Governo está a tentar travar o vento com as mãos, por uma questão ideológica apenas?
Tenho de lhe dizer que sim. Eu acho que nós, infelizmente, temos demasiada política na Saúde e há decisões que não são feitas como se devem porque há um viés político forte. Querer hospitais públicos só, ou tomar o setor privado e o setor social como vestigiais, suplementares ou complementares pequenos, não pode ser para quem paga dos nossos impostos 5,5% do PIB para a Saúde, quando ela nos custa 9,8%. Isto é uma ambição demasiada para aquilo que estamos a pagar. Nós financiamos a Saúde pela via dos impostos ao nível que o México financia a sua própria Saúde. Mas ela não nos custa isso. Custa-nos, sim, 9,8% do PIB. Por isso, nós estamos a subfinanciar a Saúde.

Estado tem hoje dificuldade em atrair quadros para prestação exclusiva, ou a tempo inteiro, não só médicos como na gestão e na enfermagem.

É médico num hospital público, no Santa Marta, é ainda médico na CUF. Sei que uma das suas maiores preocupações tem a ver com a incapacidade que o setor público tem em reter talento. Como é que isso se resolve, sobretudo entre os mais jovens?
Era preciso ter a coragem de fazer uma verdadeira reforma. Uma parte muito importante tem a ver com as pessoas e carreiras. O Estado tem de ser atrativo. O SNS pode dizer, até com alguma arrogância, que é o eixo central da Saúde e que não compete com o setor privado — mas, de facto, compete. Compete porque os doentes procuram o serviço público e o serviço privado, compete porque os profissionais de saúde, às vezes, trabalham de manhã num lado e à tarde noutro. E compete pela opinião pública. Verdadeiramente, o Estado, que tem um manancial de patologia, mas já não tem o manancial de meios técnicos que devia ter, tem hoje dificuldade em atrair para prestação exclusiva, ou a tempo inteiro, quadros não só médicos como na gestão e na enfermagem. Porque um médico especialista leva para casa dois mil e poucos euros por mês e, convenhamos, isso é mais ou menos metade daquilo que se paga na Europa. Estes 1.200 enfermeiros que saíram terão saído do seu país porquê? Por questões técnicas, por dificuldades de carreira e ou por ganharem pouco. A capacidade de reter talentos faz-se por uma mistura de projeto profissional e de compensação financeira. Eu sou do tempo em que se trabalhava no hospital de manhã à noite. Entrava no Hospital de Santa Cruz de manhã e saía quando era possível sair, às vezes no outro dia. Mas havia projeto, éramos melhor tratados do que somos agora. Estou a terminar a minha carreira, mas ou cuidamos de uma reforma ou daqui a uns dias vai haver um êxodo ainda maior.

E em relação à própria formação em Medicina, o que acha dos privados? Este ano foi aprovado o curso na Universidade Católica, com algumas reservas da Ordem dos Médicos.
Não tenho nenhumas reservas ideológicas a esse respeito. Acho que o ensino da Medicina se faz onde houver profissionais competentes — com vontade para isso e que sejam professores — e material clínico (doentes). Não vejo nenhum óbice a que os hospitais privados ou do setor social façam ensino da Medicina, obviamente integrados em universidades que podem ser públicas ou privadas. Podíamos agora pensar sobre a necessidade de cursos boutique ou cursos pequenos de Medicina. Do ponto de vista conceptual, não tenho nada a opor. A minha única condição para requisito é a qualidade, porque a formação de médicos ou enfermeiros é algo de uma responsabilidade muito grande, podemos estar a formar pessoas que depois não nos vão tratar capazmente.

José Fragata dirige o Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta e já operou mais de 12 mil pessoas (DR)

D.R.

Mas formá-los no setor privado não é incentivá-los ainda mais a procurarem os privados?
Deixe-me dizer que é curioso que alguns privados tenham enveredado pelo gosto de terem internos. As especialidades cirúrgicas vejo-as como mais problemáticas, até por questões de casuística, mas as especialidades médicas não vejo como problema. Porque é que os privados têm interesse em ter ensino? Porque se completam um bocado na sua própria relevância e, tendo material clínico, tendo doentes e profissionais, é também uma forma que têm de captar pessoas e de almejar futuros quadros. Se nós conseguíssemos ter a coragem de separar hospitais públicos e privados e colocar as pessoas… Diga-me uma coisa: acha que lhe permitiam trabalhar de manhã na Rádio Observador e à tarde na TSF? Já propôs isso na sua direção? A resposta seria “não”. Eu não devia estar a trabalhar de manhã num grupo público e, à tarde, num grupo privado. Devias estar a trabalhar num grupo só, a tempo inteiro. E, de facto, não é que não seja impossível, não é que seja pecaminoso, não é que seja pouco sério. É por uma questão dedicação. Acho que o Hospital de Santa Marta teria interesse em que estivesse lá mais de dez horas por semana, porque eu sou contratado pela Universidade. Nunca me fizeram nenhuma proposta muito concreta noutro sentido.

Em que é que se traduziria esse interesse? Não apenas no seu caso, mas genericamente.
No interesse de progressão de carreiras, no interesse salarial também.

Se tivesse essa proposta, deixava o setor privado?
Essa proposta nunca foi feita nem vai ser feita, portanto eu não vou te de ter insónias sobre isso. Eu estarei sempre no setor onde tiver melhores condições para tratar os meus doentes e onde conseguir ajudar melhor o meu próximo, satisfazendo minimamente o que é legítimo: ter uma vida confortável e dedicar-me àquilo de que gosto. Quando há bocadinho estava a falar de países europeus, outro dia falava com um colega meu na Noruega — que tem um Serviço Nacional de Saúde — e perguntava como era cirurgia cardíaca privada lá. Ele respondeu-me que não existe, porque respondem em 6 dias, no Estado. No dia em que eu conseguir dar aos meus doentes em Santa Marta uma resposta de seis dias ou duas semanas para cirurgia cardíaca, eles certamente não vão ter interesse nenhum em despender qualquer esforço financeiro para o lado.

No dia em que eu conseguir dar aos meus doentes em Santa Marta uma resposta de seis dias ou duas semanas para cirurgia cardíaca, eles certamente não vão ter interesse nenhum em despender qualquer esforço financeiro para o lado.

Qual é a média de resposta agora?
Eu preferia não abordar esse tema, mas diria que, depois da pandemia, nós triplicamos a lista de espera.

São quantas pessoas?
Temos cerca de 380 pessoas à espera.

Casos graves e prioritários?
Sim, eu já falei com o secretário de Estado sobre isso — que, aliás, foi da maior prestabilidade, mas há coisas que são insurmontáveis. Tentamos priorizar a lista de espera e rever todos os dias. Estamos a viver uma situação bastante grave. Eu pretendo ser muito justo e muito benevolente, por justiça, porque eu não gostaria de estar de estar ao volante do Ministério da Saúde neste momento. A crítica fácil é o mais simples, mas depois temos dados objetivos. Quando eu lhe digo que a Saúde precisa de uma reforma que não são medidas cosméticas, eu assumo isso. A Saúde precisa de uma reforma séria, que tem de deixar a política de lado e reter dessa política a chamada cobertura universal — e mais nada. Mas, ou nós estamos dispostos a pôr o dinheiro que a Noruega põe no Serviço Nacional de Saúde e não temos lista de espera, ou então só nos resta, verdadeiramente, enquanto é tempo, englobar todos os prestadores de saúde em rede, combinar acordos de preços, e tentar o mais importante, que é que cada cidadão que precisa o tenha em tempo. E se o cidadão não puder pagar, o Estado ou um sistema de mutualidade tem de garantir.

“Houve doentes que terão morrido ou ficado menos bem porque eu não estava à altura das circunstâncias, mas negligência nunca”

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