Bjarke Ingels é um “starchitect” (arquiteto estrela). Em 2016 foi nomeado pela Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo, o seu nome está associado a projetos que não passam despercebidos a ninguém, como o Copenhill, a estação de tratamentos de resíduos em Copenhaga, na Dinarmaca, com uma pista de esqui no topo. Recentemente tornou-se uma das caras do Fuse Valley, o arrojado “vale tecnológico” que a Farfetch vai fazer em Matosinhos até 2025. Apesar do enorme sucesso, em entrevista ao Observador diz que no dia de abertura de qualquer projeto que é difícil “não olhar para as batalhas perdidas”.
Apesar de falar em derrotas, é difícil encontrá-las na carreira de Ingels. Com apenas 46 anos, o arquiteto líder do BIG (Bjarke Ingels Group) está por detrás de edifícios e projetos que têm sido falados em todo o mundo: a Lego House, a “casa da Lego” na sede da empresa, em Billund, na Dinarmarca; dois arranha-céus em Nova Iorque (EUA); a nova sede da Google; cidades na Lua para a NASA; transportes de alta-velocidade para Elon Musk (o Hyperloop na Arábia Saudita), entre muitos outros. Além disso, lançou livros, apresentou conferências e até tem episódios de vários documentários dedicados ao seu trabalho.
Farfetch apresenta “vale tecnológico” que vai abrir em Matosinhos
Por detrás do talento, refere que também tem inspiração portuguesa, como Eduardo Souto de Moura ou Álvaro Siza Vieira. Criticado ou adorado, Bjarke e as suas obras não ficam indiferentes a ninguém. Por detrás de tudo, há tecnologia: “O futuro vai pertencer àqueles que consigam navegar tanto o virtual e o real, o físico e o digital”, afirma. Quanto ao futuro, há quem possa lembrar que ainda lhe falta ganhar um prémio Pritzker. Sobre isso, o arquiteto ri-se e diz apenas: “Sem comentários”.
Alguma vez se arrependeu de algum projeto que fez? Se sim, fez alguma mudança?
A verdade é que, quando um projeto está terminado, é muito raro que não esteja cheio de batalhas perdidas e cedências desconfortáveis, mas necessárias. No dia de abertura é difícil não ver as batalhas perdidas. Claro que ainda estamos numa fase inicial com o Fuse Valley, mas passámos os últimos anos a solucionar todos os tipos de problemas e podemos sentir, às vezes, que todo o projeto está a voltar para trás. Olhando também para tudo de uma perspetiva holística, também fizemos alguns acertos e cedências, mas definitivamente parece a visão que tivemos há dois anos. Porém, agora bem mais madura, mais realística e a caminho de acontecer.
Qual foi a sua principal inspiração para o Fuse Valley?
Definitivamente, o canal do Vale do Douro e a fusão do Porto e de Matosinhos com a topografia do vale do rio.
E qual é que foi o maior desafio neste projeto?
Basicamente, do ponto de vista de um artista, o Porto é uma das principais capitais da arquitetura na Europa. Chegar a um sítio com tanto carisma e confiança urbana e tentar arranjar algo original é incrivelmente difícil. Acho que, nesse sentido, o projeto é também influenciado pela topografia e urbanismo que vemos como parte única desta região.
Falou do seu sócio em Barcelona, que é português, e Portugal tem vários arquitetos conhecidos, como Souto de Moura ou Siza Vieira. Acompanha o trabalho de alguns arquitetos portugueses?
Sim, sigo. Sou da geração que cresceu a estudar tanto Siza como Souto de Moura. Da última vez que estive no Porto tive o luxo de ter um ótimo almoço com o Eduardo Souto de Moura. O Aires Mateus [não referiu qual dos dois] é um amigo meu. Quando se tem um fonte tão incrível como Siza e Souto de Moura, há uma base incrivelmente fértil para futuras gerações.
O que pensa da arquitetura portuguesa?
Creio que a arquitetura portuguesa tem sido capaz de combinar algo que é… (pausa) Uma espécie de compromisso entre moderno e contemporâneo, algo abstrato e com plasticidade, e mantém-se enraizada num vernáculo local. Acho que, com Siza, as formas abstratas materializaram-se com os recursos disponíveis em resposta ao clima ibérico. E, com o Souto de Moura, é algo mais como modernismo internacional, mas que se enraizou numa apreciação e amor pela cultura, vernáculo, materiais e paisagens locais. Têm sido uma inspiração para quem quer ser moderno e contemporâneo. Não significa que um prédio tem de ser igual em todos os sítios. Uma coisa pode ser unicamente portuguesa, estar enriquecida pela tradição e, mesmo assim, dar forma ao futuro.
Com as Lego Towers (que não chegaram a sair do projeto), e também com a Lego House, utilizou os blocos para construir as maquetes. Utiliza peças de Lego para construir ou pensar noutros projetos?
Já utilizámos Lego. Não é nenhum segredo que adoro Lego. Acho que é uma ferramenta incrível para a criatividade. A razão pela qual os escolhemos para o projeto que referiu e para a Lego House é porque tivemos de construir um projeto dentro das limitações económicas. Uma maneira de alcançar maior qualidade a um custo menor é repetir tanto quanto possível. Pensei: e se repetir o mesmo modelo de forma igual, posso fazê-lo de tal forma que se torna quase um pixel ou um voxel numa estrutura orgânica? De certa maneira, utilizo a modularidade e semelhança como uma forma para criar a liberdade e diversidade. Creio que mostrei as casas acessíveis com o mesmo modelo. Porém, com a mudança gentil que criei de uma forma orgânica baseada na modularidade e na repetição. Por isso, quase que lhe pode chamar criar algo extraordinário fora do ordinário.
Falando na modularidade. Em 2015, também falou do Minecraft. Não sei se também é fã do jogo.
Nunca o joguei, mas percebo os seus poderes.
[Um vídeo em que Bjarke Ingels explica a sua visão da arquitetura e faz analogias com o popular videojogo Minecraft]
Incentiva outros arquitetos e aspirantes a arquitetos a usar estas ferramentas. Como peças de Lego, Minecraft, talvez até o The Sims, para pensarem em novos projetos?
Sim, acho que há um momento interessante em que a formação daquilo a que se chama o metaverso, esta ideia de um gémeo digital do planeta Terra. Acho que o futuro vai pertencer àqueles que consigam navegar tanto o virtual e o real, o físico e o digital. Por exemplo, uma empresa que utilizamos muito para apreciar os nossos projetos enquanto os estamos a estudá-los é algo chamado Enscape, que usa o Unreal Game Engine. Ou seja, essencialmente estamos a utilizar um programa informático para fazer videojogos para tentar sentir o que vai ser trabalhar num local. Claro que se consegue algumas coisas com uma maquete física. Pode-se fazer outras com amostras físicas de materiais. Porém, às vezes é preciso entrar nelas.
Também utiliza realidade aumentada, realidade virtual, modelos 3D. Como é que essas tecnologias facilitam o seu processo criativo?
Acho que a tecnologia é uma ferramenta como qualquer outra e creio que se está a tentar dar forma a algo que ainda não a tem. Dando uma forma ao futuro, é preciso tentar abordá-la da mesma maneira que um jornalista tem de olhar para uma história de ângulos diferentes. Cada vez que se escolhe um novo meio ou uma nova tecnologia, isso dá uma nova perspetiva que revela possibilidades e expõe problemas que poderão não se ver só num desenho bidimensional ou apenas numa imagem a três dimensões ou num modelo físico. Por isso, sempre que se muda de perspetiva, isso revela aspetos do projeto que não se podia ver noutros meios.
Nem todos os seus projetos são consensuais. Às vezes, recebe bastantes críticas. Como é que lida com isso?
Pode dizer-se que as críticas são a nossa forma de colaboração. Tenho 500 colegas. Quando temos uma reunião de design sentamo-nos e criticamos. Às vezes, as críticas resumem-se a apontar coisas que são más ou que precisam de melhorias ou coisas que não estão a funcionar. Utilizamos isso para melhorar aquilo de que não gostamos ou para coisas que são interessantes, ou novas, ou que funcionam. Nesse sentido, as críticas são uma parte indispensável do ofício. A questão é: o que é preciso para que criticar seja útil? Para isso, tem de se ser informado. Se essa ligação não existir, as críticas são apenas julgamentos aleatórios ou expressões superficiais de opinião sem se ter tido a energia para perceber. Para se fazer projetos significativos temos de tomar decisões de design com opiniões bem sustentadas e, para isso, precisamos de informação. É preciso perceber que, por definição, o entendimento precede a ação. Se não se compreender, não se pode agir significativamente. Esse é o seu trabalho como jornalista: garantir que, antes de as pessoas opinarem, estão bem informadas.
Falou dos 500 colegas que tem. Ao todo, tem quatro ateliers em todo o mundo. É referido como um “starquitect“. Como é que separa a faceta de empresário da de arquiteto?
É muito simples: não sou o presidente executivo do BIG, sou o diretor criativo. Penso que, para mim, tudo tem a ver apenas com arquitetura.
Ganhou já vários prémios. Contudo, ainda lhe falta um prémio Pritzker (conhecido com o Nobel da arquitetura). Imagina-se a ganhar um? Se sim, quando?
(risos) Sem comentários. Acho que a parte significativa de um prémio é que oferece à instituição a hipótese de destacar valores ou perspetivas para a profissão que parecem importantes. Nesse sentido, é interessante ver os poucos discursos que são feitos porque mostram como é que a profissão evolui.
[Abaixo, o episódio da série “Abstract: The Art of Design” dedicado a Bjarke Ingels, no qual fala sobre os seus principais projetos]
Falou do projeto que está a fazer com a NASA para a Lua. Contudo, olhando para a Terra: o que é que tem de mudar urgentemente nas cidades?
Dependendo de como se conta, o espaço de construção é responsável por 13% ou até 40% das emissões de gases de carbono. Isso significa que as cidades são, por definição, uma grande parte do problema. Consequentemente, são também uma parte incrível da solução. Se queremos chegar aos objetivos do acordo de Paris, estamos a 29 anos, a contar a partir de agora. Qualquer pessoa que tenha feito um projeto massivo de arquitetura sabe que, tipicamente, demora 10 anos. Quem quer que tenha feito um grande plano urbanístico sabe que pode facilmente demorar 29 anos. Neste caso, estamos a falar de toda a humanidade e de toda a Terra. Mais do que tudo, mobilizar essa energia de transformação é a prioridade número um.
Ainda está ligado ao Hyperloop?
Sim.
Quando é que o vamos ver? E, se o virmos, vamos alguma vez ter o Hyperloop em Portugal?
Não sei se o vão ver em Portugal. Acho que os candidatos mais prováveis estão no Oriente e no Médio Oriente. Os lugares que já têm infraestruturas de alta-velocidade que funcionam bem são os menos prováveis de o ter primeiro. Da mesma maneira que se viram muitos lugares na Ásia e em África a saltar a necessidade de cabos telefónicos e avançar diretamente para tecnologias sem-fios, também veremos algumas regiões na Ásia e no sul da Ásia a saltar os carris e as linhas de alta-velocidade e irem diretamente para o Hyperloop.
Somos um dos países da Europa com o maior número de arquitetos per capita. O que diria a futuros arquitetos, principalmente os portugueses, para um dia, talvez, poderem ter o sucesso que tem?
(risos) Acho que é poderoso passar algum tempo a pensar porque é que se está a fazer isso. De certa forma, no livro “Formgiving” (nome do último livro, que também é a palavra dinamarquesa para design e que significa, literalmente, “dar forma àquilo que ainda não a tem”), mostramos que se tem o poder de dar ao futuro não só forma, mas também um presente. Claro que há sempre uma necessidade dissimulada, a razão de se ser desafiado a envolver a um espaço e atividade e criar uma estrutura. Mas, independentemente do que perguntem, questionem o que é que seria fantástico oferecer a um pequeno canto do futuro. Esse poder do presente torna-o muito mais poderoso e valoriza muito mais aquilo que se faz. O que um jovem arquiteto tem de se perguntar a si mesmo é: que presente quero dar ao mundo com o meu formgiving?