Maria-rapaz desde cedo, com energia para dar e vender. Da infância no bairro de Alcântara herdou a humildade e guardou recordações de tempos felizes, na casa da Tété, onde morava, de favor, mais os pais e a irmã. Eram seis ao todo, o quarto apenas um.
Cedo Marina Mota trocou as bonecas pelas árvores e os jogos pelos microfones onde, aos 10 anos, subiu para vencer o Festival da Canção Infantil que lhe valeu a gravação do primeiro disco. Foi a rampa de lançamento para a “Menina de Alcântara” que queria, na verdade, ser assistente de bordo mas cujos voos foram desviados para outros palcos.
Primeiro o fado, mais tarde as tábuas do teatro e depois a televisão, onde, na década de 90, atingiu o auge da sua carreira e entrou na casa de todos os portugueses com programas como “Marina, Marina” e “Ora bolas Marina”. E, quem não se lembra, “Grande Noite”.
As primeiras férias chegaram só aos 30 anos, o casamento com Carlos Cunha foi a uma segunda-feira por ser o único dia de folga. Estiveram casados 14 anos. Ela diz que ainda o ama. Assim como diz amar também Oceano. Mulher de paixões, culpa-se pelo fim das relações e não consegue evitar a frustração.
Confiante em palco e exigente, nunca deixou de ir trabalhar por estar doente e até chegou a subir a palco, com tuberculose, e a sair para cuspir sangue porque “o espetáculo não pára, cara amiga”.
Não admite que se metam na sua vida. Gosta de ir ao Casino mas nega o vício, que chegou a fazer capas de revistas. Garante não dever nada a ninguém, nem mesmo ao Estado a quem já pagou o que tinha a pagar. Sem grandes filtros, odeia hipocrisia. Pelo contrário, adora comédias, mas não é de riso fácil.
Em entrevista de vida ao Observador, Marina Mota, que completou este sábado 55 anos, fala ainda da união da família, da dor da perda e das vezes que pensou em desistir da vida de artista.
7 outubro de 1962. Nascia, em Alcântara, Marina da Conceição Ribeiro Mota. Que memórias guarda da infância?
Ótimas memórias. Fui criada numa casa que só tinha um quarto e uma sala. O meu pai namorava com a minha mãe — eu fui ao casamento deles com nove meses –, queriam casa e não tinham. E a minha Tété, que foi uma segunda mãe para mim, ofereceu a dela. Era uma pessoa incrível. Os meus pais passaram a viver no quarto dela e na sala dormia a Tété, uma filha da Tété, que tem mais 14 anos que eu, e eu. Entretanto nasceu a minha irmã. Todas na mesma sala.
Todas. Ainda me lembro de haver um móvel de onde se puxava a cama, tínhamos de arredar a mesa de jantar e dormíamos duas para baixo, duas para cima. Era fantástico. A casa de banho era no exterior, no pátio, com água fria, tomava banho num alguidar grande e a minha mãe mandava-me com água de uma panela por cima da cabeça. Isto para explicar que a minha infância fez de mim a pessoa que sou hoje. Não tenho medo nenhum da humildade e fui muito feliz. Aprendi a partilhar: só havia uma laranja e era um gomo para cada um, mas nunca passei fome, nada disso.
Isso durante quanto tempo?
Quando comecei a trabalhar, fui ajudando a família porque era a minha obrigação. Entretanto faleceram os meus vizinhos do lado e os meus pais alugaram a casa do lado e abriu-se um arco. Ficou o dobro.
Nascida e criada num bairro, brincava muito na rua?
Era absolutamente maria-rapaz. Nunca fui de bonecas. Brincava às escondidas, pendurava-me nos candeeiros de rua. Principalmente no Natal porque fazíamos as árvores com os pinheiros naturais e quando acabava o Natal a nossa diversão era pendurarmo-nos nos candeeiros e atirarmo-nos para os pinheiros fofinhos amontoados lá em baixo.
Disse-me que tem uma irmã.
Tenho duas: uma mais velha, da parte do casamento do meu pai, com quem não cheguei a viver, e a minha irmã Susana que é a minha metade.
Um relação forte.
Sim. Porque se ela não respirar eu não respiro certamente. Houve uma fase muito chata em que eu, com 16 anos, era quase uma senhora, muito madura, e ela era uma menina de 10 e contava tudo aos meus pais, aquela coisa de irmãs. Por exemplo, eu fumava — fumo desde os 10 anos, sei que isto é completamente antipedagógico, mas costumo dizer que estive 10 anos sem fumar desde que nasci — e ela dizia que ia contar aos pais. Mas quando eu tinha 18 e ela 12 já era quase mãe dela.
Havia muita cumplicidade?
Sim e ainda existe. Aliás, ainda vivemos juntas. Quando a minha vida começou a melhorar comprei uma casa para os meus pais e depois uma casa para mim em Lisboa. E quando me mudei para Cascais comprei uma casa para mim, outra para os meus pais e uma para a minha irmã. Agora vivemos todos dentro da mesma propriedade com três casas, uma para cada um.
A família é muito unida?
Sem dúvida. É o meu pilar.
Alfacinha de gema tinha de começar por cantar fado?
É uma coisa muito engraçada. Costumo dizer que não escolhi nenhuma das minhas profissões. Elas é que me escolheram a mim. É evidente que o fado estava muito presente, porque o meu pai adorava fado, ouvia muito fado, ia a tasquinhas e coletividades e eu ia com ele. Mas o meu pai não cantava, era afinado mas não tinha voz nenhuma. E a minha mãe é uma pessoa completamente desafinada, nunca cantou nada.
Conte lá como surge a “Miúda de Alcântara”?
A Helena Santos, que já cantava, e era a “Miúda de Odivelas”, gravou um disco. Comecei a ouvir e a cantar coisas dela. Um dia um vizinho meu que cantava fado e o meu pai insistiram para eu cantar. Tinha para aí oito anos. Gravei o meu primeiro disco com 10.
E depois passou de uma canção numa tasquinha para um disco…
Fui para a [escola] Francisco Arruda dos nove para os 10 anos. Apesar da maluquice, era muito boa aluna. E tive uma professora, a Júlia Babo, uma colega artista, que era professora de expressão dramática, e comecei a ir ouvi-la a gravar discos. Cada vez que ela ia gravar, ia com ela. Ela levava um termo de café para ela e um de leite com chocolate para mim. (risos) E, por graça, inscreveram-me no primeiro Festival da Canção Infantil, feito pela Casa da Imprensa. Venci. Depois inscrevi-me no Mercado da Primavera, com um júri de peso — Alfredo Marceneiro, Maria da Fé, Helder de Castro — e decidiram dar-me o prémio.
O prémio que era o disco?
O prémio do Festival da Canção era a carteira profissional e a gravação de um disco. A carteira era impossível ter porque foi antes do 25 de Abril e uma pessoa na minha idade não podia ser profissional, mas gravei o disco. E comecei logo aos 11 anos a fazer espetáculos para as comunidades de emigrantes nos Estados Unidos, Canadá e por aí fora.
Mas não ia sozinha…
Com a família. Era repartido porque era uma oportunidade de a minha família viajar. A primeira vez fui com o meu pai, a segunda vez fui com a minha mãe, depois fui à Bélgica e ao Brasil com a Tété.
E a escola não ficou para trás?
Só fazia isto aos fins de semana ou nas férias grandes ou da Páscoa.
Nessa altura sonhava fazer vida da música?
Não. Queria ser hospedeira de bordo, que agora se chama assistente, porque adorava andar de avião. Depois, como comecei a andar muito de avião, perdeu a graça. Continuava a querer estudar, mas não me identificava nada com o período pós 25 de Abril e a forma como se lecionava. Cresci um bocadinho rápido demais. Reconheço que os meus 15 anos fossem os 18 ou 19 de agora e custava-me ter professoras que parecia que estavam a dar aulas a atrasados mentais. Ainda me inscrevi no 10.º ano, andei lá mais um mês ou dois, mas não deu para mim. Parecia que andava num infantário. Resolvi fazer uma pausa. Mais tarde inscrevi-me no Cambridge, para fazer um curso de línguas, porque gostava de falar muito bem várias línguas, gostava de ser intérprete, mas foi quando me convidaram para ir para o [Teatro] ABC e ficou-se por ali.
Como surgiu esse convite que acaba por se a sua entrada no teatro?
Nesse período de pausa, depois de vir da minha primeira fadistice no Brasil em 79, fazia umas temporadas no Casino de Espinho ou da Póvoa. Estava a fazer uma temporada na Tipóia, no Bairro Alto, e o César de Oliveira, o senhor Eugénio Salvador e o empresário do ABC foram-me ouvir e convidaram-me para ser atração nacional, para cantar.
E acabou actriz também?
Durante os ensaios, as pessoas acharam-me graça e puseram-me a fazer uma preparação do final do segundo ato. Entretanto uma colega adoeceu e como sabia os textos de toda a gente pediram-me para a substituir.
Mas é sobretudo quando chega à televisão, com programas como “Marina, Marina”, “Ora Bolas Marina” ou “Bora lá Marina” que se afirma e passa a ser reconhecida pelo grande público. A década de 90 foi o auge da sua carreira?
Sim. Mas é bom que as pessoas percebam que nunca foi uma coisa de vedetice ter o meu nome nos programas. Quando fui convidada pelo Carlos Cruz para fazer o “Marina, Marina”, foi ele que decidiu chamá-lo assim e quando transitei da RTP para a SIC foi quase obrigatório o programa ter o meu nome. Acho que o único programa que não teve o meu nome foi o “Era uma Vez”. E depois quando fui para a TVI, a mesma coisa.
Conseguia sempre articular bem a televisão com o teatro? E o fado?
O fado nunca saiu da minha vida. Sempre o reconheci como a minha música. Sou uma lutadora pelas coisas nas quais acredito. O que deixei foi de o cantar com regularidade.
E o teatro? Deu para conjugar com a televisão?
Não. Assim como fiquei quase uma década na Revista só com uma folga à segunda-feira, depois achei que precisava de descansar. As minhas primeiras férias foram aos 30 anos. Já estava a precisar de parar um mês, porque nem quando engravidei isso aconteceu. Mas surgiu o convite para televisão. As coisas encadearam-se e acabei por não descansar também.
Com Carlos Cunha sempre por perto. Aliás, é difícil pensar na Marina Mota desligada de Carlos Cunha.
Juntos desde os ensaios da minha primeira Revista, logo em 1982. Conheci-o provavelmente no final de 81, início de 82. Começámos a namorar em abril, chegámos a vias de facto em junho, engravidei em julho e casámos em setembro. A uma segunda-feira que era o único dia de folga. Não havia tempo. Ou era ou não era. A brincar digo que a minha filha deve ter sido feita num camarim do ABC. (risos)
Foi fácil trabalhar durante tantos anos com o seu marido?
Acho que isso pode ter sido uma das razões do desgaste do nosso casamento. Estivemos casados 14 anos, mas na verdade é como se tivessem sido 28 porque estávamos 24 sobre 24 horas juntos. Não tínhamos nada para contar um ao outro de novo quando chegávamos no final do dia a casa. E isso desgastou a nossa relação enquanto mulher-homem.
Da parte dos dois?
Há sempre alguém que desiste primeiro. Não sou uma pessoa de me acomodar ao morno. Gosto de tudo quente. Preciso muito de paixão. Preciso que as coisas mexam. Aquela coisa de acordar todos os dias à mesma hora não é para mim. Preciso de pessoas com iniciativa. Mas isto tem a ver com a minha personalidade e a minha vida, que tem sido sempre o puxar a carroça. Ir sempre à frente. Mas chega a uma altura que estou sempre à espera que alguém cuide. Que seja o contrário.
E quando isso falha…
As coisas transformam-se. Atenção, tenho um amor infinito por Carlos Cunha e amamo-nos mutuamente. Digo isto com muita facilidade. Amo o meu ex-marido como amo o Oceano [outro ex], como amo a minha mãe e os meus netos. Não estou é apaixonada.
Já tinha lido declarações suas semelhantes noutras entrevistas. Não é muito vulgar vermos ex-casais a darem-se tão bem.
Tive a sorte de viver com duas pessoas muito bem formadas e o que aconteceu entre nós foi o desgaste de uma relação.
Com Oceano também se apagou a chama?
É até ridículo dizer isto, mas não há motivos de mágoa. Há apenas a mágoa de termos terminado a relação. Só alguém completamente insensível é que não sente mágoa por acabar uma relação que tinha tudo para dar certo. Acho que o defeito é meu.
Por ser a tal mulher de paixões?
Sim. E porque sou uma mulher enérgica, porque as pessoas acham que gosto de remar o barco, mas não gosto. Remo porque se não remar ele afunda. Gostava que alguém remasse por mim ou ajudasse a remar. E quando chegamos ao ponto de: “Para onde vamos de férias? Não sei, resolve tu”. E passa um ano, passam dois, três… epah resolve tu desta vez. São pormenorzinhos que não são de todo graves, mas desgastam. Estive com o Oceano há dois dias e brincámos. E voltámos a questionar-nos: como é que foi possível? Temos tudo em comum. Ele é uma pessoa super divertida, gostávamos de dançar kizomba, gostávamos de ir ao teatro, gostamos de praia, e como é que deixámos que a nossa relação morresse. Isto é triste. Custa muito.
Voltando à sua relação com Carlos Cunha. Em algum momento os problemas pessoais subiram a palco convosco?
Não. Pode ter havido momentos mais difíceis. Principalmente para nós, que fazemos comédia, mas não. Com mais nó ou menos nó, o público não se deve ter apercebido.
E como foi subir a palco na estreia da sua filha [Erika, também atriz]? Qualquer pai ficaria nervoso. Mas vocês estavam os dois em palco com ela.
Tive de aprender a controlar os nervos, precisamente para transmitir calma. Costumo ser a apaziguadora de quem está excessivamente nervoso.
E como foi com ela? Sentiu-a nervosa?
Sim, ainda hoje. A cada espetáculo fica a passar texto, sai muito ao pai. Estivemos a fazer espetáculo nove meses e não houve dia nenhum que eles não ficassem ali a passar o texto. Eu divirto-me.
A Marina não passa texto?
Não. Se estiver segura no trabalho, se estiver segura que tem graça, que o público se diverte, que estamos a fazer o nosso melhor, não tenho motivos para ficar insegura. Sou confiante. Fui cantar no Caixa Alfama e se me perguntar se estava nervosa, digo que estava muito. E assumi-o. Lá está, por insegurança. É que a representação é uma coisa que tenho vindo a fazer e se alguma coisa correr mal corre porque não sou capaz de fazer melhor. Posso ter uma branca, mas não mando. Agora, a voz é um instrumento e um músculo que precisa de ser exercitado. E o meu não é. Não faço concertos com regularidade. Cantei no Caixa Alfama em 2016, fiz mais dois concertos e agora voltei. Trabalhei com colegas músicos que nunca tinham tocado para mim. Tivemos um ensaio para ensaiar 15 temas, uma hora e 10 de espetáculo, e fomos num dia de vento.
Tem cuidados com a voz?
Zero. Adoro bebidas geladas e fumo antes e depois e durante.
Já enrouqueceu na revista?
Já.
E depois?
Não se contorna. Assume-se. Lembro-me no espetáculo com o La Féria que me pediu para fazer playback total e eu recusei-me. O público não paga para me ver abrir a boca. Acho uma fraude. Não gosto de playback. Que Deus me perdoe, um dia pode ter que ser para justificar o final de uma rábula, mas será sempre pontual. Se não puder cantar, falo. Já levei três ou quatro injeções de cortisona porque acordei afónica. Adoeci, tive uma tuberculose pulmonar e fui fazer três espetáculos nesse dia. Saía do palco e cuspia sangue para um balde. O espetáculo não pára, cara amiga. Nunca deixei de ir trabalhar por estar doente.
Voltemos novamente aos anos 90. Foram os anos áureos da sua carreira. Dava cartas. Mas depois seguiu-se um grande interregno. O que aconteceu?
Não lhe sei explicar.
Deixaram de aceitar as suas propostas?
Foi exatamente isso.
Como lidou com isso?
No primeiro ano soube-me muito bem, depois decidi fazer um disco, que também ninguém ligou nenhuma, mas nunca parei de trabalhar. Continuei a auto-produzir-me, fiz imensas revistas, espetáculos de itinerância. Televisão é que não, não sei porquê. Custou-me, mas lidei perfeitamente. Vi isto a acontecer com todos os meus colegas, não sou diferente de ninguém. Agora vem o lado que tenho de pensar para não dizer de forma que pareça estúpida. Isto pode acontecer, porque os picos na carreira acontecem, mas há coisas que não são lógicas. Foi a Marlene que disse, não fui eu, que estive durante a década de 90 a dar cartas. Então como é que uma pessoa que dá cartas é dispensável? Não sei. Até hoje nunca percebi. E continuo a não perceber. Não sei se é um alguém, se são alguéns. Mas que é estranho, é estranho.
É um mundo cão, o de uma artista?
É. Mas a minha personalidade ajuda. Não fazem de mim parvinha, porque se há coisa que não sou é parva. Quando é para dizer coisas boas tenho de ter mais cuidado senão parece que estou armada em vedeta. Mas, de facto, devo ter sido a única produtora de televisão que conheço que não apresentou um flop televisivo. Nunca produzi nem representei um programa que não fosse líder de audiências. Logo, não percebo porque deixei de produzir. E os argumentos que usavam nem sei explicar: falta de orçamento, mas é mentira porque produzi muitos anos em televisão e sei ver custos e também ninguém me apresentou preços mais baixos.
Culpa do aparecimento dos reality shows?
Sim, talvez, mas depois disso já houve outros programas.
Mas não foi só na televisão que esteve vários anos sem aparecer. Também houve um interregno no Parque Mayer.
O Parque Mayer era a minha casa quando havia três teatros a funcionar — o ABC, o Variedades e o Maria Vitória. Saí de lá em 90, para descansar e fazer os meus espetáculos, e voltei em 97, porque o Parque começou a correr menos bem. Fui lá fazer coprodução com o Helder Costa. Depois voltei a sair porque tinha outras coisas e voltei em 2007 e fiz mais dois espetáculos.
Em 2010 recebeu o convite de Falabella para entrar na telenovela “Aquele Beijo”.
Nessa altura estava a fazer o “Três em Lua de Mel”. O Falabella já tinha trabalhado com o Joaquim Monchique, a Maria Vieira, a Carla Andrino e queria contratar duas portuguesas. Tinha contratado a Maria e pediu referências. Mas já várias pessoas me disseram que tiveram influência na minha contratação, pelo que não sei a quem agradecer.
Como foi trabalhar no Brasil?
Foi ótimo. Gosto muito do Brasil. É o país para onde mais viajo de férias. E o meu passaporte mostra. Estar lá a trabalho foi uma experiência muito interessante, porque estava habituada a andar confortavelmente como turista sem ninguém me olhar e depois era conhecida e fui nomeada para o Prémio Revelação da revista Contigo. Achei muito interessante. Conheci gente maravilhosa e adorei a experiência.
Se lhe pedisse para escolher entre as tábuas do teatro e os estúdios de gravação qual escolheria?
Não escolheria, gosto de tudo.
Mas as tábuas são mais emocionantes do que os estúdios?
São, porque é ali que sentimos as coisas. O que fiz hoje em televisão [participação no programa Queridas Manhãs, da SIC] não faço a mínima ideia do feedback que tem, não sei se gostaram ou não. No caso das novelas também só sei quando ando na rua. Que emoção é que consegui passar às pessoas? Não faço ideia. No teatro é muito mais estimulante: dizer uma graça e ouvir a plateia a gargalhar, acho que não há coisa melhor. Por exemplo, nesta peça [“Tempestade num Copo d’Água”], em nove meses, não me lembro de um único espetáculo em que o público não se tenha levantado todo no final.
E o que se sente nesses momentos?
Apetece-me ir lá dar um beijinho a cada um deles.
Dentro do teatro, é a Revista o seu género?
É. E é o género mais difícil de fazer, não há dúvida. Não é para todos. Na Revista temos de ter capacidade para fazer comédia, revista, drama, dar informação, passar mensagens de cidadania, criticar social e politicamente o país e o mundo, cantar se possível, ter poder de improviso. E temos de contar pequenas histórias. Enquanto que numa peça mais comum vestimos uma personagem e temos duas horas para fazer com que o público acredite naquela personagem, na Revista temos cinco minutos e eles têm de acreditar nela naqueles cinco minutos, chorar com ela, rir com ela. Tenho mudanças de 24 segundos. Sair de cena, mudar de penteado, mudar a roupa e a maquilhagem. É o meu recorde.
Mas a Revista continua a ser um pouco o parente pobre do teatro.
É muita má vontade. As pessoas de poder são muito elitistas. Acham que a revista é muito popular e do povo, à semelhança do que acontecia com o fado. São desconhecedores, porque nunca se sentaram na plateia a assistir e apreciar.
Começou no fado. Tem 15 álbuns editados. Entristece-a que as pessoas associem mais a Marina à representação?
Não. Percebo perfeitamente. É natural que as pessoas me conheçam a partir do veículo que lhes é mais fácil, que é a televisão. E na tv a minha carreira de atriz tem muito mais peso. A outra deixou quase de existir.
E aí dentro?
Aqui dentro não. Sou fadista de alma. Mesmo calada, sou fadista. Adoro fado, adoro ir a uma casa de fados ouvir os meus colegas. Gosto de ouvir uma guitarra portuguesa. Fui sempre uma lutadora pelo fado e fico muito contente que seja Património Imaterial da Humanidade.
O que é que mais a irrita?
Quem fala sem saber.
E as notícias que vão expondo aspetos pessoais da sua vida?
Acho execrável. São uns parasitas.
Atormentam-na?
Foram passando a atormentar menos. Obviamente também depende do peso das notícias. Na década de 90, quando estava na moda e tudo era pretexto, fui ganhando uma carapaça. Quando me separei do Carlos escreveram-se mares de tinta, era capa por todas as razões, tive 350 mil relações com pessoas que nunca vi nem conheço.
Fala da década de 90, mas recentemente tem tido muitas notícias más a fazer capas de revistas. Desde logo o vício do jogo…
Mas isso já foi há um tempo. Estava de férias na Tailândia e tive pena, porque lá não havia casinos e andava a ressacar, a bater com a cabeça nas ondas.
Gosta apenas de ir ao Casino?
Curioso, gosto de ir ao Casino do Estoril. Ninguém me vê no Casino de Lisboa.
Mas porquê o do Estoril?
Eu explico. E por isso é que eu acho engraçado quando falam do vício do jogo, porque se tivesse o vício do jogo, se estivesse na Figueira 15 dias a trabalhar ia lá todos os dias e estive a trabalhar no Casino da Figueira com a peça do Filipe La Féria “Portugal a Gargalhar”, e depois com a outra, e não me lembro de ter entrado uma vez no casino. Se entrei fui lá beber café e saí. Ao Casino de Lisboa fui não sei se duas ou três vezes. Em relação ao Estoril, moro ali perto, estou sozinha, e é um sítio que se acabar de jantar e se quiser beber um café é confortável para mim estar sozinha ali.
Porque gosta do ambiente?
Não gosto. Porque quando saio e se estou sozinha é porque não quero conversar. Se só vou beber um copo e relaxar a cabeça vou para ali, em frente a uma máquina, ponho dinheiro e jogo. É isto que acontece.
Mas nunca sentiu que podia estar ou ficar viciada?
A primeira vez que fui foi o Carlos que me levou lá. Vou ao casino há 35 anos, de repente lembraram-se que eu ia ao Casino. Agora, se me pergunta se acho que é uma coisa saudável e se gostava de ir menos vezes? Sim, gostava. E às vezes dou por mim a pensar: o que é que estou aqui a fazer? Estou aqui a gastar. Mas, atenção, nunca gasto o que não posso. Gosto muito de andar com a minha cabecinha levantadinha. Não devo nada a ninguém. Devia ao Estado e já não devo.
Mas ainda aparece nas listas de devedores.
Ai é? Mas então há aí qualquer coisa mal. Não, não devo. Então vão rever as listas. Ainda bem que fala que vou pedir à contabilidade para verificar.
Quer dizer que já liquidou as dívidas que tinha ao Fisco e que também fizeram capas de revistas?
Sim. O meu problema fiscal, que toda a gente falou como se fosse um grande segredo, surgiu em 1999 e começou por métodos de presunção. O Estado presume que, se passei a fatura número um, dois e três no valor de 20 mil contos e se a fatura quatro não está lá, o Estado presume que essa é igual às anteriores.
E não apresentou a quarta, é isso?
Eu não apresentava, não passava faturas. Agora é que existem técnicos oficiais de contas e têm responsabilidade na escrita. Anteriormente, os contabilistas podiam fazer a maior vigarice que não lhes acontecia nada. Foi o que me aconteceu a mim. O meu contabilista, que se chamava Aristeu de Oliveira e Sousa e que já morreu, chegou a passar faturas minhas e da minha sócia para receber IVA de outros clientes e o meu problema fiscal começou assim. A sorte é que quando foram fazer cruzamento de faturas perceberam que nesse período não podia ter trabalhado para lado nenhum, porque enquanto estive na SIC tinha um contrato de exclusividade. Facilmente se chegou à conclusão de que não era verdade.
Facilmente, quer dizer. Demorou anos.
Sim, só agora. É que depois é muito engraçado, porque temos de impugnar os processos e pagar advogados. E podemos ter razão, mas depois quem me vai ressarcir do prejuízo?
Mas quando é que se apercebeu do problema?
No Casino. Esse senhor chegava a descontar cheques meus e da minha sócia, que passávamos à Direção Geral do Tesouro para pagar impostos. Punha corretor. No casino um dia disseram-me que andavam a circular cheques meus. Foi aí que retirei a escrita a esse senhor e pedi auditoria à minha contabilidade a uma empresa que ainda hoje trabalha comigo. A primeira vez que fui às Finanças, o senhor António Silva, ainda me lembro do nome do senhor, disse-me que esse contabilista já tinha estado preso por fraude a um senhor que quase perdeu uma farmácia.
Ainda assim, não se livrou da dívida.
Não, não. E nalguma parcela de dívida é natural que tenha tido culpa. Não estou a dizer que fui sempre certinha. Agora que isto começou por aí e me fui deixando envolver, começou. Para fugir de uma coisa que não tinha culpa, meti-me noutras que nem sei porque me meti, porque alguém me aconselhou, e uma pessoa é estúpida. A determinada altura cometi uma ilegalidade. Mas já paguei, a não ser que me vá surgir mais qualquer coisa que não sei.
Sente que essas notícias influenciam a opinião que têm sobre si?
Os que não são burros não lêem essas revistas. Aquilo não tem nada de interessante. E perdoem-me a quem chamo burros que lêem as revistas para se entreterem, também sou ou era burra quando estava nos consultórios e abria para ver bonecos. Mas não tenho nada a ver com a vida de ninguém e quando digo que a entidade que mais respeito é o público, só lhe devo o meu respeito enquanto profissional e enquanto cidadã para dar bons ou maus exemplos. Ou seja, no que diz respeito ao Fisco até percebo, agora no que diz respeito à minha vida pessoal e dos meus não lhes devo qualquer tipo de informação e acho isso ridículo, comigo e com qualquer pessoa. Não leio revistas. Não compro uma revista, para mim já tinham ido todas à falência desde 1996.
A exposição da família é o lado negro da profissão?
É. É péssimo. Acho horrível e só desejo que lhes toque um dia uma coisa parecida, mas isso só vai acontecer se chegarem a ser importantes um dia.
Já pensou alguma vez em desistir da vida de artista?
Já, já, em muitas fases. Exatamente por isso. Ao longo da profissão questionei-me, em muitas alturas: Isto é para quê? E estou preocupada com isto porquê? E para quem? Uma das vezes em que me estava a questionar sobre tudo decidi viajar sozinha. Fui para Cabo Verde, para o Sal, precisava de praia, de sol e de estar sossegada — jurei para nunca mais, morri de tédio. E quando estava no aeroporto de volta para Lisboa, lembro-me de ter escrito uma frase que rimou: ‘a idade dos porquês chegou tarde, aos 43’. De repente chega uma pessoa que se chama Michael e que me diz: “Você é a Marina?”, com um sotaque meio estranho. “É só para dizer que sou alemão e vivo na Ericeira com a minha família e sou seu fã”. E eu disse lá para cima: se me estás a dar um sinal… eu entendi. Achei aquilo divertido.
Foi a resposta aos porquês?
Foi. Pensei que pode não ser toda a gente, mas ainda há gente que gosta de mim e enquanto houver alguém que goste talvez me vá mantendo por aqui. Gosto muito da minha profissão.
O “brilho” da profissão, fascina-a?
Evidente que a luz me entusiasma, mas separo bem a fama do sucesso. Quero lá saber de ser famosa, quer ser uma pessoa de sucesso. O sucesso faz-me bem, a fama nem por isso.
Os portugueses estão habituados a vê -la rir e a rir consigo. Despindo as vestes de atriz o que a faz soltar uma valente gargalhada?
Não rio com facilidade, não sei porquê. Quando me chegam os textos até sou chata porque nunca acho graça a nada. Mas rio-me das coisas completamente disparatadas, do insólito. Com a minha irmã, porque é muito doida e diz disparates. Divertem-me os amigos.
Gosta muito de estar com amigos?
Gosto imenso e é disso que estou com saudades. Por exemplo, não janto com o João Baião, de quem gosto imenso, há um mês ou dois. E com a Natalina José também. Sou muito de abraços e de beijos. Beijo todos os meus amigos na boca. Na cara dou a qualquer pessoa que não conheço. A si como é que a cumprimentei hoje?
Com um beijo na boca teria sido estranho…
E estranho para mim é cumprimentar os meus amigos da mesma forma que pessoas que não conheço. Tal como cumprimentava o meu pai, como cumprimento a minha mãe, os meus netos.
E o que é que a irrita? O que a tira do sério?
A falta de civismo, em qualquer circunstância. Aí vem-me o bairro de Alcântara à cabeça.
O que é que isso significa?
Significa que digo palavrões, às vezes. Mas são palavrões porque alguém um dia disse que o eram. Na verdade são apenas uma junção de letras que a mim me aliviam. Se me magoar e disser chiça fico na mesma.
Qual foi o último episódio das suas fúrias?
Olhe, aconteceu-me noutro dia. Considero-me uma pessoa civilizada a conduzir, mas ia atrás de uma atrasada mental na faixa da esquerda a fazer sinal e a pessoa não saía e ainda reclamou. Dá-me logo vontade de tirar o sapato e atirar para o carro da frente. Outra coisa que me irrita são as pessoas que atiram beatas para o chão ou pela janela do carro. Isso irrita-me . E irrita-me entrar num sítio dizer bom dia e parece que ninguém ouve. Também digo logo: retiro o que disse.
Tem mau feitio?
Nesses casos tenho.
E irrita-se muito a trabalhar?
Não me irrito excessivamente. Mas normalmente é por questões de incompetência.
É muito exigente?
Sou. Porque também cumpro a trabalhar para os outros. Neste momento sou empregada de outras pessoas e se o meu horário for às 8h00 e sentir que não chego a horas aos dois minutos para as oito ligo a avisar. E não levo um texto para o plateau. Se tiver 30 cenas para gravar levo as 30 cenas na cabeça. Não levo papéis. Ninguém está ali a passar texto comigo. Portanto, se cumpro também têm de cumprir comigo.
Isso criou-lhe alguns atritos?
Nenhuns, nunca. Tenho para aí 45 anos de profissão e há dois colegas que não suporto. Agora juntou-se mais um, são três. Já lhes disse, eles sabem, e costumo avisar os colegas. Sou muito frontal. Hipocrisia, cinismo não é para mim. Nunca gostei e cada vez menos.
Alguma vez foi injusta?
Não serei a melhor pessoa para responder mas, sinceramente, não me parece. E se alguma vez aconteceu certamente pedi desculpa. Pondero muito antes de dizer alguma coisa. Sou desbocada quando estou a conversar, mas para soltar já é preciso haver um historial. Ou é uma coisa de momento, uma falta de respeito.
Como são os seus filtros?
São muito fraquinhos, de facto.
E isso já lhe trouxe dissabores?
Sim, às vezes pagam-se faturas caríssimas.
Era muito próxima do seu pai. Perdeu-o há 10 anos.
Somos todos pegados uns aos outros na minha família. Foi doloroso. O meu amigo já me tinha pregado uma partida com a minha Tété que foi das pessoas que mais amei na vida, assim como a minha mãe, porque foi um período muito prolongado. (lágrimas) Não percebo como é que uma pessoa com um coração daqueles, sofre assim. Foi muito injusto, nem sei há quantos anos foi. O único sentimento de remorso que tenho na vida é em relação a ela. Achei que estava a fazer bem em colocá-la num lar próximo de casa, porque a minha mãe já não tinha capacidade para tomar conta dela. Íamos lá todos os dias e buscá-la ao fim de semana, mas se fosse hoje não o teria feito. E não volta a acontecer com mais ninguém da minha família, se Deus quiser. Com o meu pai não aconteceu. Ele teve um AVC e ficou em estado vegetativo. Eu zanguei-me lá para cima e disse: o meu pai não vai ficar assim, porque se ele tiver um período de lucidez vai ser horrível. E foram apenas 15 dias. Preferi assim.
E como lidou com a morte?
Digo-lhe boa noite todos os dias, falo com ele na mesma. Digo olá pai. Se vou cantar digo que é para ele. Lembro-me da voz dele, do sorriso. Tenho pena que a memória que mais me vem à cabeça — e logo a seguir varro-a e quero outras dele a rir — seja dele na cama de hospital e eu a falar com ele e ele fez uma expressão… isso não me sai da cabeça.
Nasceu e cresceu no bairro, mas tem vivido fora de Lisboa. Não sente o espírito bairrista e vontade de morar em Lisboa?
Sou muito de cidade para ver espetáculos, para ir beber um copo à noite. Mas não sou uma mulher da cidade, sou uma mulher de verde, de água e passarinhos, de andar descalça e de mexer na horta. Adoro andar no meio das árvores, sem saltos e sem maquilhagem e com cabelo apanhado, marimbando-me para a roupa.
Para terminar, há alguma coisa que alguém lhe tenha dito ao longo do seu percurso profissional que a tenha marcado?
Há muita coisa. Não consigo eleger só uma frase, felizmente já tive a sorte de me dizerem coisas maravilhosas. Umas até tão excessivas que acho que não as mereço.
Conseguia viver sem o carinho do público?
Não sei, porque nunca vivi sem ele. Tive sorte. Tenho uma coisa que me aconteceu que acho que foi das coisas mais bonitas que pode acontecer a alguém. Estava a fazer o “Ora Bolas Marina” e a minha colega Raquel Maria disse-me que tinha passado por uma pessoa no Restelo que lhe tinha dito que gostava de falar comigo porque um filho tinha tido um acidente de viação e tinha ficado em estado vegetativo e só reagia quando me ouvia fazer de “Bitucha” [personagem do “Ora Bolas Marina”]. Era o Gonçalo. E é engraçado porque fui lá a casa e ele lá estava e ouvia-me falar a fazer de “Bitucha” e ria, reagia. É maravilhoso, não há nada que pague isso.
https://www.youtube.com/watch?v=BqUQUMMRXgg
Se tivesse de descrever a sua vida neste momento seria uma ação, um drama ou uma comédia?
Uma ação.
E se pudesse escolher?
Seria uma comédia.