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Produtor de documentários, Pedro José-Marcellino costuma viajar para locais de condições exigentes. Aqui, em Yellowknife, no norte do Canadá, em 2015
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Produtor de documentários, Pedro José-Marcellino costuma viajar para locais de condições exigentes. Aqui, em Yellowknife, no norte do Canadá, em 2015

Fotografia cedida por PJ Marcellino

Produtor de documentários, Pedro José-Marcellino costuma viajar para locais de condições exigentes. Aqui, em Yellowknife, no norte do Canadá, em 2015

Fotografia cedida por PJ Marcellino

Entrevista. O aventureiro português que vai simular a vida em Marte

Pedro José-Marcellino nasceu em Lisboa e estará 2 semanas num deserto americano a simular uma missão a Marte. É um viajante e contador de histórias que passou por 70 países e subiu ao vulcão do Fogo.

Jornalista, escritor, cronista, produtor de cinema e cientista político são os vários títulos profissionais com que se pode apresentar Pedro José-Marcellino. Mas este luso-cabo-verdiano é sobretudo um contador de histórias e é isso que estará a fazer nas próximas semanas.

Nasceu em Portugal, tem fortes raízes em Cabo Verde, reside atualmente no Canadá, mas já viveu, trabalhou ou passou por 70 países, ilhas e territórios, e continua a viajar pelo mundo em trabalho. Um homem de sete ofícios: já foi conselheiro político e de comunicação em África, mas também produtor de documentários com Inuits no Canadá ou baleeiros e pescadores na Islândia.

Ouça aqui a entrevista.

O português que vai “estar” duas semanas em Marte

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A próxima viagem não o leva muito longe de casa. De Toronto, no Canadá ao Utah, nos Estados Unidos, serão um pouco mais de três mil quilómetros. Mas, enquanto lá estiver, vai simular que está a muitos milhões de quilómetros de distância, em Marte. E logo ele, que cresceu nos anos 1990 a pensar que ser astronauta era uma coisa que só estava ao alcance dos americanos e soviéticos.

Como se vive em Marte sem sair das Montanhas Rochosas? A missão que vai testar saúde mental, comunicações e respostas de emergência

O Observador vai acompanhar a missão MDRS 238 em exclusivo ao longo das próximas duas semanas, mas por agora apresentamos-lhe Pedro José-Marcellino, que será o primeiro oficial da missão (além de documentarista) e que no fato de astronauta leva a bandeira da União Europeia — e também do Canadá e Cabo Verde.

Nunca acreditou que podia ser astronauta, mas vai cumprir o sonho de ser piloto

Vais finalmente embarcar nesta missão. Sentes-te nervoso? Entusiasmado? Como te descreverias?
Sinto-me entusiasmado. Nervoso, não, mas com um quê de antecipação e de dúvida relativamente aos próximos dias. [Por causa da pandemia de Covid-19, a missão, prevista para janeiro de 2021, pode ser cancelada ou adiada novamente.]

Qual vai ser tua missão nesta experiência científica que vai ter lugar no deserto do Utah?
Entrei nesta missão como documentarista e jornalista da missão. Inicialmente, a minha função nesta tripulação de oito pessoas era a de fazer uma crónica de toda a missão — diariamente e da missão completa. Ao longo dos últimos dois anos, em que temos estado em treino e depois em compasso de espera por causa dos adiamentos sucessivos [por causa da pandemia], tivemos várias alterações na tripulação. Gradualmente, a minha função passou a ser também a de primeiro oficial — dando apoio à comandante da missão em todos os aspetos logísticos e organizacionais. Depois, a minha missão pessoal (que é a original) é documentar aquilo que vamos estar a fazer, por via multimédia, áudio, vídeo e texto.

Mas não vais ser a única pessoa a contar histórias nesta missão, certo? Segundo sei, terás outra contadora de histórias, embora com um ângulo um pouco diferente. Quem é ela e o que vai estar a fazer?
A artista residente nesta missão chama-se Agnieszka Pokrywka, é polaca e vive em Helsínquia. Ela trabalha — dentro daquilo que eu entendo — na [interseção] entre os seres humanos e as bactérias e vai criar uma história baseada naquilo que a tripulação for fazendo na missão, mas também nas culturas de bactérias que ela vai estar a criar. No fundo, são peças artísticas que descrevem a missão de uma forma bastante diferente da minha, obviamente.

Além disso, temos a nossa comandante [Sionade Robinson], que entrou, inicialmente, como jornalista da tripulação e que faz investigação sobre liderança em missões de exploração com uma perspetiva histórica, mas que agora vai aplicar essas características de liderança dos exploradores à exploração espacial.

"Desde miúdo, ao contrário da maior parte das crianças, não queria ser nem bombeiro nem polícia, lembro-me de querer ser veterinário ou piloto aviador."
Pedro José-Marcellino

E como é que tu aterras nesta missão?
É uma boa forma de o perguntar. Diria que foi praticamente por coincidência — mas, se calhar, nem tanto. Por coincidência porque: estava um dia a ver uma coisa qualquer na internet e apareceu-me à frente um anúncio de candidatura para este projeto [da fundação Mars Society, no Utah]. É um programa que trabalha mais com instituições, sobretudo de investigação e universidades, mas que, umas quantas vezes por ano, abre candidaturas a pessoas externas que trazem uma variedade de capacidades técnicas e profissionais. Decidi concorrer para as áreas em que pensava que podia encaixar: liderança logística e jornalismo.

Portanto, foi através de um anúncio, é isso?
Sim, através de um anúncio. Devo dizer que há, muitas vezes, anúncios para astronautas publicados por aí. Vi um há poucos dias numa revista inglesa.

Também tiveste o sonho de seres astronauta?
Desde miúdo, ao contrário da maior parte das crianças, não queria ser nem bombeiro nem polícia, lembro-me de querer ser veterinário ou piloto aviador. Na altura — estamos a falar dos anos 80 — era difícil para mim poder concretizar ser piloto aviador porque estávamos numa época em que ainda havia poucos computadores a bordo e a minha visão não era 20/20 — portanto, não era uma possibilidade real. Acho que por volta dos 16 anos conclui: “Isto não vai funcionar.”

Mas tinha — e continuo a ter — um interesse tremendo pela aeronáutica e ia seguindo sempre tudo o que acontecia em relação ao espaço. Para um miúdo que cresceu nos anos 80, portanto no auge da “star wars” — a política, não o filme — e da Guerra Fria, era muito claro (para mim e para toda a gente) que os astronautas ou eram americanos ou eram soviéticos. Ponto final. Nunca ninguém terá sonhado, penso eu: “Olha, um astronauta português”. Portanto, apesar de ter tido esse fascínio, não penso que alguma vez tenha realmente sonhado em ser astronauta. Pareceu-me sempre uma possibilidade muito remota.

Numa reunião do júri internacional dos Jovens Repórteres Para o Ambiente, em Copenhaga, Dinamarca (2018) — Fotografia cedida por PJ Marcellino

Fotografia cedida por PJ Marcellino

Mas nessa altura vias o teu futuro ligado à ciência ou de alguma forma ligada ao espaço?
Ao espaço, nem tanto, mas à ciência, talvez. Comecei muito cedo em grupos ambientais e em jornais na minha escola secundária. Depois, na universidade e em algumas revistas portuguesas e, ainda mais tarde, em revistas estrangeiras, sempre na área da sustentabilidade e do ambiente. Através de um programa que é bastante popular em Portugal, os Jovens Repórteres para o Ambiente [da Associação Bandeira Azul], acabei por participar desde muito cedo na comunicação de ciência e, portanto, estive sempre um bocado envolvido nesse âmbito, o que acabou por se propagar para a minha vida profissional durante bastantes anos.

Com que idade começaste nos Jovens Repórteres para o Ambiente?
Teria 15-16 anos, salvo erro. Portanto, a partir dessa altura, estive sempre a trabalhar, de alguma forma, até hoje nas áreas limítrofes à ciência exata. A minha formação profissional levou-me noutra direção, na direção das ciências humanas e económicas. As ciências ambientais acabaram por ser um interesse que vem dos meus anos de adolescência e são algo que adiciono ao meu perfil, mas que não é central naquilo que faço.

Quando fiz 40 anos — portanto, há muito pouco tempo, porque não conto os anos da Covid-19 [risos] —, lembro-me de ter tido uma conversa com a minha mãe, sobre coisas que queria ter feito e que já tinha feito, e a minha mãe disse-me: “Parece-me que te falta uma.” Referia-se ao meu sonho de criança de querer ser piloto. Nesse mesmo dia, decidi que não era tarde nem cedo e, portanto, ingressei na Escola de Pilotos.

No meio desse processo — não sei se por causa pesquisas no Google, que vê tudo aquilo que andamos a fazer —, apareceu-me este anúncio para uma missão análoga a Marte. Candidatei-me, pensando: “Isto não vai resultar.” Mas, às tantas, parece que estavam exatamente à procura de uma tripulação em que houvesse uma maior presença de contadores de histórias do que de cientistas (como costuma haver na maior parte das missões). Eles [a fundação Mars Society] têm um ímpeto muito grande de comunicação com o público sobre aquilo que é a ciência da investigação espacial e investigação sobre Marte.

Se aparecerem turistas, tratam-nos como marcianos e entram em modo de emergência

Fala-nos de ti: nasceste em Portugal, cresceste também em Cabo Verde e acabas no Canadá. Como é que é esse teu o percurso de vida?
Eu nasci e cresci em Lisboa, passei muito tempo em Trás-os-Montes, de onde a minha mãe vem, passei algum tempo em Cabo Verde, de onde vem o meu pai. Depois, nos últimos 25 anos, vivi numa dúzia de sítios diferentes, em quatro continentes. Portanto, tem sido uma vida relativamente agitada e prazenteira. Como dizia o Pedro Lamy: “Tenho cara de miúdo, mas já sou muito rodado”. [risos]

Tens viajado e tens vivido noutros países sobretudo por causa do trabalho, é isso?
Sobretudo por causa do trabalho, sim. Estudei em três países diferentes, trabalhei radicado numa série de países, mas trabalhei em muitos mais, praticamente três dezenas de países.

Na Conferência da Fundação Amílcar Cabral, na Praia, em Cabo Verde (2011), acompanhado de um grupo de africanistas do mundo inteiro — Fotografia cedida por PJ Marcellino

Fotografia cedida por PJ Marcellino

O que fazes concretamente? O que poderíamos descrever como a profissão do Pedro José-Marcellino?
Hum!!!

Para além de seres astronauta no deserto do Utah nas próximas duas semanas…
Astronauta análogo ou cidadão astronauta, como às vezes se costuma dizer. Comecei como jornalista e depois passei para a academia, trabalhei como investigador durante alguns anos, mas por ter um interesse talvez mais político passei rapidamente para a consultoria política e acabei por trabalhar como conselheiro político e conselheiro de comunicação em várias agências internacionais, incluindo as Nações Unidas, a União Africana e várias outras.

Em 2012, decidi que precisava de fazer uma outra coisa que já queria fazer desde miúdo: estudar cinema — que não foi uma hipótese muito bem aceite quando o disse à minha mãe. Estudei cinema documental — especificamente —, porque era uma uma área que poderia aplicar àquilo que já estava a fazer na área de comunicação política, trazendo uma nova capacidade técnica.

Na altura, era chefe de comunicação na Sala de Situação do Conselho de Paz e Segurança da União Africana, em Adis Abeba. Na minha primeira reunião, a chefe de missão perguntou à volta da mesa de comunicação quem queria liderar um documentário sobre os 50 anos da construção da paz em África. Ninguém ergueu a mão. E eu, acabado de sair da escola de cinema há um ano e pouco, sem ter feito absolutamente mais nada [nessa área]….

Pensaste: “Isto é para mim.”?
Ergui a mão porque mais ninguém se voluntariou. [risos] Um pouco mais tarde nesse ano, deram-nos dinheiro e uma das melhores equipas de produção na Etiópia e voámos para Abidjan, na Costa do Marfim, onde tínhamos uma conferência de paz, com todas as eminências das negociações de acordos de paz, prémios Nobel e Presidentes. Arranjaram-nos uma suite presidencial, uma equipa de produção e foram trazendo os Presidentes, um a um, para eu entrevistar. Lembro-me de ter feito umas vinte entrevistas ou mais, em dois dias.

Noite da estreia do filme "When they awake", no Festival Internacional de Calgary (2017) — Fotografia cedida por PJ Marcellino

Fotografia cedida por PJ Marcellino

Tu és o verdadeiro homem do sete ofícios. Dirás que esta missão — onde vais viver num edifício fechado como um dia, quem sabe, se pode viver em Marte — é o trabalho mais difícil, mais entusiasmante ou mais desafiador que já fizeste?
Não sei. Sou uma pessoa relativamente social, mas também preciso muito do meu espaço. Há um benefício em ter sido promovido a primeiro oficial da missão: ter uma parte da estação que me pertence, ter um bocadinho mais espaço e um bocadinho mais de isolamento se eu quiser, em relação ao resto da tripulação.

Mas, de facto, é uma experiência diferente. É estranho pensar em estar dentro de um edifício fechado em que não temos qualquer oportunidade de sair. Mesmo saindo, vamos simular aquilo que seria feito em Marte: não podemos apenas abrir uma porta. Antes de abrir a porta há todo um processo de 45 minutos, para verificações de segurança, colocar os fatos espaciais e ter toda uma bateria de autorizações — que acabam por tirar um bocadinho o gozo ao abrir a porta e sair para apanhar ar fresco.

Ninguém vai à janela fumar um cigarro, por exemplo.
Ninguém vai, não. Mas estamos a encontrar agora um desafio particularmente importante: o público tem mostrado um interesse muito grande em todo este processo [foguetões lançados por várias empresas, por exemplo] e alguém decidiu fazer umas publicações na internet com sítios muito interessantes para visitar no Utah, entre eles uma estação análoga a Marte.

O que estás a dizer é que pode acontecer ires à janela ver a paisagem e teres montes de turistas a acenar?
Aconteceu na missão que se realizou em setembro. Houve pessoas que entraram em propriedade e que chegaram a bater à janela da estação. Agora, foram colocados sinais que indicam que a propriedade é privada. Mas nós decidimos, internamente, que se isso acontecer vamos continuar a agir como se essas pessoas não estivessem lá. A única alternativa é fingir que eles são marcianos e entrar em modo de emergência. [risos]

Nasceu em 1978, mas só tem 40 anos — recusa-se a contar os anos da pandemia

Nasceste em Portugal há quarenta e três anos, vives há vários anos no Canadá, já viveste ou passaste por outros países: que bandeiras e símbolos vais ostentar no teu fato espacial?
Antes de mais, quero fazer uma correção: indiquei que fiz 40 anos antes da Covid e continuo a ter 40 anos. Recuso-me a contar os anos da Covid como anos reais, não pedi, não encomendei.

Vou ostentar a bandeira do Canadá, a bandeira de Cabo Verde e a bandeira da União Europeia. A minha parte portuguesa sempre se identificou com o nosso continente e, portanto, vou ostentar a bandeira da União Europeia e não a bandeira de Portugal.

És, portanto, um europeísta?
Desde sempre. Penso que quase todos nós que crescemos na geração de 90, na Europa, usufruímos de uma abertura imensa, que depois acabou por se contrair a partir do 11 de setembro [de 2001] e, muito mais tarde, a partir da crise económica. Há aqui uma mudança de paradigma, mas eu continuo no paradigma dos anos 90, que era o que realmente encaixava nos grandes sonhos da Europa. Este momento que estamos a viver, com a Covid-19 a fechar as fronteiras, tem mostrado amplamente as vantagens claríssimas da abertura das fronteiras.

Há quantos anos estás fora de Portugal?
Saí de Portugal quando tinha uns 19 ou 20 anos. Obviamente, como eu disse que tinha 40, são 20. [risos]

"Sou cientista político de profissão, comentador e analista e, portanto, sigo as notícias da Europa, de Portugal, da Alemanha, da França, do Canadá."
Pedro José-Marcellino

Segues a atualidade portuguesa?
Sou cientista político de profissão, comentador e analista e, portanto, sigo as notícias da Europa, de Portugal, da Alemanha, da França, do Canadá. Parei um pouco durante estes últimos anos loucos de Donald Trump porque me estava a dar PTSD [stress pós-traumático]. Mas sigo com muita atenção a política africana, a política europeia, a política norte-americana e mundial.

Mas nestes últimos 20 anos, não foi só a política que te interessou. Quando saíste de Portugal, aos 19 anos, para onde foste? E o que foste fazer?
Entre a escola secundária e a universidade decidi tirar um tempinho e fui para a Escócia. Ia ficar só três meses, mas acabei por ficar praticamente um ano nas Terras Altas. Foi amor à paisagem. Desde essa altura, tenho um fascínio enorme pela Escócia e pela sua gente interessantíssima. Depois, passei uma temporada relativamente curta na Holanda [atuais Países Baixes], outra na Suíça e, depois, acabei por ir trabalhar para a Expo 2000, em Hannover, na Alemanha. Voltei a Portugal por pouco tempo, trabalhei numa ONG [organização não-governamental] e voltei para a Alemanha, onde acabei por ficar algum tempo e comecei a trabalhar como fotorrepórter. Depois da Alemanha, comecei a minha transição gradual para o Canadá.

Em que momento é que Cabo Verde entra na tua vida e como é que isso te marca?
Bom, Cabo Verde esteve sempre na minha vida, porque o meu pai é cabo-verdiano, a maioria da minha família é cabo-verdiana — porque a família do meu pai é muito maior do que a da minha mãe —, e viajávamos para a visitar. Portanto, todas essas referências estão na minha vida desde desde sempre.

Falas crioulo?
Hoje em dia falo. E odja k nta fazi un katxupa sabim p’afronta [E olha que faço uma cachupa bem saborosa]. Também vou cozinhar cachupa para a tripulação, é a minha contribuição.

Portanto, tu — português a viver no Canadá — vais cozinhar cachupa — prato nacional de Cabo Verde — no deserto do Utah, nos Estados Unidos, para uma tripulação internacional que vai simular vida em Marte.
Exatamente. Não tinha pensado nas coisas dessa forma. [risos]

Chegar ao topo do vulcão do Fogo, em Cabo Verde, foi um dos momentos de maior felicidade

Sobre outros desafios: o que achas mais fácil (ou mais difícil): caminhar durante três horas com um fato de astronauta vestido ou subir a um vulcão ativo?
Uma já fiz, a outra não posso dizer: qual será a exigência física de caminhar durante três horas com um fato pesadíssimo, com equipamento nas costas e com pouca água? Mas subir um vulcão é difícil.

A escalar o cratera do Pico do Fogo, em Cabo Verde, a uma altitude de 2.829 metros (2006) — Fotografia cedida por PJ Marcellino

Fotografia cedida por PJ Marcellino

Como é que se faz a subida de um vulcão [neste caso, o vulcão do Fogo, em Cabo Verde]?
O vulcão do Fogo é um vulcão mais ou menos gémeo, do ponto de vista geológico, do vulcão do Pico, nos Açores. A ilha inteira, tanto uma com a outra, é de facto um macro vulcão que foi criado há milhões de anos. Dentro desse macro vulcão, num planalto bastante elevado, tem-se um pequeno vulcão — em termos relativos.

No caso do vulcão do Fogo, são talvez uns 700 metros de altura a partir do planalto [plataforma], praticamente verticais, compostos de escória vulcânica, tipo areia, mas uma areia que é aguçada como facas e que não permite uma subida muito fácil — damos um passo para cima e deslizamos dois para baixo. Depois, há uma série de rochas à volta que podem apresentar algum perigo, depende também da altura em que vamos e de qual é a atividade vulcânica que existe. Além da rarefação do oxigénio.

Não foi o teu caso. Fizeste-o facilmente?
Diria que foi um pouco como uma cabra do Gerês, contentíssimo. [risos] Continuo a achar que chegar ao topo desse vulcão pela primeira vez foi um dos momentos de maior felicidade da minha vida. Aliás, tenho sentido a minha vida inteira que chegar ao topo de uma montanha é das coisas que me dá maior prazer, do ponto de vista de uma felicidade pura e sem adulteração.

Ao longo da tua vida, as viagens têm sido uma constante. Já visitaste 70 países, ilhas e territórios. Porque é que os sublinhas — já andaste por ilhas remotas e territórios escondidos?
Andei por algumas, sim. O primeiro sítio para o qual tive a sorte de viajar, ainda miúdo, com o programa Jovens Repórteres para o Ambiente, foi à ilha de Spitsbergen, no arquipélago de Svalbard, na Noruega, que fica a 500 quilómetros do Pólo Norte.

Viste ursos polares?
Não vi dessa vez — já vi depois —, mas uma manhã acordámos e os dois cães huskies, que supostamente guardavam o barco para nos proteger de ursos-polares, estavam a dormir profundamente com o nariz escondido nas patas e à volta deles havia pegadas de urso-polar por todo o lado.

Isso quando eras Jovem Repórter para o Ambiente?
Sim. Quando tinha 16 anos.

Foi uma grande experiência. Mas já tiveste a oportunidade de os ver ao vivo? Em que circunstância?
Já trabalhei em vários projetos no Ártico canadiano. Num deles, no território de Nunavut, a norte do Quebeque — território dos Inuit —, tive oportunidade de avistar ao longe [um urso-polar]. E já tive oportunidade de usar uma parca feita de urso-polar emprestada por um Inuit, que o caçou como parte das suas necessidades de sobrevivência.

A atravessar o Estreito de Davis, ao largo da Ilha de Baffin, no Território de Nunavut, Canadá (2017) — Fotografia cedida por PJ Marcellino

Fotografia cedida por PJ Marcellino

As tuas viagens são sobretudo de trabalho ou também viajas por lazer?
Praticamente nunca viajo por lazer. Não vejo motivo nenhum para gastar dinheiro em viagens de lazer quando posso viajar por causa de um trabalho com alguém pagar a conta. Aquilo que se transformou em hábito para mim é que junto dois ou três dias de lazer em praticamente todas as viagens, se for possível.

Isso é um luxo e uma sorte enorme.
Um luxo, uma sorte enorme, um privilégio estar nestes sítios, muitas vezes turísticos. Por exemplo, a Islândia é um sítio em que as pessoas viajam como turistas e veem uma Islândia completamente diferente daquela que eu acabo de ver [há umas semanas] a viajar com colegas islandeses, a conhecer velhos baleeiros e pescadores e, no fundo, a imiscuir-me na cultura de uma forma que não está ao alcance do turista. Perde-se um pouco do lazer, mas ganha-se muito em termos da experiência real do sítio em que estamos.

Qual a história mais incrível que ouviste durante estes últimos 20 anos a viajar e a trabalhar pelo mundo?
A partir do momento em que passo a estar um pouco mais alerta sobre as questões políticas — a meio da minha adolescência —, comecei a interessar-me muito pelos processos de paz e segurança e pelo jornalismo de guerra. E houve uma altura em que eu realmente quis ser repórter de guerra e acabei por estar em vários locais onde havia conflito. Obviamente, é muito mais stressante do que eu tinha imaginado e não é algo que seja especificamente interessante, digamos assim.

Mas houve uma viagem em que eu estava a fazer um trabalho para o Ministério das Comunidades de Cabo Verde, na Ilha da Boa Vista. No dia de voltar, houve um problema com o avião e tive de passar 12 horas no aeroporto com duas pessoas idosas, ela teria uns oitenta e muitos anos e ele uns 90. Eram Éric e Jeanne Makédonsky, dois repórteres de guerra famosíssimos da altura das independências. E eu passei 12 horas a conversar com estas pessoas como se nos tivéssemos conhecido uma vida inteira. No voo de Lisboa para Londres, conheci um jornalista português, cujo nome me escapa agora, mas que me lembro que cobriu o Iraque nessa altura. E, no voo de Londres para Toronto, fui sentado ao lado do jornalista canadiano Omar Sachedina. No prazo de uma viagem inteira, conheci quatro repórteres de guerra, fiquei fascinado e achei que era o universo a dizer-me que eu tinha que ser repórter de guerra. Quando cheguei a Toronto, concluí que não era assim tão interessante. Na realidade, passei por duas ou três experiências que me indicaram que não é uma vida aliciante, é uma vida stressante e provavelmente traumática.

Queres partilhar connosco alguma experiência dessas traumáticas?
Devo ter quase morrido umas três vezes. Aquela que me recordo melhor foi na altura em que o Presidente do Senegal, que é um país normalmente bastante estável, decidiu que não queria sair e houve uma revolta nas ruas. Estava na África Ocidental e escolhi passar pelo Senegal — talvez de forma inconsciente —, porque queria estar lá na altura das eleições, sabendo perfeitamente que a coisa ia arrebentar. E, de facto, rebentou. E acabei por sair, numa situação mirabolante, em que havia fogos no meio da rua, tiros de metralhadora e uma viagem de táxi para o aeroporto que nunca me hei de esquecer.

Acho que, às vezes, não fazemos uma boa apreciação sobre o trabalho que os nossos colegas jornalistas de guerra fazem, mas penso que são das pessoas mais incríveis à face da Terra.

Bem, passando para um tema muito mais suave para ti, que és um contador de histórias. Tu tens sobrinhos… Metes-lhe este bichinho das viagens, dos documentários e da exploração espacial?
A minha irmã diz-me que sim, que o meu sobrinho Afonso já está a começar a ser como eu. Mas eu também ando a treiná-lo há 13 anos: ando a dar-lhe mapas desde miúdo e aviões e a mandar postais de todo o mundo e notas da China e não sei que mais. O Afonso tem uma curiosidade inata e nós temos a nossa primeira viagem juntos marcada para este ano: vamos explorar o interior de Trás-os-Montes de uma forma profunda, como eu gosto de fazer. É uma viagem que eu já fiz e que quero fazer com ele: basicamente, é entrar por uma estrada em Espanha, depois voltar a entrar em Portugal pela estrada seguinte e fazer isso até chegar ao fim de Trás-os-Montes. Ziguezaguear a fronteira e ir parando um bocadinho nos castelos.

O outro, o Matey, é canadiano e quer ser astronauta. Como parte desta missão, vamos testar um sistema de comunicação falando com pessoas que nos são próximas. Ele vai ser a pessoa do outro lado, a testar algo que pode vir a ser usado pela NASA ou na Estação Espacial Internacional.

Dizes que queres chegar até aos 91 anos para poder ver a humanidade em Marte. Tens 40, achas que vamos pisar o planeta vermelho nos próximos 51 anos?
Acho que sim, porque a Medicina está a melhorar. E acho que devo chegar lá porque todos os meus avós viveram bem para lá dos 90 anos.

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