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USA - Mars Research - Mars Society Desert Research Station
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Mars Desert Research Station, em Hanksville, Utah (Estados Unidos)

David Howells/Corbis via Getty Images

Mars Desert Research Station, em Hanksville, Utah (Estados Unidos)

David Howells/Corbis via Getty Images

Como se vive em Marte sem sair das Montanhas Rochosas? A missão que vai testar saúde mental, comunicações e respostas de emergência

A construção poderia ser feita em Marte e o ambiente tem semelhanças — apesar do oxigénio e da gravidade. O Observador vai acompanhar em exclusivo a MDRS 238 — a simulação de uma missão a Marte.

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Qualquer semelhança com a realidade é pura ficção. Mas, neste caso, uma ficção que tem de ser levada a sério. A tripulação é composta por cidadãos astronautas, que vão comportar-se como astronautas de verdade, e o ambiente inóspito do deserto do Utah, nos Estados Unidos, vai ser a melhor aproximação a uma estação montada em solo marciano. Só não vai ter a diferença de gravidade, que em Marte é (grosso modo) um terço da que sentimos na Terra.

Não é o local de rodagem de um filme ou de inspiração para um livro, mas uma estação científica onde a tripulação estará de 2 a 15 de janeiro a realizar experiências relacionadas com o bem estar dos astronautas (neste caso, destes astronautas análogos) e a testar um novo sistema de comunicação que poderá — quem sabe — vir a ser usado em missões espaciais futuras.

O Observador vai acompanhar a missão MDRS 238 em exclusivo, sem tirar os pés da Terra (neste caso, de Lisboa), mas com um contacto direto com esta estação marciana em plenas Montanhas Rochosas. Pedro José-Marcellino, primeiro oficial da missão (o número 2 depois da Comandante) e documentarista de serviço, será os nossos olhos e ouvidos no local, com quem teremos oportunidade de falar todos os dias — mas com as limitações inerentes a uma conversa com Marte.

Neste momento do seu percurso à volta do Sol, Marte está a mais de 350 milhões de quilómetros de distância da Terra, mas na simulação estará mais próximo, a cerca de 90 milhões de quilómetros (como estará em novembro-dezembro de 2022).

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Poderá conhecer este luso-cabo verdiano em breve no jornal e rádio Observador e ler o seu diário de bordo todos os dias no nosso site — siga todos os artigos aqui.

Como se juntaram estes cidadãos astronautas para simular uma missão em Marte?

O anúncio estava ali. No site da fundação Mars Society, que promove estas expedições, estavam abertas as candidaturas para pessoas não especializadas em investigação espacial. E nem precisavam de ser académicos, só precisavam de reunir as condições pré-definidas pela equipa científica que gere a estação no deserto — Mars Desert Research Station (MDRS). Isso, e ter cerca de quatro mil euros disponíveis (ou financiados) para a aventura: 2.000 dólares (cerca de 1.750 euros) para pagar a taxa de utilização do espaço à Mars Society, mais viagens, estada no hotel antes da missão e outras despesas.

Simon Werner estava de férias com a família em Espanha quando, em agosto de 2019, visitou a página da Mars Society (que segue há cerca de 15 anos) e descobriu que qualquer pessoa podia candidatar-se para fazer parte da missão. “Perguntei à minha mulher: ‘Olha, e se me candidatasse a isto?’ E ela respondeu: ‘Porque não? Força!’”. O alemão conta ao Observador: “Fiz a candidatura, mas para ser sincero, não pensei que me escolhessem”.

A resposta só chegou em fevereiro de 2020, quando já nem pensava muito no assunto, mas quando recebeu o email de resposta a dizer que tinha sido selecionado, pulou de alegria. Literalmente. “Desceu-me um frio na espinha, desatei aos saltos e disse à minha mulher: ‘Olha só, fui aceite’. Depois liguei ao meu pai”, conta ainda com a emoção desse momento. “Foi tão excitante como aterrador.”

Para o alemão Simon Werner, como para a polaca Agnieszka Pokrywka (também conhecida como Aga) e para o luso-cabo verdiano Pedro José-Marcellino, o universo, as viagens espaciais e as grandes missões ao espaço faziam parte do imaginário — e de uma realidade que lhes foi ao mesmo tempo próxima e distante durante a infância e juventude. Nenhum deles se tornou astronauta, mas todos vão cumprir parcialmente o sonho com esta possibilidade de estar em Marte (ainda que apenas numa simulação).

Insignia MDRS 238

A insígnia da missão tem os nomes da tripulação em Marte (vermelho) e em Terra (branco) e simboliza um caminho labiríntico com um propósito definido pelo próprio mote: “Apesar de tudo, amanhã para Marte, a Terra sempre” — MDRS 238

Os membros da tripulação, pelo menos os que se juntaram logo na primeira fase, conhecem-se desde março de 2020, mas apenas via Zoom. A pandemia de Covid-19 impediu que se encontrassem pessoalmente — o que só irá acontecer a 30 de dezembro —, assim como fez com que a missão começasse um ano atrasada — em janeiro de 2022 em vez de janeiro de 2021.

Aga Pokrywka confessa que houve muitos momentos de estagnação na preparação da missão e momentos frustrantes: “Ver um grupo de pessoas que não conhecemos, por Zoom, uma vez por mês, para falarmos sobre uma simulação, em que estávamos sempre na dúvida se aconteceria ou se não aconteceria, fazia parecer tudo muito irreal, intangível”. Foi só quando decidiram “vamos a isto, não importa o que aconteça” é que o processo realmente acelerou. As reuniões mensais passaram a ser semanais nos últimos três meses e a tripulação está cada vez mais ansiosa por embarcar, como o Observador testemunhou numa dessas reuniões.

Os olhos de Simon Werner brilham como os de uma criança que ganhou o presente que tinha pedido ao Pai Natal e confessa: “Estou realmente entusiasmado, foi tanto tempo de preparação por causa da pandemia”. O tempo, admitem, também trouxe coisas boas, permitiu-lhes criar laços mais fortes enquanto equipa e resolver da melhor maneira a saída de algumas pessoas ao longo destes meses. Por agora, o receio tem um único nome: SARS-CoV-2. Pode impedi-los de chegarem ao destino ou infetá-los — o que poderia prejudicar a missão ou mesmo cancelá-la.

A equipa tem feito de tudo para evitar ser apanhada pela pandemia. Os tripulantes estão todos vacinados, alguns já com a terceira dose, vão fazer os testes de diagnóstico necessários para entrar nos Estados Unidos, viajam a 29 de dezembro para o hotel onde vão ficar hospedados nos primeiros dias reduzindo os contactos ao mínimo possível, encontram-se pela primeira vez em pessoa no dia 30 (mas não sem antes fazerem todos um autoteste), passam o ano fechados nos quartos e fazem um novo autoteste antes de começarem a missão a 2 de janeiro. No mínimo precisam de quatro pessoas operacionais em Marte ou a missão é abortada.

Em que sítio vão poder simular que estão em Marte?

Venham do Canadá, Alemanha, Reino Unido, Finlândia ou de outro ponto dos Estados Unidos, o destino dos seis tripulantes que vão estar com o pés “em Marte” é o mesmo: a MDRS, uma das estações análogas da Mars Society (instalações que pretendem simular algumas das condições físicas e psicológicas que se encontrariam em Marte). Esta é apenas uma estação análoga das cerca de 12 que existem espalhadas pelo planeta Terra e a segunda detida pela Mars Society.

A MDRS recebe missões há 20 anos, desde 2001, e está localizada na formação geológica San Rafael Swell, a sul do Utah e já no planalto do Colorado. A cidade mais próxima, Hanksville, fica a cerca de 12 quilómetros pela única estrada existente, em direção a sudeste. Mais próximo da estação estará a base de comando, com as mesmas funções que teria se os astronautas estivessem no espaço e precisassem de contactar com uma equipa na Terra. Mas, também aqui, os contactos serão reduzidos ao essencial e a equipa terá de conseguir resolver os problemas à medida que forem surgindo. Existem ainda outros dois membros da tripulação que estarão “em Terra” a dar apoio com as comunicações e com a utilização dos equipamentos de realidade virtual.

[Imagem tridimensional da estação MDRS, com informação em cada edifício. Use o cursor.]

A estação é semelhante ao que se chegou a pensar que poderia ser uma boa estrutura para ter em Marte (ignore os corredores abertos entre edifícios que não poderiam existir num local sem atmosfera respirável). O edifício principal é o habitáculo — onde ninguém pode entrar com as botas sujas. Tem dois pisos: cozinha, casa de banho única, seis estações de trabalho e sala de estar em baixo; quartos em cima. Aqui há gravidade e oxigénio para se respirar, tal como se espera que venha a existir nos habitáculos em Marte.

O habitáculo está ligado a quase todas as outras estruturas, sendo que o GreenHab, a estufa, é o que está mais próximo. Aqui, vão cultivar-se as plantas aromáticas da experiência da Kay Sandor e é o local onde poderiam ser cultivados alguns alimentos capazes de crescer em Marte (ou assim se espera), não fosse a missão de apenas duas semanas. O Science Dome, será a área da ciência onde a Aga Pokrywka poderá tratar dos seus microorganismos, fermentações e bioreatores (pequenos tanques) para o crescimento de cianobactérias.

Num extremo da estação fica a oficina do Simon Werner, o engenheiro, que apesar ter mais experiência em eletrónica e eletrotécnica terá de ser o “faz tudo de serviço” e reparar o que quer que haja para arranjar. Werner conta que a experiência na construção civil o ensinou a trabalhar com maquinaria pesada e a mexer em várias ferramentas, mas admite que percebe pouco de mecânica (caso o rover marciano tenha algum problema). No outro extremo, estão os observatórios astronómicos, um deles ainda ligado ao habitáculo, o Observatório Musk, que deve o nome a Elon Musk, um dos financiadores da Mars Society e defensor das viagens para Marte.

This picture was taken from a paraglider flying over the San Rafael Swell

A formação geológica San Rafael Swell, no Utah (Estados Unidos), onde se localiza a estação de simulação de Marte (MDRS) — AustinAdesso/Wikimedia Commons

AustinAdesso/Wikimedia Commons

Com a missão prevista para durar entre 2 e 15 de janeiro de 2022, a tripulação vai chegar às Montanhas Rochosas em pleno inverno onde a temperatura do deserto, a uma altitude de 1.309 metros, pode variar entre os 15 graus Celsius negativos e os cinco graus positivos (15 ºC, se tiverem sorte) — de qualquer forma, muito mais ameno que Marte, que pode chegar aos 140 graus Celsius negativos. Ainda assim, a localização no deserto, o tipo de solo e o relevo na paisagem circundante aproximam-se do que poderíamos encontrar no planeta vermelho.

As dificuldades estão sobretudo no equipamento que cada um precisa de levar, até porque, apesar de o clima ser normalmente seco, também pode chover, cair granizo ou nevar nesta altura do ano. Aga Pokrywka, artista de profissão, que passa muito do seu tempo no computador, confessou que teve de investir muito em calçado e roupa apropriada para as condições que vão enfrentar neste Marte do Utah. Porque o único espaço climatizado será o habitáculo.

Na lista de itens que a tripulação tem de preparar contam-se botas e luvas de trabalho (ambas escuras) que se possam encher de poeira e lama, roupa quente — mas que não tenha de ser trocada todos os dias porque não há máquina de lavar roupa, nem muito espaço —, 15 meias para trocar porque se vão sujar facilmente, baterias suficientes para todos os equipamentos eletrónicos que vão usar, protetor solar (porque o capacete do fato de astronauta não protege o suficiente da radiação solar), um lençol (obrigatório) para colocar sobre o colchão plastificado e um saco cama.

Pedro José-Marcellino explica ainda que para usar por cima das suas roupas têm um macacão que podem usar no habitáculo, um outro com isolamento térmico sempre que precisem de se deslocar a outras partes da estação (que não são aquecidas) e um fato de astronauta “completo”, com capacete e mochila com o peso equivalente ao do oxigénio que teriam de transportar numa situação real. Os fatos de astronauta só se usam nas atividades extraveiculares (EVA) e terão de ser sempre feitas com a autorização da base de comando na Terra.

O primeiro astronauta análogo português. “É importante tentar”

Quem é quem na tripulação e o que vão fazer?

A tripulação que vai viajar até à “estação marciana” é composta por três mulheres e três homens, com origens muito diferentes e idades que vão dos 37 aos 74 anos. Sionade Robinson é, atualmente, a comandante da missão, e Pedro José-Marcellino, o primeiro oficial. Mas inicialmente não era esse o plano. Com tanto tempo de atraso, o primeiro comandante, um antigo Navy Seal, teve de desistir e a equipa teve de se reorganizar. Pedro José-Marcellino, que seria o documentarista a bordo, passou a acumular a função com a de primeiro oficial, incluindo tratar da parte logística e dar apoio à comandante.

Parte da logística é organizar as horas de ida à casa de banho de cada um dos elementos, pelo menos de manhã, explica Pedro José-Marcellino ao Observador. “As duas pessoas que estão de serviço à cozinha nesse dia têm prioridade.” Essas duas pessoas tratam de tudo na cozinha, do pequeno almoço ao jantar e da limpeza da própria cozinha.

A hora de acordar é às 6 da manhã, para estarem todos prontos para o pequeno-almoço que começa às 7h30 e dura uma hora. Na última meia hora, o primeiro oficial aproveita para fazer a reunião de preparação do dia, as tarefas de cada um ou alterações que houver a fazer. Tudo está planeado, incluindo o tempo que têm para contactar a família, as quatro a seis horas que podem dedicar todos os dias aos projetos pessoais, a reunião da noite com a comandante, as horas de lazer e a hora de dormir — o mais tardar às 23h.

A comandante da missão, Sionade Robinson, reitora associada na City – University of London, vai tentar dar continuidade ao trabalho que desenvolveu sobre exploração, exploradores e liderança, transferindo o contexto histórico que investigou para um contexto ligado ao espaço.

“Não me tornei astronauta, mas tornei-me uma artista interessada em ciência e tecnologia. E, como artista, o meu trabalho é ser crítica.”
Agnieszka Pokrywka, artista

Os restantes elementos da tripulação também terão projetos próprios, como as ervas aromáticas e os momentos de meditação da Kay Sandor ou os projetos de fermentação da Aga Pokrywka que lhe vão permitir fabricar iogurtes, pão, kombucha (chá fermentado) e uma outra bebida adocicada fermentada (tibicos). A artista vai filmar os processos de fermentação, dar a provar os alimentos aos restantes elementos da tripulação e convidá-los a uma reflexão sobre o porquê de estarem ali. Com sorte, também conseguirá que comam espirulina, a cianobactéria que vai cultivar, e um dos primeiros seres vivos a colonizar a Terra.

A tripulação tinha planeado incluir uma astrónoma portuguesa que trabalha na Agência Espacial Alemã — mas esta não conseguiu autorização para viajar para os Estados Unidos. Por isso, terá de ser Aga a operar o telescópio, apesar de o objetivo inicial ser a ligação entre a arte e a microbiologia, mas a artista polaca já conseguiu dar a volta à situação. Olhar um céu pontilhado de estrelas é quase como olhar para um microscópio com bactérias espalhadas num meio de cultura. A artista vai registar fotografias do céu e tentar esbater a fronteira entre o microscópico e o macroscópico como parte da mesma realidade.

[Visita virtual em três dimensões à àrea de ciência, Science Dome]

“O espaço faz parte dos meus interesses gerais desde criança”, conta ao Observador. “Não me tornei astronauta, mas tornei-me uma artista interessada em ciência e tecnologia. E, como artista, o meu trabalho é ser crítica.” Neste caso, levantando dúvidas éticas em relação às viagens espaciais e às narrativas em torno delas, como por exemplo estarem muito centradas nos Estados Unidos ou serem sobretudo sobre homens e pouco sobre mulheres.

Esse é outro dos motivos que a incentiva a ter produtos fermentados a bordo. Se as mulheres são viajantes menos frequentes nas viagens espaciais, porque há uma desregulação da flora vaginal (dos microorganismos que vivem no aparelho reprodutor feminino) — segundo conta —, e se os produtos fermentados ajudam nessa regulação, então faz todo o sentido que estejam presentes nesta simulação.

Além dos projetos de cada um, a missão guia-se por um princípio geral relacionado com a saúde mental e o bem-estar da tripulação. É aqui que entram as ervas aromáticas e a meditação, mas também o novo sistema de comunicação que pretende facilitar as comunicações entre a Terra e Marte — e que vai ser analisado pela psicóloga Julia Yates, da City – University of London —, mas também a realidade virtual. Cada tripulante poderá desfrutar de momentos de realidade virtual com um equipamento da Stardust Technologies e fazer uma descrição qualitativa de como se sentiu (melhor ou pior), se gostou da simulação, se preferia outra, se teve náuseas, etc.

Jason Michaud, tripulante em Terra e membro da Stardust Tehnologies, explica ao Observador a importância de testar os equipamentos e os cenários nos diversos contextos. Por exemplo, um cenário que até pode funcionar bem em Terra, com os pés bem assentes no chão, pode ter péssimos resultados em contexto de microgravidade (como na Estação Espacial Internacional ou numa viagem espacial). Foi as experiências de microgravidade a bordo de voos parabólicos que permitiram à empresa ajustar os cenários de forma a que pudessem ser usados nesses contextos.

Saiba que experiências se fazem em queda livre na atmosfera terrestre

Que novo sistema de comunicações vai ser testado?

A saúde mental dos astronautas era algo que fazia parte dos planos da tripulação, mas a verdadeira evolução nesse sentido surgiu nos últimos meses de preparação, quando por um acaso Rob Brougham, da Braided Communications, se cruzou no caminho de Sionade Robinson, a comandante da missão. “Não tínhamos nenhum plano inicial”, confessa Rob Brougham. “O que queremos, enquanto empresa pequena que somos, é fazer algo que possa ser útil aos outros e que também nos possa ajudar a nós.”

Ora, a equipa da Braided Communications procurava missões análogas para testar o seu novo sistema de comunicações e quando propôs que “seria ótimo fazer algo com a tripulação relacionado com a ligação com o entes queridos que permanecem em Terra”, a equipa liderada por Sionade Robinson rapidamente se mostrou interessada no projeto. Em três ou quatro reuniões, conseguiram desenhar uma experiência que vai permitir testar o impacto da latência na comunicação entre pessoas próximas.

Para perceber a importância da experiência, imagine que está em frente do computador a trocar mensagens com alguém que lhe é muito querido e sabe que a pessoa está do outro lado, mas cada mensagem que envia demora cinco minutos a chegar lá e a resposta outros cinco minutos a voltar até si. O processo pode tornar-se desesperante, mas é este o tempo de espera entre mensagens a que estão sujeitas as comunicações entre Terra e Marte — quando a distância entre os planetas é tão curta como 90 milhões de quilómetros (a 360 milhões de quilómetros seriam 20 minutos).

Já foram feitos estudos para tentar reduzir o impacto da latência nas comunicações operacionais nas missões espaciais, mas “tanto quanto sabemos, esta é a primeira investigação que está a ser feita sobre como a latência afeta os sentimentos de proximidade em relação a outra pessoa”, refere Rob Brougham.

O sistema-padrão usado atualmente permite enviar mensagens em contínuo, que chegam ao interlocutor em cinco minutos e, pelo meio do seu texto, vão aparecendo as respostas enviadas cinco minutos antes, quando ainda estava noutra fase da conversa. Tentar encontrar o fio à meada neste conjunto de mensagens recebidas com atraso pode ser confuso e frustrante. Este sistema, por ser usado normalmente vai servir de controlo, ou seja, como comparação com o novo sistema.

"Tanto quanto sabemos, esta é a primeira investigação que está a ser feita sobre como a latência afeta os sentimentos de proximidade em relação a outra pessoa."
Rob Brougham, Braided Communications

O sistema da Braided Communications não vai eliminar a latência — as leis da Física não o permitem. Mas através de um esquema de painéis que vão rodando em tempos definidos, as duas pessoas podem estar igualmente envolvidas na conversa com menos frustração — pelo menos assim esperam os fundadores da empresa, Rob Brougham e Andrew Smithsimmons.

“Para os humanos, assim como para os restantes mamíferos, estar em ligação com os que nos são mais próximos é o que ajuda o nosso sistema nervoso a regular-se”, justifica Andrew Smithsimmons, psicoterapeuta especializado em vínculos e isolamento. “O nosso sistema nervoso regular-se com os nossos relacionamentos — é tão fundamental como respirar oxigénio.” Um sistema nervoso desregulado, defende, “vai afetar como o corpo funciona, como o corpo reage à radiação, como lida com a inflamação”, mas também é como se houvesse um “alarme a soar no corpo”.

Quando mais alto soar o alarme, “maior é o risco de não compreendermos o que a outra pessoa nos está a dizer, maior é o potencial para entender o comportamento do outro como ameaçador [mesmo que não seja] e mais difícil é ligar-nos às outras pessoas e apoiá-las”. Se isto tiver impacto no desempenho de cada pessoa, toda a tripulação pode ficar em risco porque dependem uns dos outros — tal como outras equipas em contextos remotos na Terra.

Rob Brougham admite que esta experiência curta e com poucas pessoas “é só um primeiro passo”, mas que poderá motivar a que se faça mais investigação neste sentido, com um protocolo que possa ser replicado por outros e depois comparado. Na experiência, a Braided Communications quer perceber — com uma perguntas simples no final da sessão — quão próximo se sente cada tripulante da pessoa com quem esteve a conversar e se há diferença entre os dois sistemas testados (o da Braided e o sistema-padrão).

Que emergências podem acontecer durante a simulação?

“Do ponto de vista real, todo o tipo de acidentes domésticos podem acontecer dentro da estação”, diz Pedro José-Marcellino. Também por isso o Robert T Turner, paramédico desde 1989 e especializado em cuidados de emergência, ficou como responsável pela Saúde e Segurança dentro da tripulação.

Mas a missão de Simon Werner e Robert Turner é maior do que resolver situações que surjam por acaso, o que pretendem é criar Estratégias de Resposta Padronizadas, que vão desenvolver e implementar em conjunto com a tripulação. Estratégias essas que lhes permitam dar resposta a situações que poderiam acontecer em Marte onde só se podem socorrer a si próprios. Claro que se a emergência for real, diz Werner, em primeiro lugar vão salvar vidas.

Entre as emergências simuladas que potencialmente poderiam acontecer em Marte estão os incêndios (especialmente num ambiente cheio de equipamento e circuitos), queda de meteoritos, um problema de saúde de uma astronauta durante uma atividade extraveicular ou uma tempestade solar (muito frequente em Marte e muito mais intensa do que na Terra porque o planeta vermelho tem um campo magnético mais fraco). “O mais importante é conseguirmos agir rapidamente e de forma coordenada sem ter de esperar por instruções da base de comando”, diz Simon Werner.

A primeira coisa que acontece na situação de emergência simulada é soar um alarme (se a emergência for real, o alarme soará de maneira diferente). Depois, os tripulantes são contactados pelos intercomunicadores para se juntarem todos. Se faltar alguém, caberá à comandante decidir se tratam primeiro da missão de resgate ou da emergência (que pode ser um incêndio, por exemplo).

“O mais importante é conseguirmos agir rapidamente e de forma coordenada sem ter de esperar por instruções da base de comando.”
Simon Werner, engenheiro

Mesmo tendo sido bombeiro voluntário por mais de 10 anos, Werner não tem todas as respostas em caso de incêndio, mas uma coisa é certa: não se vai usar água. Por outro lado, pós e espumas que apaguem o incêndio também são de evitar porque acabam por danificar o equipamento — e assim, terá trabalho a dobrar. A melhor solução neste caso parece ser dióxido de carbono (CO2) ou algo semelhante.

A queda de meteoritos perto da estação, além de poderem provocar algum incêndio, também podem destruir total ou parcialmente uma estrutura e provocar a fuga de algum líquido ou gás essencial, como o oxigénio. “Temos de agir depressa, porque o ar desaparece num instante — é um recurso crítico.” É preciso identificar a fuga, bloqueá-la e arranjar o problema. Quanto às tempestades solares a solução é apenas uma: “Temos de ir para um abrigo porque a radiação será altíssima.”

Rapidez também é um requisito fundamental quando, por exemplo, alguém tem um ataque cardíaco ou outro problema de saúde durante uma atividade extraveicular. A pessoa que o acompanha pode não conseguir reanimá-lo e trazê-lo sozinha e as duas pessoas que vão em seu socorro têm de ser rápidas a vestir os fatos de astronauta e enfrentar a dificuldade de os ter vestidos para ir salvar alguém.

As emergências simuladas serão planeadas entre Simon Werner, Robert Turner e Bhargav Patel, engenheiro de Sistemas e Comunicações, que faz parte da tripulação que está na Terra, mas totalmente desconhecidas da restante tripulação. Sabem que vai acontecer, mas não sabem como nem quando e pode apanhá-los a meio de qualquer atividade.

Scientists Simulate Mars In Utah Desert

Nas atividades extraveiculares, os tripulantes vestem os fatos de astronautas e carregam mochilas com o peso equivalente ao do oxigénio que iriam precisar — George Frey/Getty Images

George Frey/Getty Images

Além da preparação das estratégias de resposta, Robert precisa de garantir diariamente que todos os tripulantes estão bem de saúde e Simon precisa de verificar todos os sistemas e equipamentos e reportá-los à base de controlo. Uma das tarefas é, por exemplo, verificar o nível de água e, se necessário, alertar os colegas sobre a necessidade de gerir melhor o recurso esgotável (naquele local).

Entre as regras de poupança de água estão a casa de banho seca, o número de banhos reduzido para um a cada três ou quatro dias. E mesmo esse que seja um “banho de combate”: desligar a água quando não for precisa, usar uma luva de banho para poupar ainda mais e, de preferência, touca de banho para quem tem cabelo comprido. Considerando que não existem esgotos, os tripulantes são aconselhados a usar pasta de dentes e champô biodegradáveis e sabonetes líquidos. Proibidos estão todo o tipo de perfume e águas de colónia.

Existem outras coisas que também não podem entrar na estação marciana, quase como num voo de avião: armas de fogo, velas, bebidas alcoólicas, cigarros de qualquer tipo, ganchos para prender coisas na parede (ou mesmo fita adesiva).

Sobre a alimentação há menos restrições, mas muitos enlatados, comida congelada e refeições pré-preparadas. O que conseguiram combinar foi que teriam vegetais frescos, os mesmos que poderiam produzir na estufa se não estivessem na missão tão pouco tempo. Para compensar tanta comida processada, a Aga Pokrywka quer melhorar a alimentação da tripulação com os alimentos fermentados.

Porque é que havemos de simular uma missão a Marte?

Se sonhamos algum dia viajar até Marte, instalar uma base no planeta vermelho, ou tão somente ir à Lua ou fazer um voo espacial prolongado, o melhor é ter todos os aspetos da missão bem testados e oleados. Vimos com espetacularidade os foguetões da Space X serem lançados ao ar e explodirem, só para serem melhorados e refinados até ao ponto de poderem transportar pessoas de uma forma segura.

“A investigação espacial tem um impacto no avanço da Engenharia — mesmo na Terra — que não existiria se não fosse preciso para o espaço.”
Pedro José-Marcellino, documentarista

Os pequenos equipamentos e tarefas são testados até à exaustão pelas equipas técnicas das empresas privadas ou das agências espaciais internacionais. Os voos parabólicos e outras formas de simular microgravidade são usadas para garantir que, no espaço, longe da gravidade da Terra, os equipamentos, fluidos e programas informáticos funcionam da mesma maneira. Mas precisamos também de testar, exaustivamente, o que acontece com os humanos: a nível físico, comportamental, mental e psicológico. Já se imaginou confinado dentro de uma nave espacial, a conviver com um número reduzido de pessoas, durante mais de sete meses?

Claro que antes da pergunta da preparação, pode surgir ainda outra: Porque haveremos de querer ir a Marte, estudar Marte ou fazer qualquer tipo de estudo no espaço? Parte da argumentação contra a exploração espacial passa por lembrar que existem tantos problemas na Terra: porque é que vamos investir recursos (tempo, dinheiro, pessoas) em solucionar problemas para chegar a outros planetas? Este é exatamente o tipo de discursos e conflitos que Pedro José-Marcellino e Aga Pokrywka querem explorar com os seus projetos, ainda que de forma muito distinta.

Sim, podemos viver em Marte. Mas devemos?

Pedro José-Marcellino recorda o Velho do Restelo dos Lusíadas, que se opunha à partida da armada de Vasco da Gama para Índia, e como lidamos com situações deste tipo há séculos. Interessado nestas narrativas públicas, vai opor o espírito conservador à curiosidade que é uma característica humana. Pedro José-Marcellino não está tão deslumbrado com a investigação espacial que acredite que tem solução para todas as maleitas da Terra, mas acredita que há oportunidades que se podem aproveitar, como as tecnologias para a criação de combustíveis sustentáveis. “A investigação espacial tem um impacto no avanço da Engenharia — mesmo na Terra — que não existiria se não fosse preciso para o espaço.”

Para Aga, cultivar colónias de bactérias como astronauta análoga em Marte vai tornar-se um ponto de partida para uma reflexão artística sobre o que podemos aprender com os microorganismos e com o espaço para melhorar as nossas vidas na Terra.

Mas a equipa da Braided Communications traz uma nova perspetiva: não temos o mesmo tipo de latência na Terra, mas não precisamos de ir para Marte ou numa viagem espacial para ter pessoas isoladas com dificuldades no acesso à comunicação. Este tipo de comunicação, que permite uma maior proximidade entre as pessoas que estão em contacto, mesmo que seja em termos clínicos ou de psicoterapia, pode trazer vantagens para as populações isoladas, defende Andrew Smithsimmons.

Quem organiza esta missão no Utah?

A estação de simulação MDRS é detida pela Mars Society, uma organização criada em 1998 com o objetivo de defender, incentivar e convencer cidadãos e governantes sobre a importância da exploração de Marte, mas também a colonização de Marte pela humanidade. Um dos seus fundadores e presidente, Robert Zubrin, é um dos grandes defensores da transformação de Marte numa espécie de segunda Terra, um assunto que cria discórdia e debate dentro da comunidade científica.

Na declaração de fundação da Mars Society, pode ler-se: “Chegou a hora de a humanidade viajar para o planeta Marte. Estamos prontos. Embora Marte esteja distante, estamos hoje muito mais bem preparados para enviar humanos para o planeta vermelho do que estávamos para viajar para a Lua no início da era espacial. Com vontade, poderíamos ter as nossas primeiras tripulações em Marte dentro de uma década”. A declaração foi assinada por 700 participantes na convenção que decorreu na Universidade do Colorado (Estados Unidos). Estávamos em agosto de 1998 — já lá vão mais de duas décadas. De facto, já conseguimos levar estruturas fabricadas pelo homem até Marte, mas estamos longe de lá chegarmos de carne e osso.

Marte. Tão perto e tão longe

Acreditando que a exploração e a colonização de Marte é a causa mais nobre que alguma vez existiu, os fundadores apelam ao apoio de todas as instituições e prometem: “Não descansaremos até que seja bem sucedida”. E desdobram-se em ações de sensibilização do público, assim como no apoio à investigação — sendo as simulações nas estações análogas uma forma de o fazer (com missões normalmente conduzidas pelas universidades ou por empresas do ramo).

A Mars Society tem 56 núcleos em todos os continentes que promovem os mesmos objetivos e mantêm Marte na esfera pública. E, sobretudo com apoios privados, vão mantendo ativas as suas iniciativas e as duas estações análogas que detém, uma no Utah (Estados Unidos) e outra no território de Nunavut (Canadá), a Flashline Mars Arctic Research Station (FMARS).

Atualizado: clarificada a distância a Marte (variável ao longo do ano) e o tempo das mensagens consoante a distância.

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