O voo SQ321, entre Londres e Singapura, já tinha entrado na décima hora de viagem esta terça-feira e nada fazia prever problemas. A luz de alerta para colocar os cintos de segurança há muito que tinha sido desligada e havia, por isso, quem circulasse livremente pelos corredores. O choque foi grande entre passageiros e tripulantes quando uma “turbulência severa” começou a fazer “tremer e inclinar” o avião da Singapore Airlines, um incidente que acabou por provocou a morte de um homem britânico de 73 anos — possivelmente por ataque cardíaco — e 30 feridos, dos quais seis com gravidade.
“Durante os poucos segundos em que o avião caiu houve uma gritaria terrível e o que pareceu ser um baque”, diz um dos passageiros. A companhia aérea explicou esta terça-feira que o aparelho perdeu 1.200 metros de altitude num minuto. “Vi objetos espalhados por todo o lado e muitos membros da tripulação feridos”, relatou em declarações à imprensa internacional outros dos 211 passageiros que seguiam a bordo de um modelo 777 da Boeing com 16 anos. Para já, há ainda muitas questões por responder sobre o incidente de turbulência, uma raridade na aviação pela morte de um passageiro.
Questionado pelo Observador sobre o caso, a Singapore Airlines remete para os comunicados disponibilizados nas redes sociais, em que diz estar a trabalhar com as autoridades para investigar o incidente. Já a Boeing remete esclarecimentos para a companhia aérea e para as autoridades locais de Bangkok, onde o avião aterrou de emergência. “Estamos em contacto com a Singapore Airlines sobre o voo SQ321 e estamos preparados para os apoiar. Estendemos as nossas sinceras condolências à família que perdeu um ente querido. Os nossos pensamentos estão com os passageiros e a tripulação”, referem numa resposta escrita ao Observador.
Os episódios de turbulência têm vindo a aumentar ao longo dos últimos anos, segundo concluíram várias investigações. A duração total anual de turbulência severa aumentou 55%, de 17,7 horas em 1979 para 27,4 horas em 2020, segundo um estudo publicado no ano passado. Mas, afinal, o que provoca e como é detetada a turbulência? É imprevisível ou pode ser evitada?
O que provoca a turbulência? É possível prevê-la?
De modo simples, a turbulência é um movimento instável do ar. Há essencialmente dois mecanismos que a produzem: fluxos de calor muito acentuados e mudanças muito rápidas na velocidade e direção do vento, diz ao Observador o climatologista Pedro Miranda, investigador do Instituto Dom Luiz. No caso do voo da Singapore Airlines, o aparelho foi afetado por “turbulência severa”, o terceiro grau mais elevado de uma escala de quatro (leve, moderada, severa, extrema), segundo uma classificação dos serviços meteorológicos dos Estados Unidos.
O comandante José Correia Guedes, antigo piloto da TAP, explica que durante um voo há três formas de turbulência que podem causar problemas: a turbulência térmica, orográfica e de ar limpo. A primeira acontece quando temos a formação de nuvens muito altas e cheias de energia e de correntes verticais, explicou no programa Resposta Pronta, da Rádio Observador. “Essa turbulência pode ser evitada porque aparece nos radares meteorológicos dos aviões. Nós conseguimos detetar as zonas de maior turbulência e evitá-las”, refere.
SQ-321 – LHR-SIN
This is where the Captain announces of a diversion to Bangkok.
Note the indentation on the luggage bin. ????????
(Video WhatsApp forward) #SQ321 pic.twitter.com/AvnF1oMFTq— manisha singhal (@manishasinghal) May 21, 2024
O segundo tipo ocorre na proximidade de montanhas. Isto porque, tal como as ondas do mar que rebentam numa praia, o ar também forma ondas quando encontra montanhas. A forma mais problemática é a chamada turbulência de ar limpo (clear-air turbulence, CAT na sigla em inglês), que acontece quando as aeronaves encontram ventos fortes e secos em voo a altitudes de cruzeiro. “Essa é totalmente imprevisível. Não se pode prever, não aparece em lado nenhum. Pilotos e passageiros são apanhados de surpresa. Acredito que tenha sido isso que aconteceu”, aponta.
Nos casos de turbulência, explica o piloto Bruno Torcato, não há muito a fazer sem ser reduzir a velocidade do avião para a aconselhada pelo fabricante em caso de turbulência, avisar os passageiros para colocar de imediato os cintos e garantir que a cabine está o mais limpa e segura possível.
Há vários sites que já dão conta das previsões de turbulência que podem ser consultados pelos passageiros para o percurso dos seus voos. É o caso do Turbli ou o Aviation Herald, que já partilharam detalhes sobre o incidente do SQ321 e mapas sobre a posição aproximada em que o avião foi afetado por turbulência.
É comum haver feridos ou mortos em voos afetados por turbulência?
Não é muito frequente, mas acontece, diz o comandante José Correia Guedes. A título de exemplo, podemos olhar para o caso dos Estados Unidos. Entre 2009 e 2022, 163 pessoas (34 passageiros e 129 tripulantes) ficaram feridos com gravidade em episódios de turbulência durante voos, segundo dados da Administração Federal da Aviação norte-americana.
???? | LO ÚLTIMO: Al menos un muerto y más de 30 heridos tras "graves turbulencias" en un vuelo Boeing 777 de Singapur a Londres.
???? Lee acá: https://t.co/25xS1TVviK pic.twitter.com/zdITL6fipg
— Alerta Mundial (@AlertaMundoNews) May 21, 2024
Há dois anos, 36 pessoas ficaram feridas num voo da Hawaiian Airlines depois de um episódio de turbulência severa num voo entre Phoenix e Honolulu. No total, 20 pessoas tiveram de receber assistência médica. Já em março do ano passado, um novo incidente provocado por turbulência severa acabou por provocar a morte de uma pessoa durante uma viagem de um avião privado entre New Hampshire e Virgínia.
Entre as lesões mais comuns durante estes incidentes contam-se lacerações, ossos partidos, ferimentos na cabeça, por vezes com perda de consciência. Também há casos de lesões no pescoço e nas costas. A principal causa? Não utilizar cinto de segurança durante a viagem.
Em declarações à agência Reuters, um passageiro que seguia no voo da Singapore Airlines relatou que esse foi o principal problema quando se sentiu o impacto da turbulência. “O avião começou a inclinar-se e a tremer. Comecei a preparar-me para o que estava a acontecer e, de repente, houve uma queda súbita e todos os que estavam sentados sem cinto de segurança foram lançados imediatamente contra o teto“, descreveu Dzafran Azmir à agência.
Mas é mesmo preciso usar o cinto em todo o voo?
É certo que o uso de cinto só é obrigatório em alguns momentos dos voos, desde logo a descolagem e a aterragem. No entanto, muitos aconselham o uso do cinto em permanência durante toda a viagem. “Sempre que estejam sentados, e mesmo que não haja turbulência, recomendamos absolutamente aos passageiros que mantenham os cintos apertados”, sublinha José Correia Guedes.
“Às vezes os passageiros dizem que caíram 100, 200, 300 metros. Não é verdade. O avião caiu uma dezena de metros, mas a aceleração vertical é de tal forma brutal que pode mandar os passageiros de encontro ao teto do avião, e aí uma pessoa pode até partir o pescoço”, acrescenta.
Os aviões podem ficar danificados?
É raro. Isto porque, explica ao Observador o piloto Bruno Torcato, os aparelhos “estão muito bem preparados em termos estruturais”. “Não diria impossível, porque não é impossível, mas hoje em dia é muito difícil a turbulência provocar danos graves num avião”, aponta.
“Os danos que podem ocorrer são os provocados por objetos soltos dentro da cabine do avião. Os testes a aviões que são fabricados hoje em dia levam a limites estruturais muito grandes, muito para além daquilo a que normalmente estamos habituados e que enfrentamos no dia a dia”, esclarece.
Os céus estão a ficar mais turbulentos? A culpa pode ser das alterações climáticas
O número de casos de turbulência têm vindo a aumentar significativamente, apontam várias investigações. É o caso de um estudo publicado no ano passado pela Universidade de Reading, em Inglaterra, e que concluiu que a turbulência de ar limpo, que é invisível, aumentou devido às alterações climáticas.
Num ponto comum sobre o Atlântico Norte, uma das rotas de voo mais movimentadas do mundo, “a duração total anual de turbulência severa aumentou 55%, de 17,7 horas em 1979 para 27,4 horas em 2020”, descrevem os autores. No caso da turbulência moderada e leve também se verificou um aumento, respetivamente de 37% (70,0 para 96,1 horas) e 17% (466,5 para 546,8 horas).
Se o maior aumento se verificou na área dos Estados Unidos e do Atlântico Norte, os investigadores também descrevem um aumento significativo de turbulência nas rotas sobre a Europa, o Médio Oriente e o Atlântico Sul. “As companhias aéreas têm de começar a pensar em como lidar com o aumento da turbulência, que custa à indústria 150 a 500 milhões anualmente só nos EUA. Cada minuto adicional a viajar no meio da turbulência aumenta o desgaste da aeronave, bem como o risco de ferir passageiros e comissários de bordo”, sublinhava Mark Prosser, um dos autores do estudo, citado em comunicado.
A explicação para este efeito das alterações climáticas na aviação é simples: a atmosfera tem mais energia. “A turbulência precisa de uma fonte de energia. Num mundo mais quente, há mais energia no ar”, diz o climatologista.