As paredes desta escola não são iguais às das outras escolas. Na Escola de Música do Conservatório Nacional (EMCN), para além das vozes das crianças, é a música que ressoa por todo o lado. Para além das mochilas com livros, os instrumentos musicais são inseparáveis dos alunos que ali podem entrar a partir dos seis anos em regime parcial e a partir dos 10 anos a tempo inteiro. Alguns tocam instrumentos que os superam em altura. Na Rua dos Caetanos, em Lisboa, estuda-se música – e foi ali que Maria João Pires, a mais internacional pianista portuguesa, aprendeu, entre 1953 e 1960. António Victorino d’Almeida, Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes-Graça, Jorge Moyano, Jorge Peixinho e Rui Vieira Nery, entre tantos outros, também. “Quase todos os músicos portugueses passaram por aqui. O Mário Laginha terminou o curso no mesmo dia que eu”, contou ao Observador a diretora Ana Mafalda Pernão.
“É patente a satisfação da comunidade em relação ao ambiente e clima educativos”. A frase elogiosa não é da diretora, mas sim da avaliação externa feita pela Inspeção-Geral de Educação em 2011. Mas há um senão, que contribui para que as paredes desta escola não sejam mesmo iguais às da maioria das outras escolas. Nem os tetos. “Estamos nas aulas e ouvimos “ping, ping, ping!”. Pode soar a batida musical, mas o “ping” descrito pela aluna Ulilan Pereira, de 11 anos, é proveniente da chuva a cair nas salas. Há paredes tricolores, já que a tinta amarela original descascada deixa ver o cinzento do cimento e a cor negra da humidade. Por baixo dos tetos onde cai chuva, o chão de madeira está branco, destruído pela água. “Ainda recentemente uma professora por pouco não ficou gravemente ferida depois de uma rajada de vento ter levado uma janela de uma sala”, contou Nuno Villallonga, professor de canto. Não é caso único e, ao ver imagens do interior do edifício, percebe-se porquê.
“A situação da EMCN já se arrasta há anos, para não dizer há décadas”, sublinhou Nuno Villallonga. O encerramento de 10 salas de aula, a 16 de fevereiro, por parte da Câmara Municipal de Lisboa, parece ter sido a gota de água para que alunos, pais, professores e membros da direção tenham ido para a rua exigir obras. O momento deu-se esta terça-feira, 24 de fevereiro, e Nuno Villallonga era um dos manifestantes que se juntaram à porta do Conservatório em protesto pela falta de condições. O sistema de alarme da escola foi acionado – não se sabe se por algum dos muitos manifestante -, mas a verdade é que, numa questão de minutos, alunos e professores estavam na rua. Chegaram mesmo a fechar a escola a cadeado.
O Observador teve acesso ao parecer da Câmara e, entre os vários perigos identificados, encontra-se “insegurança em relação ao risco de incêndio devido às infiltrações em contacto com a rede elétrica que evidencia vetustez e elementos em falta”. A CML determinou, por isso, “a execução de obras de consolidação e reparação no edifício. E concluiu: “não estão reunidas as condições mínimas de salubridade e segurança para a presença de pessoas e bens, até que sejam realizadas as obras preconizadas no presente auto. Deverão ainda ser tomadas as medidas necessárias e convenientes por forma a garantir a segurança de pessoas e bens na via pública, face ao risco de queda de elementos construtivos do imóvel“, tais como forras em pedra e lâminas de ardósia. A inspeção camarária foi pedida pela EMCN em abril do ano passado, depois de uma parte do teto de uma sala ter caído. Em outubro último, “num dia de desespero, foi preciso chamar a proteção civil e os bombeiros porque a chuva ameaçava fazer ruir o teto de algumas salas de aulas e a água estava por todo o lado”, relatou Lília Kopke, professora de piano que também se juntou ao protesto improvisado. Na altura, a proteção civil foi clara: não estavam reunidas condições suficientes para realizar aulas em alguns setores do edifício. Bens dispendiosos, como pianos, continuam ali. Os mais de 900 alunos inscritos, para além de funcionários e corpo docente, também.
O problema, denunciam professores e alunos, é que o Conservatório não tem verbas suficientes para fazer as obras necessárias e as entidades competentes continuam a não dar uma resposta definitiva para travar a situação. Os protestos iniciados na terça-feira deram frutos. Na quinta-feira, a Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) reuniu com a direção da EMCN e concordou em desbloquear verbas “tendo em vista a realização, neste momento, das intervenções mais urgentes, que permitam melhorar as condições de funcionamento do edifício”, conforme nota enviada ao Observador. Ana Mafalda Pernão admitiu que é uma pequena vitória, já que as intervenções vão além das 10 salas interditas, como era a intenção inicial, e incluem agora as restantes salas onde caíram tetos, o pátio (interditado em dezembro depois de ali terem caído pedaços de friso) e também o telhado. Os orçamentos começaram a ser preparados esta sexta-feira para enviar à tutela, mas a diretora, licenciada em arquitetura, sublinhou que continuam a ser “remendos”, como aqueles que a escola tem feito recorrendo a recursos próprios, muitas vezes obtidos através de concertos solidários.
Enquanto não se fizer uma requalificação total, os danos vão continuar. “Era preciso uma cobertura nova, porque telhas com 70 anos ou mais racham à mínima diferença de temperatura e uma telha partida é água que entra”, queixou-se, acrescentando que já não se encontram telhas daquele tamanho. “Às vezes remendamos tetos, ainda há dois ou três anos fizemos um teto inteiro numa sala e já está outra vez a chover a meio. Tive de pedir a um senhor das obras que fosse ver e, felizmente, há sempre algumas almas caridosas que passam por aqui e não cobram nada”. Para além das janelas partidas, da falta de isolamento, dos tetos que caem, da humidade e do cheiro a mofo, a diretora defende uma reestruturação do espaço, “para corresponder às funções de ensino académico atual”, explicou.
Já derrubaram uma parede para criar uma sala maior, mas o ensino das disciplinas não musicais está todo espalhado porque está dependente das salas que têm condições para determinadas aulas. Instalar rede de Internet no velho edifício foi uma aventura. Mais tarde, a direção teve de trocar com a sala de ginástica porque era mais espaçosa para a prática de desporto, mas agora está cheia de calhas porque a direção tinha várias tomadas de computador. “Durante as aulas de ginástica os meninos sentam-se em cima delas, atiram bolas, e aquelas calhas estão todas a cair. Não está um projeto pensado de raiz”, queixou-se Ana Mafalda Pernão. O ideal seria mesmo a construção de um edifício próprio. A sugestão não é da escola, é de uma avaliação externa feita pela Inspeção-Geral de Educação em 2011, e onde se incluem as seguintes conclusões:
- “O edifício ainda não foi sujeito a obras de requalificação, o que dificulta a prática pedagógica, nomeadamente devido à implementação, em 2007-2008, do regime integrado no ensino básico que exigiu a adaptação de espaços específicos e de salas para as disciplinas da formação geral, como sejam Educação Visual e Educação Física e respetivos balneários”;
- “Existe apenas um pátio interior, de dimensões reduzidas, para o recreio dos alunos. A insuficiência de espaços não permite à Escola dispor de um bufete para os alunos, substituído por dois distribuidores automáticos”. Existe uma cantina no piso térreo para servir a Escola de Música e também a Escola de Dança, mas tem apenas 60 lugares sentados;
- “A construção de um edifício próprio ou a requalificação do atual, no âmbito do Programa de Modernização do Parque Escolar, constituiria uma oportunidade para assegurar um melhor e mais eficaz funcionamento da Escola”;
- “O Salão Nobre não é utilizado na sua plenitude, nomeadamente, porque parte da galeria está a ceder, sendo suportada por três pilares de ferro, o que pode pôr em causa a segurança”.
A saga das obras
A última reestruturação foi feita no edifício sob a direção de Ivo Cruz, em 1946, há quase 70 anos, com direito a uma nova biblioteca, desenhada pelo arquiteto Raul Lino.”Eu conheci o edifício com um aspeto ainda muito cuidado, pelas peças antigas que tem sempre foi mantido com cuidado, quase com aspecto de museu”, contou a diretora, que ali entrou pela primeira vez em 1974, tinha 11 anos. Pelo menos desde 2002 que os protestos pela situação insustentável se repetem. Já nesse ano o deputado do CDS João Almeida, num requerimento ao Ministério da Educação, se referia à “situação dramática” e à “necessidade de obras no edifício o mais brevemente possível”.
Com a criação da Parque Escolar em 2007 sob o Governo Sócrates, muitas escolas conseguiram resolver os problemas. A esperança parecia residir aí, mas a EMCN não teve sorte. “Nós fomos colocados na terceira fase da Parque Escolar. Ficamos para o fim e, com a entrada do novo Governo, foi suspensa e nem sequer houve projeto.”, recordou Ana Mafalda Pernão. Em outubro de 2014, o Observador questionou a DGEstE sobre se existia algum projeto para reestruturar o edifício. Em resposta por e-mail, a tutela disse estar “a acompanhar este processo”. “No entanto”, acrescentam, por se tratar de um edifício do século XIX numa zona considerada como de potencial valor arquitetónico, a intervenção é “onerosa, sendo por isso importante que no processo de elaboração do projeto sejam ponderadas as opções técnicas, construtivas, funcionais e programáticas”. Nesse sentido, “o IGESPAR [atual Direção-Geral do Património Cultural] está a ser consultado sobre algumas dessas opções, pelo que só após finalizado esse processo será possível concluir o projeto e iniciar as reparações necessárias”.
Desde outubro do ano passado não houve novidades concretas e nada foi concluído. De acordo com a diretora do Conservatório, o “processo” está pendente deste janeiro de 2014. “Numa reunião na DGEstE, no dia 20 de agosto, foi-nos dito que a arquiteta estava a contactar o IGESPAR para saber se podia aplicar um qualquer material”, decisão que a arquiteta já teria pendente desde junho. “Parece-me mais uma desculpa”, disse Ana Mafalda Pernão. Para tentar manter a casa em ordem, e porque sempre que é necessária alguma pequena intervenção urgente o processo de requerimento à tutela é moroso, a direção tem desenvolvido várias iniciativas para angariar receitas. “Temos angariado imensa coisa. Há uns anos fizemos uma corrida solidária aqui à volta do Bairro, em que os meninos davam voltas consoante o dinheiro que lhes dessem. Angariámos 3.900 euros. Em 2014 fizemos uma obra aqui no palco do Salão Nobre, que estava em condições já muito más, como aliás toda a sala. De um concerto aqui no palco e outro na entrada, durante um dia inteiro, conseguimos angariar dinheiro para fazer a recuperação do palco”, contou a diretora.
Cátia Ferrão, membro da direção da associação de pais, alertou para os “graves problemas de desigualdade entre os alunos do Conservatório e os restantes, porque os primeiros não estão a ser preparados devidamente para os exames nacionais que se avizinham”. Nos dias em que chove são colocados baldes para conter a água, mas em dias em que a água cai com mais intensidade “simplesmente não há aulas”, denunciou.
Um edifício com história
Ana Mafalda Pernão entrou pela primeira vez no Conservatório em 1974 para fazer um exame de educação musical. Mais tarde, no 10.º ano de escolaridade começou a estudar ali e nunca mais saiu, começando a trabalhar em 1987 e conseguindo o primeiro mandato para diretora em 2009. Maria José Borges, professora de história da música, estreou-se em 1972, numa visita de estudo da escola que frequentava. Ambas concordam que a primeira sensação era a de estarem num museu. “Isso fascinou-me de tal maneira que eu acho que foi aí que eu comecei a entusiasmar-me pelo conhecimento da história da música”, disse Maria José Borges.
Foi a professora de história da música a conduzir o Observador numa visita guiada ao que de mais histórico e belo há para ver. Esquecendo-se os problemas estruturais por breves momentos, os alunos do Conservatório ainda estudam num edifício museu.
O pátio onde, até dezembro, os alunos corriam, brincavam, ensaiavam e assistiam a concertos já foi o claustro de um convento, o dos Caetanos, que acabou por dar nome à rua. O Conservatório deve a sua morada ao ministro da Justiça Joaquim António de Aguiar, mais conhecido por “Mata-Frades”, que em 1834 decretou a extinção das Ordens religiosas em Portugal e a nacionalização dos bens. Já a criação da Escola de Música, em 1835, deve-se ao músico português João Domingos Bomtempo e “veio colmatar uma falha grande. Na época, não havia um local onde se formassem músicos num contexto laico, de ambos os sexos e de todas as classes sociais”, salientou Maria José Borges. O ensino da música era feito no Seminário da Patriarcal e em outros seminários espalhados pelas províncias. Assim, o ensino passou a ir muito além da música religiosa. “Desde o princípio que tem o seu gene de democraticidade”, sublinhou a professora.
Com o edifício abandonado, cedo se chegou à conclusão que era ali que o primeiro Conservatório de Portugal, fundado em 1836 sob o reinado de D. Maria II, e denominado Conservatório Geral de Arte Dramática, devia morar, sob a direção de Almeida Garrett. Para além da Escola de Música, dirigida por Bomtempo, era formado pela Escola de Teatro e Declamação e por uma Escola de Mímica e Dança. Maria José Borges acha que a decisão de ir para a Rua dos Caetanos pode ter sido uma vendetta. “Durante a guerra entre Liberais e Miguelistas sabe-se que os frades do Convento dos Caetanos acolheram elementos de um regimento Miguelista. Não sei até que ponto não terá havido uma certa retaliação por parte dos homens do Liberalismo em quererem enxotar os últimos frades residentes”. A professora de história da música até tem uma teoria: “Às vezes na brincadeira costumo dizer que as vicissitudes por que a escola tem passado ao longo dos séculos é alguma maldição dos frades”.
Maria José Borges teve em mãos documentação sobre o primeiro ano letivo da escola de música, que terá sido em 1938. A escola de teatro só começou a funcionar um ano depois. Foi então a música a inaugurar ali o Conservatório e, teimosamente, só a música se mantém até hoje, depois de as escolas de teatro e dança terem encontrado novas instalações. E as obras, outra vez elas. É que antes de o Conservatório se instalar no Convento foram necessárias intervenções, de acordo com documentos da época. “Já na altura o edifício, datado do século XVII e destruído pelo terramoto de 1755, estava a cair de velho”, contou Maria José Borges.
O Salão Nobre é o ex libris da edificação. Projetado por Eugénio Cotrim e inaugurado em 1892, pela Tribuna Real passaram os reis D. Carlos e o seu pai, D. Luís. “Não tenho conhecimento de que algum presidente da República tenha vindo assistir a espetáculos da nossa escola”, comentou Maria José Borges. Hoje, o Salão Nobre tem quase tanto de belo como de degradado. Os ensaios convivem com o teto pintado por José Malhoa e com as rachas que o desfiguram. O prazer de ali assistir a um concerto contrasta com o perigo de derrocada. Almeida Garrett, Passos Manuel, Domingos Bomtempo e Francisco Xavier Migone vão assistindo do teto, imortalizados pela arte de Malhoa.
Em 2005, a Direção Regional de Educação de Lisboa abriu um concurso público para recuperar o Salão Nobre, mas as obras não saíram do papel. Em 2008, o Parlamento recebeu uma petição do Movimento Fórum Cidadania Lx, subscrita por 5043 cidadãos, apelando à recuperação do salão. No mesmo ano, o PCP apresentou na Assembleia da República um projeto de resolução para que o Governo Sócrates adotasse as medidas necessárias para a sua requalificação. Pediam “uma rápida intervenção física de conservação e requalificação do espaço público em causa”, e o reforço em um milhão de euros para um projeto adequado. O Governo respondeu que “tomou medidas para o início das obras, mas que tal não sucedeu por falta de acordo da parte da Direção da EMCN”. Não se chegou a acordo porque o projeto estaria “à margem das necessidades pedagógicas da escola e desfigurando em parte os traços próprios e característicos do Salão Nobre”, explicou Ana Mafalda Pernão. PS, o CDS e PSD votaram contra a proposta do PCP. O assunto morreu. Tal como, nas últimas obras feitas, em 1946, morreram as pinturas que existiam nas paredes do Salão Nobre por não se terem acautelado devidamente os traços próprios do património.
Os futuros Fernando Lopes Graça e Maria João Pires
Francisco Dias tem 10 anos e entrou agora para o primeiro ano do Conservatório, o equivalente ao quinto ano do ensino básico. Quer aprender mais sobre o violoncelo, instrumento que já toca desde os seis anos por influência da mãe, irmã do músico Boss AC. “Ela só me quis inscrever porque eu quero ser músico. Até já cantei uma música com o Boss AC chamada ‘Tu és mais forte'”. Confirma-se, é Francisco quem aparece no final do vídeo, gravado em 2012 pelo popular rapper.
A experiência foi tão boa que, quando questionado sobre se gosta mais de cantar ou de tocar violoncelo, Francisco respondeu prontamente: “cantar”. Francisco é um dos cerca de 300 alunos em regime integrado, no qual os alunos podem completar a sua formação geral com o ensino especializado da música, a partir do quinto ano. Os restantes estão no Conservatório ou em regime articulado, ou supletivo. A tempo parcial, portanto.
Carolina Batista tem 10 anos e faz parte dos “caloiros” que entraram em setembro para o primeiro ano do Conservatório. Para entrar, teve de prestar provas, como todos os outros. “Vim cá parar porque o meu primo Tiago insistiu muito comigo”. Carolina não queria deixar as colegas da outra escola, mas acabou por fazer a prova de formação musical e as audições com o seu bombardino, só para ver no que davam. Metade dos candidatos ficou para trás. Na outra metade ficou Carolina, e os bons resultados ajudaram a dissipar as dúvidas e os medos. “Quando saíram as percentagens, a minha mãe acordou-me às cinco da manhã aos berros, a dizer: ‘Carolina, tu entraste!’, e eu comecei aos pulos na cama, fiquei muito contente”. “Estou a adorar a nova escola!”. A resposta de Carolina torna-se tão repetitiva quanto a pergunta feita pelo Observador a cada criança. Os mais velhos ajudam os mais novos, a relação com os professores é boa, o ambiente é agradável. O “mas” chega quando se fala nas instalações. “Tem muita história, mas já é velhinho…”.
“Quero muito ser pianista”, disse Tomás Jorge, 11 anos, muitas certezas. Está no segundo ano – equivalente ao 6.º – e a decisão de entrar no Conservatório foi feita em conjunto com a mãe, gestora, e o pai, bancário, que o apoiam desde que aos seis anos começou a tocar piano. “Já conhecia o Conservatório porque fazia algumas audições aqui”. Depois do “aqui”, onde ficará até ao 12.º ano, quer seguir para a Escola Superior de Música. Por enquanto, aproveita a escola onde se sente bem e onde já fez muitos amigos. Vasquinho, como é conhecido por todos, não larga o violino nem quando lhe perguntamos quais são as músicas que mais gosta de ouvir. “Só ouço música clássica”, disse.
“Chamam-nos betinhos por andarmos nesta escola. Estranhamente!”, acrescentou Carolina. “Mas eles é que estão numa escola completamente nova”. O rótulo de betinhos deve-se, explica Carolina, por ser uma escola cheia de música e de ballet. “Mas se eles viessem assistir a uma aula avançada se calhar iam adorar. Mas mesmo que sejamos betinhos, eu prefiro andar nesta escola do que na anterior.”
A direção não tem dados sobre a população estudantil da escola, mas em primeiro na lista de interessados em colocar os filhos na EMCN estarão artistas, pessoas ligadas ao mundo do espetáculo, não só música mas também cinema, teatro e dança. “Têm uma sensibilidade e estão mais abertos a que os filhos sigam essa carreira”, explicou. Depois, pessoas que acham que a música é essencial na formação do ser humano. “Muita gente coloca aqui os filhos porque querem que eles tenham um bom ensino da música, independentemente se depois vão ou não seguir uma carreira na área. Está provado que estudar música desenvolve o cérebro, põe em funcionamento partes que as outras disciplinas não põem, enfim, isso no campo da neurologia está muito bem trabalhado”. De facto, não faltam pesquisas que atestam a influência da música no desenvolvimento cerebral da criança. No estudo “The Effects of Musical Training on Structural Brain Development“, por exemplo, verifica-se que o estudar música em tenra idade contribui para uma melhor plasticidade estrutural do cérebro, facilitadora da aprendizagem. O neurocientista português António Damásio recorreu à pianista Maria João Pires para obter resultados inéditos nos estudos sobre controlo cognitivo e emocional, publicados no livro Sentimento de Si.
E quanto à situação socioeconómica? “Há de tudo”, respondeu. “Claro que um pai que tenha maior capacidade financeira tem facilidades, mas há muita gente de níveis sociais mais baixos, há muita gente que vem porque na sua terra toca em bandas filarmónicas”. Frequentar música não é barato. Para ajudar em casos mais urgentes, a escola tem alguns instrumentos, ou que ali ficaram esquecidos, ou fruto de doações. No ano letivo de 2011/2012, 68% dos pais dos 936 alunos matriculados eram licenciados, de acordo com uma avaliação externa feita pela Inspeção-Geral de Educação. 5% possuíam o primeiro ciclo do ensino básico. Havia 31 alunos a beneficiar de auxílios económicos no âmbito da Acção Social Escolar.
Ana Barros inscreveu este ano letivo a filha, Lia. “Há dois anos que ela me pedia para estudar música”. A mãe, esteticista a terminar o curso de turismo, afirma que a vontade não deriva de influência familiar. “Acho que foi na televisão que ela começou a ver, depois a pedir, mas as aulas privadas são muito caras e nos pólos ela não tinha horário para entrar”. A única possibilidade era a EMCN. Ana Barros pesquisou na Internet e descobriu que havia ensino integrado. “Disse que a inscrevia, apesar de vir de Odivelas e ser um bocadinho longe para ir e vir todos os dias”, admitiu. Está a gostar da escola. “As pessoas são muito agradáveis, os colegas entre si são muito afáveis, muito amigos uns dos outros. Estou a gostar mesmo muito do ambiente que aqui se vive”.
Beatriz Duque e o seu violino também entraram no Conservatório este ano, mas aos 10 anos, Beatriz já fala em levar a sua música para outro país, como fez Maria João Pires. “Se tiver de ser…”.
A música é assunto sério
Fazer da música profissão em Portugal está longe de ser fácil. Mas o ensino da música mudou muito. Evoluiu, democratizou-se e já é levado a sério, nomeadamente ao nível do ensino superior. “Uma pessoa fazia um curso e fazia música se quisesse, que foi o que nós na minha geração fizemos”, recordou Ana Mafalda Pernão, que teve de se licenciar em arquitetura para ser “doutora”. Maria José Borges licenciou-se em história. Com o tempo, as pessoas começaram a encarar o curso de música como o curso principal. “Ainda hoje, em certas reuniões, se chama, por exemplo, o Jorge Moyano, que é pianista e professor da EMCN, por senhor arquiteto, porque ele tem o curso de arquitetura, ainda que nunca tenha exercido arquitetura na vida. Mas isso passou, de facto. Hoje em dia um pianista é um pianista”.
Hoje, os alunos podem escolher a EMCN como escola principal a partir do quinto ano e depois podem seguir para a Escola Superior de Música, ao contrário do passado. A criação do ensino integrado aconteceu em 2007/2008, quando Maria de Lurdes Rodrigues era ministra da Educação, uma possibilidade que os alunos a partir do quinto ano só tinham até então no Conservatório de Braga. A EMCN produz em 2015 a primeira “fornada” de alunos de ensino integrado, desde o quinto até ao 12.º ano. Uns continuam para a Escola Superior de Música, mas “muitos vão para o estrangeiro”, avisou a diretora.
No último ano letivo, as inscrições foram superiores ao número de vagas, sinal de que há cada vez mais alunos interessados em aprender música. Mas, para além das interrupções por chuva nas salas e protestos por obras, outro fator roubou aulas aos alunos: o atraso na colocação de professores do ensino vocacional. Neste caso, os outros conservatórios públicos e as escolas secundárias de ensino artístico especializado, como a António Arroios em Lisboa e a Soares dos Reis no Porto, também foram afetados. A 1 de outubro de 2014, a EMCN assinalou o Dia Mundial da Música com um protesto à porta do Ministério da Educação.
“Como sempre, a cultura e o ensino artístico são sempre colocados para trás e, portanto, tudo isto tem levado muito tempo. Ao levar muito tempo, os problemas em vez de se resolverem vão aumentando”. A declaração de Ana Mafalda Pernão foi feita em outubro, a propósito das três semanas de atraso sobre o início das aulas, mas bate certo com o atraso de vários anos na resposta ao pedido de obras. Alunos, pais, professores e direção prometem não desistir. Até agora, têm cumprido.