“As gerações anteriores queriam ter o peixe comprado, o carro comprado. Queriam ganhar um salário, se possível, a trabalhar toda a vida na mesma empresa.” O panorama, entretanto, mudou, constata Maria-Luz Vega, coordenadora da iniciativa Futuro do Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Hoje, os jovens “viajam, não se importam de trabalhar fora”. E é bom que não tenham essas barreiras, porque vão ter de mudar de emprego mais vezes do que as gerações anteriores. Mas com salários [comparativamente] mais baixos e empregos precários.
Em Espanha, de onde é natural a especialista em direito laboral, há os ‘mileuristas’ — jovens que ganham mil euros e que não conseguem sair desse patamar. Se o termo fosse aplicado a Portugal, falaríamos dos ‘setecentistas’ — os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE) apontam para um salário médio de 757 euros nos jovens entre os 25 e os 34 anos.
Em entrevista ao Observador, à margem do Labour 2030, uma conferência sobre o futuro do mercado de trabalho, Maria-Luz Vega fala sobre as tendências que se avizinham nos empregos — desde os robôs, que apesar de necessários, não vão substituir o Homem em todas as tarefas, à flexibilidade no emprego e aos jovens que hoje vivem melhor do que nas gerações anteriores”, embora “não sejam mais felizes”.
Um estudo da OIT diz que dois terços dos empregos em todo o mundo podem parcial ou totalmente ser automatizados nas próximas décadas. O que vai acontecer ao trabalhador comum?
Vai haver várias mudanças. Não é a primeira nem será a última vez que enfrentamos mudanças radicais devido à aplicação de novas tecnologias ou à existência de formas mais modernas de trabalho. Existem dois estudos da OIT, tanto dos anos 40, como dos anos 70, em que se avançavam teorias catastrofistas, de que as novas tecnologias iriam implicar o desaparecimento de empregos. A única diferença agora é que estamos a viver uma revolução mais rápida e isso deve fazer-nos tomar medidas mais rápidas. O que vai implicar são mudanças no mercado de trabalho, algumas para o bem. Por exemplo, os trabalhos mais perigosos podem desaparecer, o que seria uma grande vantagem, podendo levar ao desaparecimento das formas de trabalho infantil e escravo. Deixariam de existir porque poderiam ser feitos por uma máquina. O importante é estar preparado para poder melhorar as competências dos trabalhadores, levando-os a adaptar-se.
Além de destruir uns trabalhos criaria outros ou este é um cenário utópico?
A sociedade está a criar novos setores. Não há só uma necessidade de melhorar competências tecnológicas, há a necessidade de os trabalhadores terem melhores competências no que toca às chamadas soft skills. É fundamental terem um conhecimento melhor de como relacionar-se. Creio que há áreas que vão tornar-se essenciais, como a economia do cuidado, uma economia em que a máquina pode ajudar muitíssimo porque ajudaria nas tarefas mais duras do cuidado. Por exemplo, ajudar a vestir. Existe já um robô que veste os idosos. Mas é uma relação fria. Não estou muito convencida de que gostaria que um robô me vestisse, mas pode ajudar. O que devemos fazer é habilitar as pessoas com maiores competências humanas porque o trabalho vai ter de ser muito humano. A máquina não tem que desumanizar o trabalho.
Mas ter um robô a vestir-me não acabaria com a relação humana?
Não necessariamente, porque basta pressentir a presença humana, de uma maneira diferente. Se pensarmos bem, há 150 anos o que se utilizava para ajudar o trabalho humano era o animal. E o animal foi fundamental no desenvolvimento do trabalho, na agricultura. O animal ajudava. Claro que não trabalhava com racionalidade. Isto é, o trabalho tem um conceito profundamente humano. A máquina, o robô, a inteligência artificial, facilitam a nossa vida, como os animais ajudaram numa economia mais primária. Eles vão mudar a nossa forma de trabalhar, como mudou a máquina a vapor ou o animal. Mas não têm que desumanizar o trabalho. E é importante que não desumanize.
Neste caso do robô, está a tirar o trabalho a alguém que poderia estar a ajudar, um cuidador…
Mas provavelmente o cuidador vai ter outro trabalho. O robô pode ajudar a vestir, enquanto que a pessoa vai dar uma atenção mais pessoal. Ajudar a vestir um idoso ou uma pessoa com incapacidade… isso é um trabalho mais mecânico. A pessoa incapacitada vai continuar a precisar de falar, de ter alguém. O robô não vai responder aos pedidos vitais do ser humano.
Ou seja, na sua opinião há trabalhos que vão sempre existir e vamos sempre precisar deles?
Claro, acredito que vai haver novas formas de fazer o trabalho e os trabalhadores terão de ter competências distintas. Quero pensar que a máquina, os algoritmos, vão ajudar, como já estão a ajudar no desenvolvimento da medicina. Por exemplo, com um algoritmo que ajude a perceber quais os casos precedentes, qual o tratamento para doenças, como o cancro. A máquina não dá o tratamento. Pode dar informação sobre o tratamento em função dos casos precedentes, mas é o médico que o decide.
Os trabalhos mais físicos ficariam, assim, para as máquinas.
Isso é o ideal. Por exemplo, um emprego na construção. Nas empresas mais avançadas, muitas das coisas que se constroem hoje constroem-se com máquinas, como uma grua. Tive a oportunidade de presenciar a criação dos polos olímpicos de Londres e fui ver as medidas de segurança que se tomaram. E havia uma torre enorme, muito bonita, com muita estrutura. Foi construída por três trabalhadores, todos atrás de uma grua. Era uma torre construída do exterior por uma máquina. Foram três trabalhadores que a construíram! A construção em Londres só teve, em cinco anos, um acidente grave, nenhum mortal. Porquê? Porque se tomaram medidas com as máquinas a partir de um sistema de informação e aumento de competências dos trabalhadores, que recebiam informação através dos telemóveis. Recebiam a informação telefónica com fotografias porque nem todos falavam inglês. Só houve um acidente grave.
Portanto, as máquinas ajudam a diminuir a mortalidade no trabalho?
Supõe-se que sim. Pode haver outro tipo de mortalidade, que estamos a enfrentar, como consequência da aplicação das novas tecnologias e desta nova sociedade. Um eurobarómetro francês mostrou, com alarme, que os menores de 30 anos em França estão a sofrer muito mais doenças cardiovasculares ligadas ao trabalho, a ansiedade e stress, do que o que se sofria antes.
Relativamente a essa questão do stress e do uso de máquinas. Há um debate sobre a possibilidade de, no futuro, o nosso horário de trabalho diminuir. Já não precisaríamos de trabalhar tantas horas porque teríamos ajuda das máquinas. É um cenário realista?
Não sei. Poderia ser, teoricamente, e seria o ideal, mas o certo é que a famosa sociedade de 24 sobre 24 horas está a impor-se. E o direito à desconexão está ligado ao uso das máquinas. As pessoas estão hoje ligadas à máquina. E nem sempre é culpa ou responsabilidade da empresa. Será que eu é que não consigo desconectar-me da máquina? Sou capaz de não ver o meu email a toda a hora? Precisamos de mudar a nossa perspetiva. É difícil prever como se vai utilizar o tempo de trabalho porque o que é profissional e pessoal aparece cada vez mais misturado. Na saúde, isso vê-se. Quantas doenças hoje são somente profissionais, sobretudo as psicológicas, como o stress?
Em Portugal trabalha-se, em média, 45 horas por semana, ou seja além das 40 horas semanais previstas na lei, segundo a OIT. Estes horários são os ideais para incrementar a produtividade?
O que temos visto é que a produtividade não está a aumentar, apesar de se trabalharem mais horas. Provavelmente a máquina ajudaria a melhorar a produtividade e também possibilitaria uma melhor organização do trabalho e do tempo de trabalho. Posso ser muito mais produtiva no meu emprego dependendo de como me organizo a mim mesma. Isso é fundamental. Não sei é se estamos prontos para nos organizarmos de forma a sermos mais produtivos em menos tempo. É um tema de competências. Não creio que sou produtiva como podia ser a todas as horas. Há momentos de declive da produtividade.
A máquina iria ajudar-nos.
Deveria. Não posso fazer previsões, não tenho uma bola de cristal.
Portanto, os empregadores ainda vão precisar dos trabalhadores no futuro?
Escrevi muito sobre o futuro do trabalho. É uma falácia dizer que só vamos precisar de robôs. É verdade que podem simplificar o nosso trabalho. Nos supermercados atualmente, por exemplo, já não existem tantas caixas registadoras com funcionários como antes. Já podemos ser nós a passar as compras pelos leitores automáticos, o que até dá jeito, sobretudo se temos compras pequenas. Por isso, vão ser eliminados uma série de postos de trabalho. Mas vão ser precisos outros empregos. Se somos nós quem faz o scan, tem de haver alguém que controle que um menor não compra álcool, por exemplo. As pessoas continuam a ser precisas. Agora… é possível que em vez de 10, passem a ser cinco.
E para onde vão os outros cinco?
Os supermercados vão precisar de outras atividades. Um programador tem de garantir que o leitor de scan funciona, por exemplo. Há mudanças contínuas.
Quem seria mais prejudicado com esta automação?
O que dizem os especialistas dos temas de emprego é que as pessoas com menores qualificações seriam mais afetadas porque a máquina pode substituir esses trabalhos. Mas é uma questão de setores. Há vários estudos que referem que profissões como a de bibliotecário vão desaparecer. Mas mais do que desaparecer, vai haver mudanças importantes na natureza do trabalho.
Como por exemplo?
Penso como advogada. Tenho de ter comigo a jurisprudência, todas as sentenças e as leis. Uma máquina pode encontrar o que preciso em função de cada caso. Isso seria fantástico, poupar-me-ia tempo de trabalho de forma significativa. Iria ajudar-me, mas o fator humano continua a ser necessário. Provavelmente reduzir-se-á a necessidade de ter ajudantes na hora de fazer a pesquisa. Mas, no início, quando comecei a trabalhar, não havia internet. Não estudávamos com a internet, mas estudávamos com enciclopédias. Aprendia-se e estudava-se na mesma. Hoje, em vez de estar duas horas à procura de algo, encontro em minutos no Google. As máquinas poderiam ajudar-nos. A questão sobre os empregos mais prejudicados… é difícil dizer se se vão extinguir ou se se vão modificar. Vai haver modificações e alguns trabalhos vão mudar tanto que vão acabar naturalmente. No caso de um bibliotecário: a classificação dos livros pode ser feita por uma máquina. Aliás, as bibliotecas hoje em dia já são muito digitais. Mas preciso de um programador para ensinar a máquina a fazer essa classificação.
E qual seria o papel dos sindicatos, no meio destas mudanças?
Seria fundamental. A questão é se eles estão preparados para enfrentar os desafios. É isso que me preocupa. As relações laborais, o diálogo social e a negociação coletiva são fundamentais para enfrentar esta mudança. A lei tarda em modificar-se e num processo de mudança tão rápido como aquele que estamos a viver, precisamos de atores sociais, como os sindicatos, fortes e capazes de lutar utilizando os meios como a negociação coletiva. Pode ser complicado se não o fizerem.
E há hoje menos jovens nos sindicatos…
Os sindicatos têm de ganhar de novo a confiança. Há uma necessidade de levar o trabalhador a voltar a confiar no sindicato porque o sindicato pode prestar serviços que mais ninguém lhe vai prestar. A força coletiva do sindicato é indispensável. As organizações sindicais podem renovar-se e atender às necessidades dos seus membros. Aliás, são os próprios sindicatos que o dizem. Sabem que é necessário reinventar-se, rever-se, porque o papel dos sindicatos é essencial. Não sei é se estão suficientemente preparados.
Falta-lhes capacidade de comunicação?
É que estamos numa economia informal. Um ciclista da Uber, que está numa bicicleta, não tem um local de trabalho fixo, para alguns nem é sequer considerado trabalhador por conta de outrem, anda carregado com uma caixa com comida, ou o que quer que seja. Neste caso, como se atrai o trabalhador para o sindicato? Os sindicatos têm que ir buscar novas formas de chegar aos trabalhadores. Usar apps, os conhecimentos de startups, etc., para mobilizar os trabalhadores.
A OIT, que comemora o centenário este ano, sugeriu que os países adotassem uma “garantia laboral universal”. Em que consiste?
A garantia laboral universal é fruto de uma comissão de que fui coordenadora, a comissão para o futuro do trabalho que foi criada no centenário para uma declaração da OIT que acaba de ser aprovada. Uma das propostas foi a criação de uma garantia universal laboral, que é um grupo de direitos fundamentais no trabalho, desde a proteção social, o tempo de trabalho, a saúde. No fundo é um conjunto de direitos que teriam de aplicar-se a qualquer trabalhador, qualquer que seja o estatuto — trabalhador por conta de outrem ou independente — e um conjunto de direitos mínimos que deveriam ser garantidos para todos os que exercem uma atividade laboral.
Falou da questão do tempo de trabalho. Um estudo recente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) concluiu que há trabalhadores que não aderem a medidas para a conciliação entra trabalho e família que são oferecidas pelas empresas porque têm receio de ficarem mal vistos. Porque ainda acontece isto?
É difícil responder. É necessária uma mudança de cultura. Sempre houve coisas mal vistas no local de trabalho e que mudaram. Há coisas que temos de passar a ver como normais, e esta é uma delas. É uma questão de cultura, de trabalho, nomeadamente pelos atores sociais, de tornar esta uma prática normal.
Por exemplo, a partir deste ano, os funcionários públicos estão dispensados três horas no primeiro dia de aulas dos filhos para os acompanharem à escola. Deveria ser uma medida generalizada?
É uma medida positiva, sobretudo se se aplicar a homens e mulheres. O importante é que os homens também possam assumir essa conciliação. Creio que cada vez mais, sobretudo as gerações mais jovens, sabem que é preciso assumir que o cuidado da família é comum. Que todos trabalham e todos têm de participar na mesma maneira.
Que outras medidas poderiam ser aplicadas?
Têm de haver incentivos, nomeadamente para a igualdade de género. É um tema em que já se fez muito, mas ainda há muito para fazer. Ainda há uma brecha salarial. São precisas políticas como, por exemplo, o sistema de quotas, que pode ser benéfico nalguns casos. E promover a igualdade. Os homens têm de assumir mais responsabilidade, e isso faz-se através de incentivos.
Mas mais de 80% dos trabalhadores em Portugal tem o horário fixado pelas empresas. Não há muita flexibilidade…
A flexibilidade depende do trabalho que se realiza. Pode aplicar-se a toda uma série de sistemas como os bancos de horas. Por exemplo, tenho de trabalhar 40 horas por semana — e a OIT até recomenda que devia seria menos –, mas, se prefiro ter uma tarde livre, porque me apetece fazer as minhas coisas, ou cuidar dos meus filhos ou simplesmente ir ao cabeleireiro, porque tenho o direito de ir ao cabeleireiro, posso tentar não trabalhar naquela tarde.
Ou seja, trabalhar mais nos outros dias.
Há que respeitar sempre os descansos mínimos. Podemos não acumular horas, ou acumular se me interessa ter dias livres para atividades profissionais. Isso vai ajudar-me a ser mais feliz. A flexibilidade permitiria, justamente, aos pais estarem mais tempo com os filhos, irem ao médico com eles ou resolver problemas na escola.
A precariedade ainda domina muitos contratos em Portugal, sobretudo na população mais jovem. Há alguma tendência de reversão desta realidade?
Há ainda várias formas de precariedade, e para isso serviria a garantia laboral universal, para garantir que qualquer tipo de contrato atípico daria garantias mínimas aos trabalhadores. Temos ainda formas de trabalho absurdas. Por exemplo, em Inglaterra, com os contratos de trabalho de zero horas. Como se pode contratar alguém por zero horas?
Ainda é legal?
É legal. Existe em Inglaterra e na Irlanda. Os empregadores contratam um trabalhador sem garantias de que lhes vão dar horas de trabalho. Se não trabalhas, não recebes. É o empregador que decide quando trabalhas. Tem sido alvo de muita discussão.
Tendo em conta situações como essa, parece-lhe que os jovens hoje vivem melhor ou pior do que os pais?
Não sei. Em termos de mercado de trabalho há uma maior taxa de desemprego jovem. Efetivamente, em termos de emprego penso que estamos com maiores dificuldade de acesso. E muitos jovens vivem mais tempo em casa dos pais, querem sair e não conseguem. Mas há outras facilidades. Temos jovens mais preparados para entrar no mercado de trabalho, com mais estudos e com maior qualificação.
Mas têm salários baixos…
Sim, é a precariedade dos chamados millennial. Em Espanha, falamos dos ‘mileuristas’, jovens que ganham mil euros por mês e não conseguem sair desse patamar, com contratos às vezes que não lhes dão estabilidade. Mas há diferenças. As gerações anteriores queriam ter o peixe comprado, o carro comprado. Queriam trabalhar na mesma empresa e ganhar um salário, se possível a trabalhar toda a vida na mesma empresa. Hoje não. Calcula-se, num estudo da McKinsey, que os jovens de hoje vão mudar 13 vezes do posto de trabalho até ao final da sua vida. É apenas um cálculo. Mas hoje os jovens viajam, não se importam de trabalhar fora. Gostam de ir para fora. Há uma mudança importante, mental, embora seja um facto que o desemprego permanente é maior entre população mais jovem. Nalguns países é de 40%. Mas sim, em termos gerais, penso que os jovens hoje vivem melhor do que nas gerações anteriores, mas não creio que sejam mais felizes.