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William Melvin Kelley - Página oficial do Facebook

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Esquecido, mas finalmente recuperado: William Melvin Kelley e a escrita ao som de um tambor diferente

Décadas após um aclamado primeiro romance, William Melvin Kelley caiu no esquecimento. Até que uma reedição e um artigo o resgataram e o proclamaram “o gigante perdido da literatura americana”.

Quando William Melvin Kelley publicou o seu primeiro romance, Um Tambor Diferente, a crítica comparou-o a grandes autores norte-americanos, como William Faulkner, Isaac Bashevis Singer e James Baldwin, e incluiu-o entre os mais talentosos escritores afro-americanos da sua geração. Quatro livros depois, Melvin Kelley desapareceu. No espaço de oito anos, publicou cinco livros, mas nenhum depois de 1970, provavelmente desmotivado pela fraca receção que tinham tido. Quando morreu, em 2017, aos 79 anos, poucos sabiam quem era. E assim permaneceu, um incógnito na história da literatura norte-americana, até 2018, quando um artigo de Kathryn Schulz na The New Yorker o apresentou como “o gigante perdido da literatura americana”.

O artigo da revista The New Yorker fez gerar um novo interesse em torno do autor de Nova Iorque, em especial da sua obra de estreia, Um Tambor Diferente, entretanto republicada nos Estados Unidos da América e publicada pela primeira vez em vários países, como Portugal, onde saiu recentemente pela Quetzal. Uma parábola sobre a situação dos negros no sul dos Estados Unidos da América, o romance aborda, de maneira pouco usual, temas como o racismo, o preconceito e a injustiça social, que o tornam permanentemente atual e muito oportuno numa altura em que ocupam o centro da discussão pública.

Se a situação social e política se mostra hoje propícia à receção de autores como Melvin Kelly, no seu tempo, esta tê-lo-á pelo contrário prejudicado. A fraca atenção dada aos seus livros e a dificuldade em encontrar uma editora para os seus últimos romances levaram-no a desistir muito cedo da publicação, caindo no esquecimento. Quando morreu em 2017, devido a falência renal, foram poucos o que o recordaram. O The New York Times, que lhe dedicou a secção A da página 20 da edição de 9 de fevereiro, anunciou que tinha morrido uma “voz da ficção negra”.

A edição portuguesa de Um Tambor Diferente foi publicado em janeiro, pela Quetzal

Acertar o passo ao som de um tambor diferente

William Melvin Kelley nasceu a 1 de novembro de 1937, no sanatório para tuberculosos de Staten Island onde a sua mãe, Nascissa Agatha Garcia Kelley, estava então internada. O seu pai, William Kelley, era editor no Amsterdam News, um dos mais antigos e influentes jornais afro-americanos do país. O futuro escritor cresceu no Bronx, onde vivia a classe trabalhadora italiana de Nova Iorque. Os seus vizinhos, e também os seus colegas na Fieldston School, eram sobretudo brancos. Aluno excelente, entrou na Universidade de Harvard em 1956, com a ideia de se tornar advogado e juntar-se à luta pelos direitos civis. Contudo, acabou por mudar de curso, para Inglês, onde teve como professores os escritores John Hawkes e Archibald MacLeish e descobriu a escrita, uma atividade que o fazia tão feliz que dizia que não queria fazer outra coisa na vida.

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Em 1960, destacou-se dos colegas ao receber o Dana Reed Prize de melhor trabalho de literário escrito por um aluno de licenciatura pelo conto “The Power Game”, publicado na revista de artes e letras da universidade, The Harvard Advocate. Melvin Kelley parece ter encontrado em Harvard o ambiente ideal, mas o período que passou na universidade de Cambridge, Massachusetts, foi tudo menos perfeito: a mãe morreu durante o seu primeiro ano de faculdade e o pai no último, mudou quatro vezes de área, chumbou uma vez em quase todas as disciplinas menos nas de literatura e desistiu do curso a um semestre do fim para se concentrar na escrita.

Willis Avenue and 148th Street Card Game In The Bronx

William Melvin Kelly cresceu no Bronx, onde vivia a classe trabalhadora italiana de Nova Iorque

Getty Images

A decisão parecia precipitada, mas depressa deu frutos. Dois anos depois de ter deixado Harvard, deu-se a conhecer como escritor, com a publicação do romance Um Tambor Diferente. O título foi retirado de uma passagem de Walden, de Henry David Thoreau, que serve de epígrafe ao livro: “Intimamente considero mau o que a maior parte dos meus semelhantes dizem ser bom, e se há alguma coisa de que me arrependo é muito provavelmente o meu bom comportamento. Que demónio me possuiu para me portar tão bem? Se um homem não acerta o passo com os companheiros, talvez seja porque houve um tambor diferente. Que caminhe ao som da música que ouve, seja qual for o rimo ou a distância”.

Um Tambor Diferente conta como toda a população negra de um estado fictício do sul dos Estados Unidos, situado entre o Mississipi e o Alabama, decide mudar-se para o norte. Durante dias, os habitantes brancos de Sutton, uma pequena localidade nos arredores da capital estadual, New Marsails, assistem perplexos aos negros que chegam de mala na mão e que partem em autocarros apinhados rumo à estação de comboios, onde apanham uma locomotiva para o norte. Estes estranhos acontecimentos, passados em junho de 1957, são narrados pelos brancos, que revelam as razões da subida partida dos negros do sul. Apesar do papel preponderante que têm no desenrolar da história, estes nunca revelam o seu lado da narrativa, que é contada exclusivamente da perspetiva das personagens brancas.

Isto aplica-se a todos os que desaparecem rumo à estação de comboios New Marsails e também ao responsável pelo êxodo da população negra, Tucker Caliban. Até pouco tempo antes dos acontecimentos descritos em Um Tambor Diferente, Caliban era um trabalhador braçal como tantos outros, que vivia e trabalhava numa antiga propriedade que pertencia aos descendentes de um general confederado, Dewey Wilson. Descendente de um escravo tão mítico quanto o próprio general, O Africano, Caliban convenceu o então proprietário, David Wilson, a vender-lhe uma parcela de terreno que ficava nos limites da antiga plantação — o local onde os seus antepassados tinham vivido em escravidão. Abandonou a casa dos Wilson e instalou-se aí com a mulher grávida e o filho pequeno, dedicando-se à agricultura (embora sem qualquer experiência prévia de cultivo). Em junho de 1957, sem que ninguém o conseguisse prever, salgou os campos, abateu o cavalo e a vaca, incendiou a própria casa e partiu perante a incredulidade dos vizinhos brancos que atribuíram as suas ações a um súbito acesso de loucura.

Widener Library

Melvin Kelley frequentou a Universidade de Harvard, onde teve como professores os escritores John Hawkes e Archibald MacLeish. Não concluiu o curso para se dedicar à escrita

Getty Images

Mais do que o simples salgar da terra, o ato aparentemente louco de Caliban significa para ele a recusa de uma condição. Ao cortar todos os laços com os Wilson — os Wilson símbolo do passado esclavagista ainda tão vivo no sul segregado, da impossibilidade de uma vida melhor e independente e do paternalismo e preconceito residual de uma classe que não sabia como lidar com os negros que empregava —, Caliban está a revoltar-se contra um passado de escravidão e contra um presente de servidão, a única saída para uma comunidade à qual não foi dada outra hipótese após a abolição da escravatura.

A saída de Tucker Caliban de Sutton e do sul dá origem a uma onda de migrações entre a população negra. Muitos não sabe porque partem, como que impelidos por uma força maior do que eles próprios — sabem apenas que têm de ir. E vão — no final do romance, não resta um negro em New Marsails, e os brancos, outrora desorientados com a fuga de toda a comunidade, agradecem o seu desaparecimento e convencem-se a eles próprios de que, a partir de daquele momento, será tudo melhor.

Estes acontecimentos vão-se desenrolado sobre o olhar atento de uma criança conhecida como Senhor Leland. O filho mais velho de Harry Leland, que o pai procura afastar dos preconceitos da sua geração e dos seus companheiros de copos na loja do Senhor Thomason, representa a esperança de um futuro melhor — mais igualitário, mais solidário e mais humano —, que o êxodo da comunidade negra parece anunciar. E a ingenuidade do Senhor Leland, que vai analisando como pode o que se passa sem que realmente consiga compreender a situação, quase convence o leitor que o futuro trará um mundo melhor. Uma ilusão que é desfeita nas últimas páginas do livro, marcadas por um racismo violento, capaz de chocar os mais sensíveis. Afinal, os perigos de ontem não passaram e o futuro poderá não ser assim tão brilhante.

Portrait of William Melvin Kelley

Da esquerda para a direita: Melvin Kelley em 1963; em Roma, em 1963-64, onde viveu após deixar os EUA; e em Paris, em 1968, onde deu aulas de literatura norte-americana

Getty Images

E depois o esquecimento

Após Um Tambor Diferente, os livros foram-se sucedendo uns aos outros com alguma rapidez: em 1964, publicou uma recolha de contos que tinham saído em revisas literárias, Dancers on the Shore, que, segundo o The New York Times, o afirmou como uma das vozes mais originais na nova geração de escritores norte-americanos. A coletânea volta a tocar temas como o racismo e a injustiça social, mas Melvin Kelley procurou afastar a ideia de que era um escritor político. Na introdução de Dancers on the Shore, escreveu: “Para que fique claro, deixem-me dizer que não sou um sociólogo ou um político ou um porta-voz. Essas pessoas tentam dar respostas. Enquanto escritor, penso que devo fazer perguntas. Um escritor deve retratar pessoas, não símbolos ou ideias disfarçadas de pessoas”.

Em 1965, publicou o segundo romance, A Drop of Patience; e em 1967, o terceiro, dem, uma sátira provocadora focada, tal como Um Tambor Diferente, numa personagem branca. Mitchell Pierce, empregado de uma agência publicitária de Nova Iorque, está a atravessar uma crise, que o leva a afastar-se gradualmente do seu trabalho, da sua mulher, de si próprio e, por fim, da realidade. A sua vida dá uma reviravolta inesperada quando a sua mulher, Tam, que engravidou por super-fecundação (fertilização de dois óvulos por dois homens diferentes), dá à luz duas crianças, uma de pele branca e outra de pele negra. A história deste “anti-herói branco de meados do século XX”, como lhe chamou Kathryn Schulz, foi escrita em França, onde Melvin Kelley residiu durante alguns anos enquanto dava aulas de literatura norte-americana na Universidade de Paris. Foi também na capital francesa que, após uma temporada em Roma, nasceu a sua segunda filha, Cira. O escritor casou em 1962 com a estudante de arte Karen Gibson (mais tarde Aiki Kelley), que tinha conhecido quando tinha 17 anos.

Depois de alguns anos em Paris, o casal, que após os assassinatos de Malcom X e Martin Luther King tinha decidido que não queria criar as duas filhas nos Estados Unidos, mudou-se para a Jamaica, onde tinha família. William e Aiki Kelley passaram quase uma década no país, dedicando-se à escrita e às artes plásticas e educando as filhas em casa. Foi durante o período que passou na Jamaica que Melvin Kelley, que tinha tido uma educação cristã, se converteu ao judaísmo, na sequência de um interesse crescente nas Sagradas Escrituras. Adotou as crenças e práticas judaicas e a comemoração dos principais judeus, mas nunca se juntou a uma congregação ou entrou numa sinagoga.

Melvin Kelley, a mulher Aiki e as duas filhas, Jessica e Cira

William Melvin Kelley - Página oficial do Facebook

O quarto romance de Melvin Kelley, Dunfords Travels Everywheres, foi escrito e publicado ainda durante o período jamaicano, antes de o escritor e a família regressarem aos Estados Unidos e a Nova Iorque após os seus vistos terem expirado, em 1977. O livro cruza três histórias distintas e recupera algumas personagens anteriores de Kelley, como Carlyle Bedlow, de dem. A narrativa começa num domingo de agosto, numa cidade de um país europeu fictício, onde existe uma lei segregacionista que todos os dias obriga a sua população a dividir-se em dois grupos: aqueles que usam roupa azul e aqueles que usam roupa amarela. A personagem principal é Chig Dunford, um afro-americano que estou em Harvard. Escrito com recurso à técnica do fluxo de consciência, pela qual James Joyce é famoso, Dunfords Travels Everywheres é o romance mais desafiante do autor e é o culminar de uma abordagem literária mais experimental que Kelley tinha iniciado, ainda que de forma menos evidente, em dem.

Dunfords Travels Everywheres foi o último romance que Melvin Kelley publicou em vida, mas não o último que escreveu — nas décadas seguintes, continuo a dedicar o mesmo entusiasmo e dedicação à escrita, que tinha descoberto no final dos anos 50 e que tinha adorado tanto ao ponto de querer desistir de tudo, até de Harvard, para a perseguir. Quando morreu, a 1 de fevereiro de 2017, havia entre os seus papéis pelo menos dois romances, Daddy Peaceful e Dis/integration, que tinha tentado publicar muitos anos antes, mas sem sucesso, e uma quantidade considerável de outros textos em prosa que permanecem inéditos.

A queda do pedestal em que foi colocado após a publicação de Um Tambor Diferente é um dos grandes mistérios da vida de Melvin Kelly. Sobre as razões que levaram ao seu esquecimento no meio literário é apenas possível especular. Na opinião de Kathryn Schulz na The New Yorker, um dos motivos terá a ver com uma mudança no clima político e com o afastamento do movimento dos direitos civis do cerne das preocupações sociais e políticas. Melvin Kelly, que se manteve sempre fiel a si mesmo, continuou a advogar uma “revolução” que, nas palavras da sua mulher, tinha sido feita e perdida. Mas esse não terá sido o único problema.

Police Carry Stretcher with Malcolm X's Body Marching In Memphis

Após a morte de Malcom X e Martin Luther King, Melvin Kelley e a mulher, Aiki, decidiram que não queriam criar as filhas nos Estados Unidos da América

Bettmann Archive

Uma das principais características de Melvin Kelly, que o distingue de outros autores, é a preferência por personagens brancas, que revelam a forma preconceituosa como os brancos olham os negros. Foi essa a estratégia narrativa que usou em Um Tambor Diferente e explorou em obras posteriores. No seu primeiro romance, a ação é despontada pelos negros, mas apenas os brancos têm voz. Pouco nos é revelado acerca das personagens negras, cujos pensamentos, emoções ou motivações é preciso adivinhar. Isso aplica-se ao próprio Tucker Caliban. Personagem enigmática e de poucas palavras, até a própria mulher, Bethrah, parece por vezes ter dificuldade em compreendê-lo. A forma como se sente em relação ao seu passado esclavagista e à ligação dos seus antepassados e de si próprio com a antiga plantação, que determina a sua saída da cidade, nunca é dita e só pode ser deduzida através dos gestos aparentemente drásticos que as personagens brancas descrevem. Nesse sentido, o livro revela muito mais sobre a perspetiva que os brancos têm dos negros do que sobre os sentimentos dos negros em relação aos brancos.

Esta forma peculiar de denúncia é o ponto forte de Um Tambor Diferente — é aquilo que o distingue e é a razão pela qual tem sido tão elogiado. “O génio de Kelley foi escrever um livro inteiro do ponto de vista dos habitantes da cidade que foram deixados para trás”, comentou Jon Butler, diretor da editora Quercus, que publicou o livro no Reino Unido em 2018. Em declarações ao The Guardian, Butler apontou que esta incapacidade de lidar com o facto de os negros não quererem permanecer no sul trata-se de “uma acusação contundente da incapacidade do sistema lidar com a desigualdade”, que continua ainda pertinente, “sobretudo no tempo do Black Lives Matter”.

Embora “inteligente e importante”, como considerou Schulz, esta perspetiva pouco usual na literatura afro-americana, por recorrer a personagens brancas para falar sobre a realidade da comunidade negra, acabou por prejudicar o autor. Independentemente da qualidade da sua obra, havia, naquele tempo, poucos leitores dispostos a aceitá-la: os leitores brancos dificilmente aceitariam que um escritor negro lhes dissesse como pensavam e os leitores negros, que ansiavam há muito por uma literatura representativa dos seus problemas e dificuldades, dificilmente teriam interesse em ler mais uma obra que apresentava exclusivamente o ponto de vista dos brancos.

O experimentalismo de algumas obras, nomeadamente Dunfords Travels Everywheres, terá também contribuído para a fraca receção dos últimos livros do escritor e para o seu gradual desaparecimento da galeria de importantes autores norte-americanos, onde muitos críticos o colocaram quando lançou Um Tambor Diferente. Em entrevista ao Observer, Aiki Kelley admitiu que os últimos trabalhos do marido são geralmente descritos como “experimentais e difíceis”, defendendo que, na sua opinião, são “divertidos, inteligentes e interessantes. Ele não escrevia como mais ninguém”. Um Tambor Diferente foi o início deste “mundo” e é talvez o melhor cartão de apresentação de um escritor finalmente recuperado.

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