A maioria absoluta do PS pode ter deixado a esquerda de costas voltadas, mas já há quem projete novos entendimentos — de olhos postos no futuro. Numa altura em que várias figuras à esquerda se acabam de unir para criar uma espécie de think tank desta área política — a Associação Causa Pública, liderada por Paulo Pedroso — surge a ideia de uma possível candidatura presidencial que reúna apoios alargados e de vários partidos. E já há um nome que circula pelos corredores da esquerda: o da socialista Alexandra Leitão.
Em entrevista ao Observador, que será publicada na íntegra esta sexta-feira, confrontada com a hipótese, a ex-ministra não excluiu o cenário, admitindo o seu “interesse” em entendimentos à esquerda. “A primeira coisa que me vem à cabeça, mas que sei que é falsa, é que sou muito nova para isso — mas sei que é falsa, infelizmente, porque já não sou assim tão nova”, começou por dizer Alexandra Leitão, antes de rematar: “Tenho muito interesse em todas as situações que possam implicar um entendimento alargado à esquerda”.
A socialista não assumiu um interesse específico no cargo, mas antes em “personificar, ou aparecer, em que lugar seja, em que cargo seja, no meio de uma lista (nem que seja abaixo na lista) de um entendimento desse género”. Desafiada a falar concretamente sobre a hipótese de entrar na corrida às presidenciais, Alexandra Leitão não esconde que seria desafio “um bocadinho diferente” para a fase da vida em que se encontra, embora não o rejeite taxativamente: “Qualquer coisa que fosse protagonizar, se quisermos dizer esta palavra um bocado exagerada, um entendimento desse tipo para mim é uma coisa interessante“.
Ao contrário do que diz sobre as presidenciais, onde assume, pelo menos, que seria “interessante” e uma ideia a considerar, a hipótese de entrar numa lista do PS às eleições europeias está completamente afastada. “Não”, garante a ex-ministra, explicando depois que é uma questão de vocação e não um qualquer distanciamento em relação à vida do partido.
“Que não se pense que [a recusa das europeias] é porque não aceito lugares, porque haveria outros que aceitaria, mas não tenho interesse nesse lugar. É só por isso, não é por ser uma coisa do meu partido, terei todo gosto e estou totalmente disponível para outros desafios que alguém do meu partido possa entender que eu posso servir. Que fique bem claro que sim, estou disponível para outras coisas”, sublinha.
Falta de candidatos viáveis abre espaço
Numa altura em que está longe de ser óbvio que exista um nome consensual (e potencialmente vencedor) na área socialista, existe, à esquerda, quem lhe queira lançar o desafio de protagonizar uma corrida a Belém. No PS não falta quem acredite que Augusto Santos Silva, o primeiro nome que apareceu na pré-corrida presidencial, até poderia “dar um bom Presidente, mas não um bom candidato”.
Não é difícil perceber porquê: testado nas sondagens há meses, o presidente da Assembleia da República, que tem conseguido protagonismo graças aos recorrentes embates com o Chega, não dá sinais de descolar ou de conseguir percentagens além de uma votação residual. Além disso, apesar de se estar a tentar posicionar como um opositor a André Ventura, nem assim consegue convencer a esquerda à esquerda do PS — seria mesmo um candidato “inviável“, sentenciava, ainda em maio, Francisco Louçã, em entrevista ao Público e à rádio Renascença.
De resto, entre os nomes testados nas sondagens, constatam-se nos corredores da esquerda várias evidências: por um lado, o nome consistentemente mais bem colocado na corrida, do ex-primeiro-ministro António Guterres, dificilmente voltaria a Portugal para tentar Belém — e estará nessa altura ainda a cumprir o mandato como secretário-geral das Nações Unidas. Por outro, e embora em política um “não” se transforme num “sim” com alguma frequência, o outro nome que aparece à frente nas sondagens é o de António Costa, que dificilmente poderia ter negado a hipótese de forma mais assertiva: “Esqueçam! Nunca, jamais, em tempo algum”. E a ala mais à esquerda do PS não é particularmente fã da hipótese Mário Centeno, visto como um símbolo da obsessão com o excedente orçamental.
Leitão com menos anticorpos
À esquerda resta, por isso, uma conclusão: existe um espaço por preencher, e que até agora não está ocupado pelos nomes que vão sendo testados nas sondagens. Junta-se a isto outro fator: as últimas eleições presidenciais, Ana Gomes avançou sem o apoio formal do PS (contava com a ala pedronunista), cenário que até pode voltar a repetir-se — até ver, a própria não se pronunciou sobre o assunto, tendo dito esta semana ao Observador que discutir sequer a hipótese seria “distrair” os portugueses dos assuntos que verdadeiramente interessam.
Ainda assim, uma eventual candidatura de Ana Gomes também não convence a esquerda à esquerda do PS. Apesar de ter, na análise de Bloco de Esquerda e PCP, ‘roubado’ votos aos respetivos candidatos (que eram, em 2021, Marisa Matias e João Ferreira), há muito quem na esquerda critique o que caracteriza como o “populismo penal” da antiga candidata ou algumas das suas posições relativas à Ucrânia.
Na ala mais à esquerda do PS — liderada pelo eterno-futuro candidato Pedro Nuno Santos –, há quem veja com muito bons olhos a ideia de voltar a entender-se com a esquerda, desta vez para uma plataforma presidencial. Entre os “geringoncistas”, as opiniões dividem-se entre quem elogia Leitão mas acha que é cedo; e entre quem ficaria satisfeito com a hipótese, reconhecendo que haveria muito caminho a fazer para “viabilizar” um nome que não seja o da repetente Ana Gomes.
Leitão não teria os anticorpos de Ana Gomes e poderia representar facilmente uma voz de esquerda ponderada contra uma (ou várias) candidatura(s) da direita, especialmente a da mais radical — mesmo que, mais uma vez, muito dificilmente contasse com o apoio da ala costista — António Costa dispensou-a das suas escolhas para este Governo, apesar de a ex-ministra ter dito publicamente que estava disponível para continuar; desde aí, a antiga ministra nunca deixou de fazer críticas duras (ainda que pontuais) à governação socialista.
Esquerda vê espaço para abrir caminho nas sondagens
Matematicamente, a conta que vai na cabeça de parte da esquerda é simples de fazer: olhando para as últimas sondagens — a mais recente é a do Expresso/SIC, publicada no início da semana — os candidatos associados ao Bloco de Esquerda aparecem relativamente bem colocados, e esses valores poderiam ser somados aos dos candidatos mais à esquerda do PS, no caso de se chegar a uma candidatura que recolhesse apoios mais transversais.
Na sondagem do Expresso, Catarina Martins aparecia em quinto lugar (à frente de Ana Gomes) na lista de candidatos em que seria mais provável que os inquiridos votassem. No final de setembro, uma sondagem da Aximage atribuía uma percentagem de 19% de intenções de voto dos eleitores de esquerda em Ana Gomes e 9% a Francisco Louçã — estas percentagens somadas formariam uma boa base de trabalho para uma candidatura à esquerda, aproveitadas por um nome que não trouxesse consigo grandes rejeição. E é aí que entre Alexandra Leitão.
No caso do Bloco, o cenário não seria inédito: em 2010, Francisco Louçã anunciava o apoio do partido ao socialista Manuel Alegre, na corrida que seria depois ganha pelo recandidato Cavaco Silva. “É muito importante que haja uma candidatura [presidencial] que à esquerda não seja uma candidatura de partido”, defendia na altura. “Nem deste nem daquele partido, porque uma candidatura presidencial não é de partido. O Bloco de Esquerda, que sabe fazer escolhas sobre os seus lados de combate, que sabe que o combate tem que ser mais duro, sabe também nestas eleições convocar uma grande força para uma maioria”, rematava então.
Já no PCP as hipóteses de um entendimento parecem bem mais remotas. O partido tem optado sempre por apresentar um candidato próprio, tendo apenas desistido nas presidenciais de 1996, quando o candidato era Jerónimo de Sousa e preferiu apoiar Jorge Sampaio em alternativa a fragmentar uma esquerda que se unia contra Cavaco Silva. Para o PCP, o cenário era extremo — e, até ver, irrepetível.