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Vendas, medicina, comunicação, justiça — o que dizem os trabalhadores e o que diz a lei
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Vendas, medicina, comunicação, justiça — o que dizem os trabalhadores e o que diz a lei

Vendas, medicina, comunicação, justiça — o que dizem os trabalhadores e o que diz a lei

Estar ligado das 8h à meia-noite. Se há quem exija o direito a desligar, também há quem ache que faz parte do negócio

Sobre a lei portuguesa, os trabalhadores dizem ser frágil, incapaz de mudar a realidade em muitos setores de atividade, mas um passo importante, já que é preciso começar por algum lado.

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Andreia Surgy bateu com a porta. O trabalho não parava de lhe entrar pela vida familiar adentro, fora de horas, e acabou por se despedir pouco antes de aprovada a lei que proíbe o contacto com funcionários nas horas de descanso. Já Carlos Reis nunca desliga o telemóvel, nem quando vai de férias. Convive bem com isso e acredita que, quando se trata de estar disponível para falar com clientes, não pode desligar.

Dália cansou-se de receber os primeiros telefonemas às cinco da tarde, quando entrava na Ordem às nove da manhã. Nunca eram assuntos urgentes. Simplesmente, conta, os seus chefes dedicavam-se aos seus projetos profissionais durante o expediente normal. Só depois disso começavam a tratar dos assuntos da Ordem profissional, quando a maioria dos funcionários já tinha terminado o seu dia de trabalho.

Com a nova lei ou sem a nova lei (falta a promulgação de Marcelo Rebelo de Sousa e posterior publicação), Allan Spínola não prevê que a sua forma de estar vá mudar: depois de deitar os filhos, após um dia de trabalho, volta a ligar o computador para terminar tarefas e responder a contactos. No seu caso, mais do que as chefias da multinacional onde trabalha, são os clientes e os colegas que mais o procuram fora do horário habitual de trabalho. 

Afinal, quem tem direito a impor o teletrabalho? E que controlo pode o empregador exercer? 22 respostas sobre o que vai mudar

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São muitos os exemplos de trabalhadores, ouvidos pelo Observador, que recebem chamadas telefónicas, emails, mensagens de Whatsapp ou de Facebook de patrões, chefes, colegas e clientes fora do seu horário de trabalho, durante o período de desligar — foi assim que se apelidou este direito em França, o primeiro país europeu a legislar sobre o assunto em 2017. Segundo um relatório do Eurofound, até setembro deste ano, seis Estados-membros da UE (França, Espanha, Bélgica, Itália, Eslováquia e Grécia) tinham em vigor leis que incidem sobre o direito a desligar. E, agora, Portugal.

Já em janeiro deste ano os eurodeputados apelaram à Comissão Europeia para que propusesse uma lei que permita desligar os meios digitais fora do horário de trabalho, que defina os requisitos mínimos do teletrabalho, clarifique as condições de trabalho, o horário e os períodos de descanso, mas a proposta ainda não avançou.

Sobre a lei portuguesa, os trabalhadores que sentem necessidade de maior regulação nesta área, entre os profissionais que falaram com o Observador, a perceção é a de que o pacote de medidas aprovado no Parlamento é frágil, incapaz de mudar a realidade em muitos setores de atividade, mas um passo importante, já que é preciso começar por algum lado, encontrando no diploma, pelo menos, um efeito preventivo. Por outro lado, sem fiscalização, defendem que de pouco servirá. Posição semelhante têm os advogados especialistas em direito do trabalho ouvidos pelo Observador, para quem a lei é positiva ao mostrar “vontade de alterar comportamentos”, mas falha na execução ao ser lata e conflituar potencialmente com outras regras existentes.

Quem corre por gosto não se cansa?

Carlos Reis, de 56 anos, trabalha há 12 numa empresa de importação/exportação de peças de automóvel e, apesar de mal saber o que é o direito a desligar, não lhe passa pela cabeça despedir-se ou trabalhar de outra forma. Fora do expediente, recebe telefonemas do chefe, três a quatro vezes por semana depois da hora do jantar, de colegas que têm dúvidas e precisam da sua ajuda e, claro, de clientes. É a estes que é mais difícil não atender o telefone.

“Nunca posso ter o telefone desligado, nem quando estou de férias. Tenho colegas que precisam de ajuda nas vendas, clientes que precisam de resolver problemas. A concorrência é grande e temos de estar sempre atentos. Se o telefone está desligado, podemos perder um negócio que é bom e rentável. Muitos deles são fechados devido à amizade que vamos ganhando com os clientes e isso implica tratar e resolver muitos assuntos fora de horas”, sustenta. Apesar disso, reconhece que também tem clientes que não têm grande respeito pelo seu descanso e, como sentem que há proximidade, podem ligar a qualquer hora, por qualquer motivo.

Num dia habitual, recebe os relatórios dos seus vendedores depois do jantar, faz questão de responder para que eles possam ter o que fazer logo de manhã, mesmo que o telefone comece a tocar, no dia seguinte, logo às 8h da manhã. “Às vezes estou tão saturado que desligo”, embora confesse que é raro o dia em que a sua obstinação não o leva a responder a emails e a tratar de assuntos profissionais depois do jantar.

Divorciado, com uma filha que já não vive em sua casa, tem um contrato de trabalho com isenção de horário. Saiu de Lisboa para ir montar a filial da Maia e a sua vida particular resume-se ao fim de semana.

A nova lei vai mudar alguma coisa na sua vida? “Absolutamente nada. Estou sempre ligado à corrente.”

"Nunca posso ter o telefone desligado, nem quando estou de férias. Tenho colegas que precisam de ajuda nas vendas, clientes que precisam de resolver problemas. Convivo bem com isto, a concorrência é tamanha neste setor que não nos podemos dar ao luxo de desligar e deixar um cliente sem resposta."
Carlos Reis, 56 anos

Allan Spínola está à beira de fazer 60 anos e desses passou 21 a trabalhar na multinacional HP. Tal como Carlos Reis, acredita que a nova lei não muda em nada a sua vida, até por considerar que foi feita “cegamente e não é abrangente”. No seu caso, são as respostas a clientes que fazem extraviar as horas normais de trabalho, para as quais tem isenção de horário. Pela empresa, sente-se até bastante protegido e lembra que durante o confinamento todos os empregados receberam ordem para trancar uma hora por dia, correspondente ao almoço, para que não fossem perturbados pelos colegas. Noutras alturas, chegou a ser a diretora de Recursos Humanos a dar-lhe indicação para reduzir as horas de trabalho.

“Essa ideia de desligar comigo não encaixa, às 7h30 já estou a trabalhar, até porque se não atender os clientes a possibilidade de fechar negócio diminui. E sei que se um cliente me está a ligar às 21h é porque tem mesmo um problema”, defende, uma situação que acredita que será transversal a quem trabalha nas áreas comerciais. Apesar de tudo, a nível familiar, tenta manter um ambiente são, algo que nem sempre fez, mas que percebeu que tinha de corrigir.

Quanto à lei, que não se aplica a todos os contactos que são recebidos pelos trabalhadores, já que foi pensada apenas para as situações em que é o empregador a ligar fora de horas, tanto patrões como funcionários veem benefícios.

Apesar das fragilidades, Dália, assessora, acredita que a aprovação da atual lei é muito importante, numa altura da vida em sociedade em que as tecnologias dominam as comunicações. “O WhatsApp, por exemplo, foi um presente envenenado, uma das piores coisas que aconteceu em ambiente de trabalho”, defende. Acima de tudo, diz que a alteração ao Código do Trabalho será um alerta para muitas pessoas. “Há quem tenha noção do que faz e de como invade o espaço pessoal dos trabalhadores, mas também há quem nem pense nisso. Penso que pelo menos vai pôr alguns patrões a pensar que cometem este erro, a pôr a mão na consciência e a mudarem de comportamento.”

Jorge Pisco, presidente da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas (CPPME), reconhece que “há abusos de parte a parte” e, por isso, “por vezes, é necessário haver uma lei quando o bom senso não impera”. O representante das PME enaltece, mesmo, a medida por considerar que pode contribuir para um “saudável relacionamento entre empregadores e empregados, para o respeito mútuo”. Mas reconhece que os contactos fora de horas são já quase “automáticos”.

“Contra mim falo, também me acontece estar a jantar, lembrar-me de uma coisa que tenho de dizer aos diretores da Confederação, e cair na tentação de ligar a essa hora”, exemplifica. “Já é automático.”

Também José Salas Pires, presidente da Associação Nacional das Empresas das Tecnologias de Informação e Eletrónica (ANETIE), que representa trabalhadores das tecnologias de informação, vê de forma favorável a nova norma por dar “abertura ao equilíbrio entre trabalho e vida familiar” e incitar a uma maior organização das empresas em relação aos tempos de trabalho.

“Temos de definir o horário em que os trabalhadores estão disponíveis. Acho que é preciso definir regras, e se regras passarem a lei, o nosso quadro empresarial precisa desse tipo de orientação. Se cada um define as suas próprias regras, pode criar-se confusão, coisas absurdas”, argumenta. Há situações em que, considera, o contacto fora de horas é justificado — por exemplo, se se tratar de uma empresa de comércio eletrónico cuja plataforma ficou em baixo e não permite aos clientes fazerem pagamentos; a paragem de uma máquina numa fábrica durante o período de descanso do trabalhador que sabe lidar com ela; problemas numa aplicação que serve milhares de clientes. Já outras “não são justificadas” — “se a chefia se esqueceu de pedir algo que não é crítico para o negócio, não põe em causa milhares de clientes, não se justifica, pode esperar pelo dia seguinte”.

Mas, ao contrário da visão geral dos trabalhadores ouvidos pelo Observador, Salas Pires mostra-se otimista com os efeitos práticos da medida, pelo menos no setor que representa, onde os tempos de trabalho são geralmente registados via software. “Estamos a falar de uma indústria que, por definição, gere dados. Se quiserem montar um caso jurídico é fácil ver quando a pessoa entrou no registo da empresa”, defende.

O advogado Pedro da Quitéria Faria está mais reticente. Por um lado, acredita que a nova lei pode ter um efeito dissuasor, ainda que seja “paulatino e gradual”, que levará trabalhadores a invocar a norma — “Não será uma litigância compulsiva que vai entupir os Tribunais de Trabalho, mas não tenho dúvidas de que existirá aplicação por parte dos trabalhadores”, sublinha. Mas, por outro lado, alerta que a ideia que está a ser transmitida até para o estrangeiro — nomeadamente pela imprensa e pela intervenção de Trevor Noah no The Daily Show — pode “colocar em causa” o investimento de empresas estrangeiras no país.

Comediante Trevor Noah satiriza “direito a desligar” em Portugal. “O que é que eles produzem lá em Portugal, mesmo? Cães de água?”

“Pode-se colocar em causa a aposta no país, porque o período normal de trabalho acaba por ser um dogma absoluto, estar quase cristalizado quando na minha perspetiva não está porque se mantêm em vigor regimes de flexibilidade de horário”, argumenta.

“Sinto-me mal se não estiver ligada, é um bocado como um vício”

A 3 de novembro, o Parlamento aprovou uma proposta do PS — que passa a integrar o Código de Trabalho — que impede o contacto com funcionários no seu período de descanso, regra válida para todos, e não apenas para quem esteja em teletrabalho. Na redação do artigo 199.ºA lê-se que o “empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior”. A violação desta norma constitui uma contra-ordenação grave.

Se em todos os setores o contacto fora de horas pode acontecer, quando o emprego é na área de comunicação, seja assessoria de imprensa, jornalismo ou num gabinete de relações públicas não há hora para o telefone tocar, seja de manhã cedo, seja ao entrar da madrugada.

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quando o emprego é na área de comunicação, seja assessoria de imprensa, jornalismo ou num gabinete de relações públicas, o filme é sempre o mesmo: não há hora para o telefone tocar, seja de manhã cedo

Getty Images

“Eu sei que faço parte do problema”, conta uma jornalista ao Observador. “Não consigo desligar e acho que nesta profissão existe essa pressão para não desligar, sinto-me mal se não estiver ligada, é um bocado como um vício.” Por outro lado, confessa, tem cada vez mais necessidade de ter horários estipulados e de ter uma divisória entre a vida familiar e a profissional. Para isso acontecer, sente que a decisão tem de vir de si. “Tenho de ser eu a pôr algum tipo de travão, a impor-me limites, a mim e às chefias, e cheguei a sair de um jornal quando senti que isso não estava a ser possível.”

Quem lida com jornalistas sabe bem o que é receber contactos fora de horas, como contam uma assessora de uma Ordem no setor da saúde e um assessor de um partido político, que passou vários anos no Parlamento. “Para desligar, é mesmo preciso desligar o telemóvel”, conta o assessor de um dos principais partidos políticos. Se, quando passava os dias nos corredores do Parlamento, os deputados não tinham horas para ligar, com os jornalistas, a história era a mesma.

“É impossível desligar, a atualidade está sempre a acontecer e hoje, com os sites, não há horas mortas. Os jornalistas têm a pressão de pôr cá fora as notícias e nós somos pressionados para dar respostas o mais rápido possível”, conta, lembrando que, em momentos de crise, no país ou no partido, o número de chamadas que recebe fora de horas é tal que se torna humanamente impossível responder a todas. Quanto aos militantes do partido, sejam líderes ou deputados, não há barreiras, nem horários. “Se for urgente, ligam, seja a que hora for. Quem vai para estas funções sabe de antemão que tem de estar disponível praticamente 24 horas por dia.”

Por outro lado, acredita que o trabalho desenvolvido nos partidos políticos e no Parlamento será sempre enquadrado pela exceção prevista na lei, podendo invocar-se “motivos de força maior”.

Ana Catarina Mendes escreve artigo de opinião sobre o “direito a desligar” português no Guardian

Numa das várias Ordens do setor da saúde acontece o mesmo, situação agravada pela pandemia e pelo teletrabalho. “No primeiro confinamento foi insuportável. Recebia chamadas das 8h da manhã à meia-noite. Percebo que me liguem às 6h da manhã se tiver morrido o Presidente. De resto, tive de dizer basta e pôr um travão. Deixei de atender o telefone antes das 9h”, conta uma assessora.

Outro problema que sente, nos contactos fora de horas, sejam eles de jornalistas ou de superiores hierárquicos, é que há demasiadas formas de tentar estabelecer ligação. “São os SMS, o messenger do Facebook, o WhatsApp… Se não se responde de um lado, tentam por outro. Muitas mensagens nem abro, porque isso é também outra forma de controlo. As pessoas sabem se lemos ou não o que escreveram e ficam à espera de respostas imediatas.”

E são contactos devido a urgências? “Quase nunca. As pessoas habituaram-se a pegar no telefone e mandar mensagens por dá cá aquela palha.”

No meio desta realidade, a ansiedade é grande e conta que houve momentos, durante a pandemia, em que ouvir o telefone tocar, mesmo antes de saber quem era, a deixava com ansiedade. “Durante a semana, fico ansiosa, sinto que tenho de estar sempre disponível. Ao fim de semana, ponho o telemóvel do trabalho em modo de voo, mas deixo o pessoal ligado. Como já há quem tenha esse número, qualquer dia, só consigo desligar se arranjar três telefones.”

Andreia Surgy, psicóloga de 42 anos, não podia sequer desligar o telemóvel. A justificação era a de que tinha um aparelho da empresa e que servia para estar sempre ligado, para que ela estivesse contactável quando precisassem de falar com ela, mesmo que o seu horário de trabalho fosse de 35 horas semanais.

“Trabalhava numa associação de intervenção comunitária e muito do meu trabalho era feito no campo, quando tinha que ir ter com os utentes, por exemplo, e ter um telemóvel de empresa fazia sentido. Mas foram ultrapassados todos os limites”, conta Andreia, que chegou a enviar uma queixa à Autoridade para as Condições de Trabalho.

A sua superior hierárquica ligava a toda a hora, “sem pejo se era fim de semana ou se era depois do horário de trabalho”. Os telefonemas nunca diziam respeito a urgências e nunca eram curtos. “Era capaz de me ligar às oito da noite e ficar a falar até às dez da noite. Chegou a ligar-me no dia de anos da minha filha, sabia que tinha a festa de aniversário a acontecer, e prendeu-me ao telefone durante quase duas horas.”

Olhando para trás, sente que teve alguma culpa. “Eu atendia os telefonemas todos, estava num trabalho novo, e respondia a todas as solicitações mesmo que fossem às onze da noite.” Quando começou a querer colocar um travão, chegou a ser ameaçada com uma queixa à Ordem dos Psicólogos. “O argumento era que tínhamos telemóvel da empresa e fazíamos intervenção comunitária, logo, o nosso dever era atender o telefone a qualquer hora do dia e da noite.”

Foi a ameaça de queixa à Ordem, para além de ter sido tratada aos gritos à frente de utentes, que fez Andreia repensar o seu caminho. “Deixei de atender o telefone fora do meu horário, não atendia aos fins de semana. Estava a ficar maluca. E o que ouvi era que se uma psicóloga não está disponível 24 horas para os utentes merece uma queixa à ordem. Outra frase comum era: ‘Já sabe que a nossa profissão é assim.’ Comecei a sentir-me cada vez mais desrespeitada e despedi-me.”

Via os argumentos usados como desculpas e até falta de honestidade da entidade empregadora que, ao contratar uma pessoa, devia deixar bem claro quais são as condições. “A partir daí, aceitamos ou não. Não se pode é usar a isenção de horário para tudo, porque até ela tem limites. Até um médico, que faz bancos, tem, em algum momento, de estar em casa com a família”, sublinha a psicóloga.

Nem sempre o contacto vem dos chefes

Ainda no setor da saúde, enfermeiras e médicas contam como é complicado desligar, embora os contactos nem sempre venham dos superiores hierárquicos, neste caso, as enfermeiras chefes ou os diretores de serviço. “Ser pediatra é muito sui generis, nunca se desliga, e os pais veem no pediatra uma retaguarda, um direito adquirido de o terem disponível sempre que quiserem”, conta a médica Carla Rego. A atitude já existia antes, mas agravou-se com a pandemia, diz.

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Entre enfermeiros, a pressão não chega da parte dos doentes, mas das chefias e, acima de tudo, deriva da falta de recursos humanos nas unidades de saúde

Getty Images

“Os pais acham mesmo que temos de estar sempre disponíveis e ficam muito aborrecidos quando não estamos. Com a pandemia, a exigência dos progenitores aumentou e a intolerância à não disponibilidade é muito grande”, conta, dizendo que é mais frequente ouvir, mesmo que em jeito de piada, que, se não atendeu o telefone às duas da manhã, então não serve para ser pediatra daquela criança.

Os pediatras, acredita a médica, normalmente colocam-se disponíveis 24 sobre 24 horas, e, por isso mesmo, dão os seus telemóveis aos pais das crianças que seguem, mas Carla Rego sente que muitas vezes os pais se esquecem de que os médicos também têm direito a ter os seus tempos em família e ao descanso — muito embora assuma que, quando quer, desliga e não atende o telefone nem responde a mensagens. “Por outro lado, há uma frustração, uma revolta, de fadiga extrema emocional, pela noção de que não temos direito ao off e que esse trabalho contínuo não é percecionado pelos que recorrem a ele.”

No entanto, a nova lei não se aplica a estes casos, que têm mais a ver com questões culturais. O novo artigo do Código do Trabalho apenas impede que patrões e chefes hierárquicos contactem as médicas durante o seu descanso. Sobre eventuais abusos de doentes nada fará.

Selma Solto, endocrinologista, tem uma visão ligeiramente diferente, porque apesar de fornecer o seu número de telefone aos doentes, não lhe ligam com a mesma frequência, embora receba muitas mensagens. “Se estiver a pensar no patrão, posso dizer que não sou muito incomodada pelo Ministério da Saúde. Mas, se estivermos a falar do diretor de serviço, aí já me liga fora do horário de serviço, sempre que acha necessário”, conta. Com a pandemia, tudo se agudizou e ambas as médicas contam que as reuniões de serviço ou administrativas são feitas fora do horário laboral.

“É expectável que estejamos sempre disponíveis. O médico não tem horário. É assim que é percecionado por todos os que estão à sua volta, a começar nos diretores que, quando solicitam, esperam respostas imediatas”, conclui a endocrinologista. Já Carla Araújo, por ser médica internista, tem uma visão diferente. “Só estou disponível 24 horas por dia se estiver de urgência ou prevenção. Quando o meu turno chega ao fim, passo os meus doentes à equipa de urgência que chega e que passa a tomar conta deles.”

Entre enfermeiros, a pressão não chega da parte dos doentes, mas das chefias e, acima de tudo, está ligada à falta de recursos humanos nas unidades de saúde. Enfermeira num hospital central na zona norte do país, Eufémia conta que os contactos do hospital estão sempre a chegar, normalmente em forma de email, até de madrugada. “Temos de ter algum cuidado, até para não acordar com as notificações.” Mas o pior não é isso. Não sendo militar, sente que como enfermeira está sempre “em regime de prontidão”.

“Se há uma baixa de um colega, se há uma falha, temos de estar sempre disponíveis porque não podemos ter os serviços abaixo da cotação mínima. Também acontece chegarmos ao fim do turno e termos de seguir com ele porque quem nos vinha substituir falhou”, conta Eufémia, que diz que até nas férias chegou a ser contactada para ir discutir questões laborais com a enfermeira chefe. Recusou, mas sentiu que a sua recusa foi mal recebida.

“Sabemos quando entramos, não sabemos quando saímos, por isso acho que há situações em que já estamos a entrar no campo do dano moral.” Um exemplo que dá é quando são marcadas sete cirurgias para um período de tempo que se sabe ser impossível de cumprir. “A seguir, fazem pressão sobre nós, para ficarmos além da hora por causa do doente, às vezes crianças que estão em jejum há horas à espera da cirurgia”, conta. E dizer que não a algo que não gostava que lhe fizessem a si, se fosse um filho seu, deixa marcas emocionais.

Guadalupe Simões diz que quando se é enfermeiro é praticamente impossível desligar. De novo, a presidente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses aponta o dedo às falhas de recursos humanos e, embora diga que a nova lei é bem-vinda — “é sempre mais uma ferramenta” –, não acredita que seja a solução para os problemas desta profissão.

Para além dos exemplos apontados por Eufémia, como a questão dos turnos, Guadalupe Simões acrescenta ainda que os enfermeiros passam horas em casa a fazer trabalho administrativo por causa “dos sistemas informáticos anacrónicos” dos cuidados primários.

As pouco claras e dúbias “situações de força maior”

Com a nova lei, o empregador “tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior”. Que situações são essas? A norma não diz, o que pode criar conflitos entre as partes, afirmam os especialistas em direito laboral ouvidos pelo Observador.

“Quando o legislador laboral diz que o empregador não pode contactar os trabalhadores fora do período normal de trabalho salvo situações de força maior e não as densifica do ponto de vista laboral, temos de socorrer-nos da lei civil, onde situações de força maior são extremas, de máxima urgência: um acidente, um incêndio. Sem este conceito ser definido laboralmente, vamos ter, de certeza absoluta, conflitos na densificação e na aplicação prática do conceito”, antecipa o especialista em direito laboral Pedro da Quitéria Faria, da Antas da Cunha Ecija.

Working From Home

ACT não revela se recebeu queixas de trabalhadores quanto a contactos do empregador fora de horas

Future Publishing via Getty Imag

Essa indefinição das situações de força maior está, aliás, a gerar preocupação em “muitas” empresas, diz o advogado. “As empresas estão de alguma forma preocupadas pela forma como será implementada, executada e arguida pelos trabalhadores, como será fiscalizada pela ACT e, em última linha, decidida por parte do Tribunal de Trabalho”, acrescenta. O Observador questionou à ACT sobre se recebeu queixas de trabalhadores por contactos fora de horas do empregador, mas não obteve resposta.

Marta Lameiras Meireles, advogada da Carlos Pinto de Abreu e Associados, concorda que os efeitos práticos da lei podem ficar limitados por essa falta de clareza. O conceito de “situações de força maior” é “lato e indeterminado” e “pode ser entendido pelo empregador como aplicável a várias situações”. Caberá, em última análise, aos tribunais balizar o conceito. “No meu entendimento, uma situação superveniente que constitua “força maior” será sempre um facto imprevisível, mas será que na ótica do legislador também não pode ser conjeturável ou até calculável?”, questiona Raquel Caniço, advogada da Caniço Advogados.

Nesta análise jurídica, os advogados reforçam a distinção entre o “direito a desligar” e o “dever de abstenção de contacto” (o que foi efetivamente aprovado no Parlamento português). É que o primeiro “parte da iniciativa do trabalhador”, enquanto o segundo “coloca o ónus do lado do empregador, obrigando-o a adotar um determinado comportamento — não violar o descanso do trabalhador”, explica Marta Meireles. A advogada lembra que o incumprimento desse dever constitui uma contraordenação grave, com coimas que variam entre 612 euros e 9.690 euros, consoante o volume de negócios e o grau de culpa da empresa.

Apesar das dúvidas que esta lei ainda suscita, os advogados ouvidos pelo Observador confluem na ideia de que a intenção é positiva, ao mostrar “vontade em alterar comportamentos”, nas palavras de Raquel Caniço. Pedro Faria também elogia as “virtualidades” do pacote de alterações feitas no Parlamento — que inclui ainda o pagamento das despesas extra com o teletrabalho ou a proibição de o empregador controlar o trabalhador através de imagem ou som — e o “sinal claro de que os períodos de tempo de trabalho e descanso podem e devem ser respeitados”. Só que, considera, “não podemos esmagar direitos que estão constitucionalmente consagrados e direitos laborais que fazem parte de uma relação laboral”. O advogado refere-se ao regime de isenção de horário e ao trabalho suplementar, que não sofrem alterações com a nova lei, mas “conflituam” com ela.

Como a isenção de horário pode limitar a nova lei

A isenção de horário é um regime previsto no Código do Trabalho que permite a flexibilidade na gestão dos horários desde que acompanhada pelo pagamento de um extra no salário. A modalidade mais flexível — e a mais comum, diz o advogado Pedro da Quitéria Faria — é a “não sujeição aos limites máximos do período normal de trabalho”, que permite que o trabalhador faça mais horas do que as normais. Isso não significa, porém, que possa trabalhar indefinidamente — esta modalidade continua a obrigar a que sejam cumpridos os tempos de descanso obrigatórios e o limite máximo anual de trabalho suplementar. Só que não existe necessariamente um horário de trabalho definido de antemão e os tempos de trabalho são variáveis, o que torna mais difícil conciliar o regime com o dever de abstenção do contacto.

“As empresas estão de alguma forma preocupadas pela forma como será implementada, executada e arguida pelos trabalhadores, como será fiscalizada pela ACT [Autoridade para as Condições do Trabalho] e, em última linha, decidida por parte do Tribunal de Trabalho."
Pedro da Quitéria Faria, advogado da Antas da Cunha Ecija

Quer isto dizer que se o contacto for feito depois do período normal de trabalho, o trabalhador com isenção de horário pode não ter direito a recusar o contacto do empregador fora de horas? “Se estiver nesta modalidade, não vejo como é compatível”, diz Pedro Faria.

Marta Meireles também defende que, “quando um trabalhador tem um horário de trabalho definido, por exemplo, entre as 9h e as 18h, é fácil determinar qual será o período de descanso desse trabalhador”. Já para os que têm isenção de horário, é “difícil” estabelecer “o período de trabalho efetivo, que é variável”, logo, é mais “complexo determinar em que momento o empregador se encontra efetivamente a violar o horário de descanso do trabalhador e, portanto, sujeito a uma coima pela prática de uma contraordenação”.

Um trabalhador que pretenda denunciar o contacto fora de horas pode sempre fazer uso dos registos dos tempos de trabalho, que são obrigatórios por lei, para tentar provar que trabalhou mais do que devia, mas a isenção de horário pode dificultar o processo, sobretudo na modalidade mais flexível. Existe uma outra opção de isenção, que será menos comum e prevê a possibilidade de “aumento do período normal de trabalho, por dia ou por semana”. Neste caso, apenas é permitido, em tese, prolongar o horário diário por duas horas, logo, “existindo um registo do tempo de trabalho, é mais fácil determinar se, por exemplo, as 10 horárias diárias já foram atingidas”, nota Marta Meireles.

Outro potencial foco de conflito é o trabalho suplementar (que pode ser legitimamente pedido pelo empregador desde que o fundamente “devidamente” e o pague). “A dinâmica empresarial atual, o mundo globalizado, os projetos e operações transnacionais, muitas vezes, obrigam a que estejamos a trabalhar em fusos horários diferenciados e em que o trabalhador português tem de estar no seu período de descanso a laborar. Mas para isso seria sempre pago e majoradamente que é o que a lei diz”, explica Pedro Faria.

Marta Meireles salienta, no entanto, que não se podem “confundir” situações “perfeitamente normais” como o envio de emails pelo empregador “a qualquer hora” com a violação do dever de abstenção do contacto. O problema, que poderá ser punível, é a “exigência de resposta também a qualquer hora pelo trabalhador”.

A nova lei tenta ainda acautelar que o trabalhador não seja prejudicado por recusar o contacto fora de horas, por exemplo, no que toca à progressão na carreira. “Constitui ação discriminatória, para os efeitos do artigo 25.º (sobre a proibição de discriminação), qualquer tratamento menos favorável dado a trabalhador, designadamente em matéria de condições de trabalho e de progressão na carreira, pelo facto de exercer o direito” de recusar o contacto, lê-se. Mas também pode ser difícil provar que um trabalhador foi preterido face a outro por recusar esse trabalho fora de horas.

Paulo Duarte, presidente do Sindicato Independente dos Trabalhadores da Informação e Comunicações (SITIC), e João de Deus, presidente do Sindicato Nacional dos Engenheiros, Engenheiros Técnicos e Arquitetos (SNEET), aplaudindo a lei pelos sinais que transmite ao empregador, manifestam também dúvidas sobre a sua aplicabilidade. Paulo Duarte não acredita que a ACT tenha a necessária capacidade inspetiva para dar seguimento às queixas, tendo em conta a experiência do sindicato. João de Deus atira que é uma “prática contínua dos empregadores” que a lei não vai impedir: “É uma prática instalada, está normalizado”.

Para lá da análise à lei, quem trabalha com ela também tem direito a desligar

Olhando para a área da justiça, a juíza Carla Oliveira considera que esta lei não tem a ver com a realidade dos juízes. “A nossa profissão não é comum, não tenho um chefe e ninguém do Conselho Superior de Magistratura me vai ligar para saber se estou a trabalhar ou a comer castanhas”, brinca a juíza.

“Quando quero consigo desligar, mas, mesmo quando não estamos nos tribunais, é vulgar estarmos em casa a trabalhar pela noite fora, ao fim de semana. Por outro lado, se não tiver diligências, não tenho de estar no tribunal às 9h da manhã”, explica.

Os juízes, frisa, não têm um horário rígido a cumprir e, no seu caso, é muito normal deliberar durante a noite ou ao fim de semana. “As sentenças e os acórdãos são lidos quando o juiz acaba o seu trabalho. Por isso, se marquei uma data e tiver de trabalhar mais é à minha responsabilidade”, sublinha Carla Oliveira. “Parece-me que essa lei tem mais sentido quando existe uma estrutura hierárquica tradicional.”

“Quando quero consigo desligar, mas, mesmo quando não estamos nos tribunais, é vulgar estarmos em casa a trabalhar pela noite fora, ao fim de semana. Por outro lado, se não tiver diligências, não tenho de estar no tribunal às 9h da manhã.”
Carla Oliveira, juíza

Teresa Violante hoje vive uma situação diferente daquela com que lidou durante boa parte da sua carreira. “São muito rigorosos nessa questão de respeitar a vida familiar, há um grande respeito pela férias e pelos fins de semana”, diz sobre a atual fase profissional, ligada a uma empresa alemã do setor privado. Em Portugal, onde já trabalhou no Tribunal Constitucional e foi advogada em escritórios de advogados, a realidade era outra. “Quando era advogada no privado, a minha experiência era oposta à que estou a ter. Estava sujeita a sair a qualquer hora, a receber contactos a qualquer momento.”

No Tribunal Constitucional era diferente, tinha a ver com picos de trabalho e alturas com prazos curtos para resolver contenciosos. “Mas não vamos ao engano, até porque há um abono específico salarial que compensa esse sacrifício”, sublinha.

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