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Miriam, Eliézer e os filhos Luca e Isa acolheram Hannah, Vira e Yukhym, acabados de chegar de Mel'nyky, no seu T3 duplex em Espinho
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Miriam, Eliézer e os filhos Luca e Isa acolheram Hannah, Vira e Yukhym, acabados de chegar de Mel'nyky, no seu T3 duplex em Espinho

(Rui Oliveira/Observador)

Miriam, Eliézer e os filhos Luca e Isa acolheram Hannah, Vira e Yukhym, acabados de chegar de Mel'nyky, no seu T3 duplex em Espinho

(Rui Oliveira/Observador)

Estas quatro famílias acolheram refugiados ucranianos nas suas próprias casas: "Como é que se diz que não? Estas pessoas vêm da guerra"

Rosa e João, Miriam e Eliézer, E. A. e Leonor e Pedro receberam famílias de refugiados ucranianos nas suas próprias casas. Todos apelam a que mais portugueses façam o mesmo: "Não fiquem receosos".

Não é como se tivessem propriamente espaço de sobra em casa ou demasiado tempo livre em mãos — mas também não é como se alguém que está habituado a ajudar conceba deixar de o fazer, sobretudo numa altura em que a guerra está mesmo ao lado e quem foge dela começa a chegar à nossa porta.

Em outubro do ano passado, depois de nove meses em processo de aprovação, Rosa e João Amado — que há nove anos adotaram uma menina de 18 anos que entretanto já casou e saiu de casa — receberam um bebé de apenas dois meses, que se disponibilizaram a acolher até que as autoridades decidam se vai ser adotado ou regressar à família biológica. Sem surpresa, no fim de semana passado, quando o telemóvel de Rosa tocou, com novo pedido de ajuda, a resposta não podia ter sido outra se não um “claro que sim”.

“Há uns anos morámos em Moçambique, uma pessoa que conhecemos nessa altura mandou-me mensagem a perguntar se podíamos alojar uma mãe e um filho que iam chegar da Ucrânia e não tinham onde ficar”, conta ao Observador. Dois dias depois, na moradia de três quartos na zona de Sete Rios, em Lisboa, onde moram com o bebé (que entretanto já fez 7 meses e já não acorda quatro vezes por noite a pedir biberão), os quatro filhos mais novos e Jéssica, a empregada interna que é “mais um membro da família”, receberam Larissa e o filho David, de 17 anos, acabados de chegar de Kharkhiv, na Ucrânia. “Como é que se diz que não? Por muito que fiquemos mais apertados, estas pessoas vêm da guerra”, justifica Rosa, 38 anos, quadro da EDP.

João, o marido, três anos mais velho, não foi a primeira pessoa com quem falou depois de ter dito que sim. Com os filhos, todos rapazes, entre os 3 e os 11 anos, a dormir na mesma assoalhada, teria de ser Jéssica a sacrificar-se e a ceder o seu quarto, com casa de banho independente e televisão. “Disse logo que sim. Também é imigrante, disse-me que estaria disponível até para dormir no sofá da sala se fosse preciso. É muito importante ver que é um projeto de todos”, diz Rosa Amado que, ainda em teletrabalho, vai conseguindo arranjar forma de responder às solicitações dos filhos e dos dois novos hóspedes.

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Famílias portuguesas que estão a acolher refugiados vindos da Ucrânia, nas suas casas. O casal Rosa e João acolheram Larissa e David (mãe e filho). O casal tem também 5 filhos Lisboa, 16 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Famílias portuguesas que estão a acolher refugiados vindos da Ucrânia, nas suas casas. O casal Rosa e João acolheram Larissa e David (mãe e filho). O casal tem também 5 filhos Lisboa, 16 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Famílias portuguesas que estão a acolher refugiados vindos da Ucrânia, nas suas casas. O casal Rosa e João acolheram Larissa e David (mãe e filho). O casal tem também 5 filhos Lisboa, 16 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Famílias portuguesas que estão a acolher refugiados vindos da Ucrânia, nas suas casas. O casal Rosa e João acolheram Larissa e David (mãe e filho). O casal tem também 5 filhos. Telemóvel onde Larissa e David comunicam com a família Lisboa, 16 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Jessica foi a primeira pessoa com quem Rosa Amado falou antes de decidir acolher Larissa e o filho David; ela é que teve de ceder-lhes o quarto. A comunicação é feita através do Google Translate

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

No quarto de Manel, Zé Maria, Xavier e Martim, amplo, com um beliche em frente ao outro, além dos rapazes e do coelho Tretas, também dorme agora Jessica, entre o saco de boxe e o baloiço, numa cama improvisada no chão com um colchão que entretanto tiveram de ir comprar ao Ikea e que Rosa faz questão de manter dobrado durante o dia, para os miúdos não lhe passarem por cima com os pés calçados.

Pelo menos durante os próximos dois meses, ou até que arranjem forma de, de alguma forma, recomeçar, Larissa e David deverão ficar com os Amado.

“Chegaram cansados mas ao mesmo tempo acredito que não seja fácil descansar. Deixaram lá o pai, o David ligou-lhe assim que chegou. Não é meu pai, mas até eu fiquei um pouco apertada”
Rosa Amado, acolheu uma família de 2 pessoas

Não há prazo de saída nem limite do tempo de ajuda e a família está toda apostada em fazer com que se sintam o mais em casa possível. Assim que soube que estavam a caminho, à boleia dos voluntários da Missão Ucrânia, João foi pesquisar receitas típicas da Ucrânia. “Disse-me logo que tinha de comprar muitos cogumelos e batatas, que a alimentação deles é muito à base desse tipo de alimentos. Comprámos tudo, até as coisas que normalmente não temos em casa, como cereais, por exemplo. Comprei todas as variedades, queremos dar-lhes aquilo de que eles realmente gostam nesta altura em que ainda têm vergonha de pedir.”

O objetivo dos Amado é que Larissa e David, que gosta de jogar basquetebol e de andar de skate, se sintam confortáveis e possam abstrair-se do que se passa no país onde viveram a vida toda e onde deixaram pai e marido, que os levou de carro até à fronteira com a Polónia e depois voltou para trás, para Kharkhiv, onde as bombas não paravam de cair, contam ao Observador mãe e filho, com o Google Translate instalado no smartphone a servir de intérprete.

“Chegaram cansados mas ao mesmo tempo acredito que não seja fácil descansar. Deixaram lá o pai, o David ligou-lhe assim que chegou. Não é meu pai, mas até eu fiquei um pouco apertada”, confessa Rosa, que também não tem outra forma de comunicar com a família que acolheu — Larissa, de 41 anos, trabalhava como educadora de infância antes da guerra e não diz uma palavra de inglês; David, que estudava no 11.º ano, consegue manter uma conversa mas não é propriamente fluente.

“Não sabíamos para onde íamos e o que nos esperava. Só queríamos voltar a viver em segurança, mas os voluntários ajudaram-nos, trouxeram-nos para Portugal e depois esta nobre família abrigou-nos. Estou muito grato"
David, 17 anos, refugiado ucraniano

Manel, que tem 11 anos e anda no 6.º ano, é, para já, o mais familiarizado com o ucraniano; assim que soube que iam receber uma família, pegou no tablet e tratou de aprender. “Sei dizer ‘olá’, ‘eu sou o Manel’, ‘bom dia’, ‘obrigado’”, vai enumerando e exemplificando, enquanto devolve o coelho à gaiola, e ajusta o dispensador de água, que no meio das brincadeiras dos irmãos mais novos acabou por cair ao chão.

No fim de semana, já está prometido, vão todos à praia, ver o mar. “O David ficou entusiasmado, disse-me que em Odessa também têm uma praia, mas que tem muito lixo. Escolheram vir para Portugal porque, antes de os deixar na fronteira, o pai, que, pelo que percebi, é diretor numa fábrica de quadros, lhes disse que era um país muito bonito e com pessoas simpáticas”, conta Rosa, que vê no acolhimento desta família não apenas uma oportunidade para dar a mão a esta família como também para sensibilizar os filhos para a realidade da guerra e para a importância de ajudar quem precisa.

“Não sabíamos para onde íamos e o que nos esperava”, dita David, mais uma vez em ucraniano, para o telemóvel que segundos depois descodifica a mensagem. “Só queríamos voltar a viver em segurança, mas os voluntários ajudaram-nos, trouxeram-nos para Portugal e depois esta nobre família abrigou-nos. Estou muito grato.”

“Não nos vão separar dos nossos filhos, pois não?”

Um dia antes de Larissa e David chegarem à casa dos Amado, Miriam e Eliézer Dias receberam no seu T3 duplex em Espinho Hanna Donets, de 35 anos, e os filhos Vira, uma menina de 10 anos, e Yukhym, um rapaz de 8.

Como Rosa e João, também este casal, assim que a guerra começou na Ucrânia, se mobilizou para ajudar, primeiro através da ADRA, Associação Adventista para o Desenvolvimento, Recursos e Assistência, ONG em que já eram voluntários, depois por meio de um grupo de empresários, também ligados a ela, que trataram de agilizar o transporte e acolhimento de famílias ucranianas em Portugal.

Disponibilizaram-se para receber uma mãe com um filho — afinal, a bebé Isa, de apenas um ano, ainda estava a dormir no seu quarto, podiam protelar a mudança e assim ficar com uma divisão livre para ajudar. Mas quando a carrinha com os refugiados que deveriam ser acolhidos em Espinho chegou a Lisboa, em vez de oito trazia apenas seis pessoas, duas mães, amigas, cada uma com um par de filhos. “Nunca imaginámos que íamos receber três elementos, confesso, mas tudo se arranja. Eles estão bem e nós também estamos bem”, garante Miriam, para logo depois revelar a pergunta que uma delas fez assim que chegou a Portugal e que lhe partiu o coração.  “Não nos vão separar dos nossos filhos, pois não?” Não, claro que não.

Tudo acabou por se conjugar na perfeição: a amiga de Hannah ficou alojada com os filhos no hostel de um outro voluntário, a pouco menos de dois quilómetros de distância da casa dos Dias; Miriam, de 41 anos, e Eliézer, de 38, receberam-na a ela e aos filhos — e descobriram muito rapidamente que partilhavam não apenas feitios e modos de educar mas também hábitos alimentares. “A nossa alimentação é vegetariana e a deles também, o que não é normal na Ucrânia! Estava preparada para voltar a comprar carne e peixe, claro, mas assim foi tudo muito mais fácil”, conta Miriam ao telefone com o Observador, numa chamada em alta-voz feita ao lado do marido, numa pausa na empresa familiar de construção que ambos detêm e onde trabalham.

Hannah, Yukhym e Vira (à direita) foram instalados no quarto da bebé Isa, que ainda dorme com os pais Miriam e Eliézer

(Rui Oliveira/Observador)

Desde que, no domingo passado, foram a Aveiro buscar as duas famílias, não têm tido mãos a medir: foi preciso instalá-las, conhecê-las e ajudá-las a regularizar a situação no país, com idas ao SEF, inscrições no agrupamento de escolas local e marcações de aulas online de Português. Pelo meio, mantiveram-se as obrigações de sempre, no trabalho e em casa, com o filho Luca, de 6 anos, a trocar os desenhos animados na televisão e os jogos no telemóvel por horas de brincadeira à antiga com Vira e Yukhym — “Apesar de não falarem a mesma língua, as crianças entenderam-se sozinhas, logo no primeiro dia”, conta Eliézer.

Através do inglês, as mães também, acrescenta Miriam, que garante que se identificou imediatamente com Hannah, psicóloga, seis anos mais nova. “A dinâmica cá em casa não se alterou, funcionamos de forma igual, muito educada, muito respeitosa, e os nossos feitios são muito idênticos”, descreve, para depois explicar como as duas mulheres deixaram a comunidade ecológica onde viviam em Mel’nyky, 240 quilómetros a sul de Kiev, para salvar os filhos da guerra iminente.

“As crianças não viram a guerra, não viram destruição. E nós não ligamos a televisão, portanto estão felizes, sentem-se acolhidas e brincam com alegria”, diz. “Mas a Hannah deixou lá o marido. Ele queria mesmo ficar. E a mãe dela ficou com ele para cuidar dos animais domésticos destas duas famílias. Viajaram três dias de autocarro até à fronteira com a Roménia, onde passaram duas noites e três dias num abrigo, e depois vieram de autocarro até Lisboa, cada um com uma mochila às costas.”

“São pessoas que não se vão pendurar em nós, são pessoas que querem fazer pela suas vidas. Para elas, o plano é voltar, disseram logo que queriam regressar a casa na primavera. Até chegaram a pensar não por os filhos na escola, porque querem continuar a escolaridade lá, mas já perceberam que é melhor tê-los ocupados com qualquer coisa enquanto aqui estão, nem que seja a aprender português”
Miriam Dias, recebeu uma família de três pessoas

Quando estavam a caminho de Espinho, já depois de terem recebido flores das mãos de uma florista de Aveiro, comovida quando se apercebeu de que eram refugiadas e que tinham acabado de chegar da Ucrânia, Hannah e a amiga perguntaram até quando poderiam ficar. “Disse-lhes que não era uma coisa com que tivessem de se preocupar por agora”, recorda Eliézer e reforça Miriam: “Está tudo tranquilo e garantido da nossa parte”.

“São pessoas que não se vão pendurar em nós, são pessoas que querem fazer pela suas vidas. Para elas, o plano é voltar, disseram logo que queriam regressar a casa na primavera. Até chegaram a pensar não por os filhos na escola, porque querem continuar a escolaridade lá, mas já perceberam que é melhor tê-los ocupados com qualquer coisa enquanto aqui estão, nem que seja a aprender português”, ressalva Miriam, que para já não pensa noutra coisa se não em ajudar a acolher outros refugiados — se bem que não na sua própria casa, que já atingiu a lotação máxima.

É aqui que entra a entrevista ao Observador: “O essencial é apelar aos que podem para que deem este passo, e que não fiquem receosos. E pedir a quem não pode receber pessoas que partilhe estes exemplos, para que quem quer ajudar e não sabe como possa encontrar um caminho”.

“Apanharam boleias e autocarros, fizeram grandes partes do caminho a pé, assistiram a bombardeamentos”

Assim que a Rússia invadiu o país onde nasceu há 36 anos, Nonna Pita, ucraniana a viver em Portugal desde 2002, tratou de começar a ajudar. Primeiro, transformou a garagem da casa onde mora em Sintra, com o marido e os dois filhos, numa espécie de bazar de roupas em segunda mão, enviadas por amigos e desconhecidos; depois pegou no telefone e passou para o nível seguinte.

“Hoje já consegui arranjar casa para três pessoas”, é das primeiras coisas que diz ao telefone com o Observador, passa pouco do meio-dia do 22.º dia de guerra. Já perdeu a conta ao total, há uns dias seriam umas 55, agora já não sabe, vai ter de parar e atualizar o documento, que mantém com a ajuda de amigas e voluntárias que entretanto se lhe juntaram, para ajudar com contactos e com a angariação de famílias portuguesas interessadas em acolher os refugiados que não param de chegar da Ucrânia — até quarta-feira, dia 16 de março, foram mais de 10 mil as pessoas acolhidas, informou a secretária de Estado para a Integração e as Migrações; mais de um terço são crianças até aos 13 anos, 59% são mulheres.

“Ontem consegui uma casa através da Câmara Municipal de Seia; uma família, com uma criança com deficiência mental e física, vai ter direito a uma casa por tempo indefinido, com almoço e jantar numa cantina. Até há trabalho para o senhor, que foi autorizado a sair do país para acompanhar a mulher, por causa dos problemas do filho”, conta Nonna, que trabalha com o marido, advogado, em negócios de investimento e imobiliário. “As câmaras municipais dão aquilo que podem, Portugal dá aquilo que pode. E dá muito. Se calhar não consegue dar aquilo que dá uma Alemanha, mas dá muito.”

Ao todo, através da rede de contactos que tem vindo a criar, diz que já conseguiu ajudar pelo menos outras cinco conterrâneas a arranjar trabalho em Portugal — “Uma como assistente de dentista, outras como internas, outras como ajudantes domésticas”.

“Ontem consegui uma casa através da Câmara Municipal de Seia; uma família, com uma criança com deficiência  mental e física, vai ter direito a uma casa por tempo indefinido, com almoço e jantar numa cantina. As câmaras municipais dão aquilo que podem, Portugal dá aquilo que pode. E dá muito. Se calhar não consegue dar aquilo que dá uma Alemanha, mas dá muito”
Nonna Pita, ucraniana a viver em Portugal há 20 anos

Na sua própria casa, recebeu cinco pessoas, não completamente desconhecidas. “Ainda tenho família na Ucrânia. A minha avó veio para cá, mas foi para o Algarve, onde está o filho e a minha irmã, que também está a fazer voluntariado. Na nossa casa, que agora está ainda mais uma bagunça, recebemos a mulher do meu primo, a irmã dela e os três filhos”, contabiliza. “Não é um problema para nós, gostamos desta bagunça. O meu marido é angolano e tem 9 irmãos, somos uma família de mistura.”

A alguns quilómetros de distância, em Lisboa, cinco dias depois de ter acolhido Luba, de 36 anos, com as filhas Anastasia, de 8, e Tatiana, de 11, E. A. diz mais ou menos o mesmo. “Por mim posso ficar assim para o resto da vida. Dividi casa com uma catrefada de gente durante anos e anos. E já quando vivia com a minha família estávamos sempre a receber gente, às vezes chegávamos a ser 30 primos”, diz a empreiteira, 44 anos, dois filhos de 15 e 5.

Há mais de uma década, quando vivia em Londres, deu guarida a um amigo de um amigo, acabado de chegar da Madeira, num quarto para três que passou a ser de quatro. E há uns quatro ou cinco anos, quando viu no Facebook o apelo desesperado de uma mãe com quatro filhos pequenos que estava de regresso a Portugal vinda de França e não tinha onde ficar, não hesitou em fazer-lhe chegar a chave do seu apartamento, sem sequer se encontrarem antes. “Estava de férias no Algarve na altura. Numa situação destas vais fazer o quê? São quatro crianças! As pessoas estão sempre com medo de que as roubem, mas eu não quero saber de objetos”, desvaloriza.

“Saíram no dia 4, chegaram dia 11, apanharam boleias, autocarros, fizeram grandes partes do caminho a pé, assistiram a bombardeamentos. Foi muito difícil para elas e continua a ser, a irmã da Luba é polícia, está em missões específicas, pelo que percebi, chega até a desmantelar bombas”
E. A., recebeu uma mãe com as duas filhas em casa

Agora, assim que a guerra rebentou na Ucrânia, E. A., que prefere permanecer anónima, tratou de fazer saber nas redes sociais e aos seus contactos ucranianos que estaria disponível para acolher até cinco pessoas na sua própria casa: “É um T3, a Luba e as filhas estão a dormir no quarto do meu filho, que tem um beliche e três camas, e ele está comigo. Outras duas podiam dormir no sofá da sala, por exemplo”.

Depois de ter estado preparada para receber um casal, que veio para Portugal de férias e acabou por não conseguir regressar, acabou por receber um pedido para alojar Luba, que em Bila Tserkva, no Oblast de Kiev, era professora do ensino básico, e as filhas.

“Mandaram-me a fotografia delas na quinta-feira; chegaram na sexta-feira às 4h da manhã, vindas de Santa Maria da Feira. Saíram no dia 4, chegaram dia 11, apanharam boleias, autocarros, fizeram grandes partes do caminho a pé, assistiram a bombardeamentos. Foi muito difícil para elas e continua a ser, a irmã da Luba é polícia, está em missões específicas, pelo que percebi, chega até a desmantelar bombas”, conta E. A., a partir dos relatos que a refugiada lhe vai fazendo, sempre com recurso ao Google Translate — nenhuma delas diz uma palavra em inglês.

Quando chegaram, vinham as três magérrimas e incapazes de comer. Depois de experimentar várias ementas diferentes e de comprar caixas de vitaminas para todas, E. A. conseguiu finalmente que voltassem a alimentar-se — e depois passou à etapa seguinte. Após muitas peripécias, que envolveram a ida a uma delegação do SEF encerrada há mais de um ano (que na internet era dada como em funcionamento) e vários telefonemas infrutíferos para linhas oficiais, conseguiu finalmente inscrevê-las na plataforma online do serviço na dependência do Ministério da Administração Interna, que até ao passado dia 14 concedeu 8.250 pedidos de proteção temporária a pessoas vindas da Ucrânia.

“Durante um ano, vão ter proteção do Estado, número fiscal, da Segurança Social e de utente”, explica a empreiteira. Só fica mesmo a faltar tudo o resto: encontrar um apartamento para as três não tem sido tarefa fácil, apesar de, em conjunto com o namorado, já ter conseguido angariar 850 euros para rendas. “Liguei para hotéis, airbnb’s, todos disseram que não dava. Até que vi um T1 mobilado e o senhor disse-me que sim, ‘Claro, temos de ajudar os nossos irmãos ucranianos’. Fiquei tão contente que até chorei, acho que foi da descompressão. Mandei-lhe uma mensagem uns dias depois, a dizer que já tínhamos juntado dois meses de rendas, e ele respondeu-me a dizer que a casa já tinha sido alugada.”

“Temos uma família. Para amanhã”

A invasão da Ucrânia tinha começado há três dias quando Pedro Moura Pinheiro, sentado a almoçar com a mulher, disse com solenidade que tinha uma coisa para lhe dizer. Do lado de lá da mesa, Leonor Galvão respondeu: “Eu também”. Ambos souberam imediatamente que tinham pensado no mesmo: queriam acolher uma família ucraniana na casa onde moram, com os seis filhos, na Parede.

Ato contínuo, contam ao Observador, sentados no sofá da sala de estar, com Olga no meio, inscreveram-se numa plataforma de acolhimento e mostraram-se disponíveis para ajudar. Apenas dez minutos depois, o telefone tocou: “Temos uma família. Para amanhã”.

“Como é que se diz que não? A ideia era dizer que sim, mas nem tivemos tempo de elaborar. A nossa ideia era pormos o nome na plataforma e falarmos com os nossos filhos, que estavam em casa do pai e mãe, à noite. Na altura estávamos só com o Manel, o nosso filho em comum”, conta Leonor, 43 anos. “Quando o fizemos já era um assunto assente. Uns disseram ‘claro que sim’, outros, ao princípio, assustaram-se, porque não estavam à espera. As crianças e adolescentes normalmente assustam-se com tudo o que sai da norma”, justifica.

“É uma questão de economia de escala. Numa casa onde já estão 9 pessoas, mais 3 é só adicionar 33%. É como se fosse uma família de 3 a receber uma pessoa. Aí, se calhar, não parece tão impressionante. É tudo em grande escala aqui: o carro, a casa, as refeições, a logística. Portanto não afeta assim tanto"
Pedro Moura Pinheiro, acolheu uma família de três pessoas e foi à Polónia resgatar outras duas famílias de refugiados

Ao todo, na moradia, moram nove pessoas: Pedro e Leonor, a empregada Valéria, e os filhos André, de 18 anos, Carolina, de 16, Martim, de 15, Madalena, de 13, Zé, de 12 e Manel, que fez dois anos esta segunda-feira — e, para além de falar inglês, já vai arranhando algumas palavras de russo.

Tem sido ele e a Madalena (curiosamente a que reagiu pior à notícia, porque teve de passar a dividir quarto com a irmã) quem mais tem interagido com Olga, com a sua mãe, Natália, e com o pequeno Darii, de três anos e meio. “Tivemos de tirar o André do quarto dele, pô-lo no quarto que era da Carolina e pôr as raparigas a dividir”, explica Leonor Galvão, sócia-fundadora, juntamente com o marido, da Magellan IP, empresa que presta serviços de consultoria em áreas de propriedade intelectual e patentes em Portugal, Brasil, Angola e Moçambique. “O André está no 12.º ano, não se importou desde que pudesse ficar sozinho para poder estudar para os exames. Eles têm o espaço deles, que é um anexozinho, e têm estado muito reservados, a Madalena e o Manel é que têm passado muito tempo lá.”

Famílias portuguesas que estão a acolher refugiados vindos da Ucrânia, nas suas casas. O casal Pedro e Leonor acolheram Olga, a sua mãe e a sua filha. Parede, 16 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Famílias portuguesas que estão a acolher refugiados vindos da Ucrânia, nas suas casas. O casal Pedro e Leonor acolheram Olga, a sua mãe e a sua filha. Parede, 16 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Famílias portuguesas que estão a acolher refugiados vindos da Ucrânia, nas suas casas. O casal Pedro e Leonor acolheram Olga, a sua mãe e a sua filha. Parede, 16 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Famílias portuguesas que estão a acolher refugiados vindos da Ucrânia, nas suas casas. O casal Pedro e Leonor acolheram Olga, a sua mãe e a sua filha. Parede, 16 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Olga chegou a casa de Leonor e Pedro, com o filho e a mãe, no quinto dia da guerra

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Ao longo da hora que o Observador passou na casa, Natália e Darii não saíram do quarto, com casa de banho independente, junto à piscina. Olga, formada em Direito, explica em inglês como se sentem abençoados por terem sido recebidos pela família e revela como saíram de Kiev logo no dia 14 de fevereiro, dez dias antes do início da ofensiva russa. “Havia muitas informações a correr, diziam que o espaço aéreo ia ser fechado. Decidimos fazer umas férias de duas ou quatro semanas e ver o que acontecia. Lisboa era o primeiro voo a sair de Kiev. Marquei às 18h, no dia seguinte às 10h partimos”, recorda. Yuri, o marido, ficou para trás, a trabalhar. Não se veem desde então. “Todos os dias, digo-lhe bom dia. E ela responde: ‘Bom dia, my husband is alive’”, já tinha contado Leonor dois dias antes, ao telefone com o Observador.

Regressado da Polónia menos de 24 horas antes, onde foi com um amigo na carrinha elétrica de 8 lugares da família, buscar os parentes da rececionista da escola dos filhos, que estavam num centro para refugiados em Varsóvia — “Entretanto acabámos por trazer outras pessoas que também precisavam de transporte, éramos quatro adultos, dois adolescentes, dois cães, dois gatos e um hamster” —, Pedro Moura Pinheiro desvaloriza o que têm feito para ajudar quem foge da guerra. “É uma questão de economia de escala. Numa casa onde já estão 9 pessoas, mais 3 é só adicionar 33%. É como se fosse uma família de 3 a receber uma pessoa”, diz. “Aí, se calhar, não parece tão impressionante. É tudo em grande escala aqui: o carro, a casa, as refeições, a logística. Portanto não afeta assim tanto.”

“Para nós sempre foi importante eles terem a consciência de que são super privilegiados. E uma coisa é nós dizermos isso, outra é eles verem e perceberem realmente no dia a dia que são privilegiados. Uma coisa é vermos as notícias sobre o que se está a passar na Ucrânia e depois chegarmos a casa, apagarmos a televisão e desligarmos o telemóvel, outra coisa é vivermos isto dentro da nossa casa”
Leonor Galvão, acolheu uma família de três pessoas

Para além de os terem acolhido e de não lhes terem imposto qualquer limite de tempo de alojamento, Leonor e Pedro têm ajudado Olga, Natália e Darii a regularizar a sua situação em Portugal. “Ainda hoje de manhã tivemos uma entrevista numa potencial escola para o Darii. Não é meu filho mas é mais uma criança que decidimos acolher e de que vamos tomar conta enquanto estiver connosco”, garante Leonor.

A vontade de ajudar extravasa a esfera desta família de três — Leonor é uma das pessoas que está a trabalhar com Nonna Pita, ao todo, diz, já conseguiram dar alojamento a mais de 70 pessoas. Quando Olga, Natália e Darii decidirem partir, virão outros refugiados. Entretanto, quando a guerra na Ucrânia acabar, o mais provável é que o casal retome o plano posto em pausa de ser família de acolhimento de um bebé. É um dois em um, ajudam e, como Rosa e João Amado, dão o exemplo aos filhos, para que cresçam com a mesma vontade. “Para nós sempre foi importante eles terem a consciência de que são super privilegiados. E uma coisa é nós dizermos isso, outra é eles verem e perceberem realmente no dia a dia que são privilegiados. Uma coisa é vermos as notícias sobre o que se está a passar na Ucrânia e depois chegarmos a casa, apagarmos a televisão e desligarmos o telemóvel, outra coisa é vivermos isto dentro da nossa casa”, diz Leonor. “É muito mais fácil termos a noção de que somos uns privilegiados, porque temos segurança e teto e a nossa vida, portanto para eles acho que está com certeza a ser uma aprendizagem de vida.”

Apesar de tudo, agora que o marido voltou da Polónia, para onde saiu na passada quinta-feira, dia 10, às 20h, e de onde regressou esta terça-feira, 15, às 16h, depois de uma viagem com paragens de duas em duas horas para carregar a carrinha elétrica, reconhece que está na hora de abrandar e de prestar mais atenção aos filhos. “Acho que têm estado um bocadinho carentes de pai e mãe, acho que tenho de refocar um bocadinho, não podemos olhar só para os outros”, diz, para depois fazer um apelo ao resto dos portugueses, para que façam também a sua parte.

“Há pessoas que têm casas mas não têm disponibilidade, por exemplo, para ir ao SEF, para ir a uma escola ou para ir recolher roupas. E há outras pessoas que têm todo o tempo do mundo mas não têm uma casa. Se calhar podem juntar-se duas pessoas e conseguem acolher uma família”, sugere. “É preciso perceber que não é preciso a pessoa ter tudo, os recursos todos, o dinheiro, a casa e o tempo, porque em conjunto conseguimos ter os recursos suficientes para acolher uma família.”

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