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José Afonso morreu há trinta anos. Em 1983 deu os seus últimos concertos, a 29 de Janeiro no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e a 25 de Maio no Coliseu do Porto. O de Lisboa foi gravado e essa é a única memória que pode ter dele quem não esteve lá. Seja em disco, editado originalmente pela Diapasão no mesmo ano, ou no registo em vídeo pela RTP, mais tarde editado em DVD (2010), numa versão reduzida de 57 minutos que, pelos relatos, não faz justiça às duas horas de duração originais. Muito menos a ter estado lá.
Existem também as fotografias. Principalmente aquela, em Lisboa, onde no palco estão Maria de Lurdes Pintassilgo, Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho, Rosa Coutinho, Fausto, Sérgio Godinho, Vitorino, Júlio Pereira, Janita Salomé, Francisco Fanhais, entre tantos outros, enquanto cantam “Grândola, Vila Morena”, que terminou esse concerto.
Esses registos transmitem a emoção do que se viveu em palco nas últimas actuações de José Afonso. Mas é só isso, transmitem. A emoção vivida por quem esteve lá, naqueles dias, é diferente. Está tudo no tom distinto de quem o recorda. O presidente da associação 25 de Abril, Vasco Lourenço diz, sobre o concerto em Lisboa, que foi “extraordinariamente vivido, havia a sensação de que seria, porventura, o último concerto que o Zeca faria, porque a doença já o estava a atacar. Terminou com muita gente no palco, parecia que estávamos lá todos, a cantar ‘Grândola, Vila Morena’, havia muita emoção. Foi um momento extraordinário, que recordo com muita emoção.”
Mas há algo que é universal: a mensagem de solidariedade, justiça e fraternidade de um homem e de como deu corpo, alma e voz a tudo isso. Os concertos em Lisboa e no Porto não foram somente concertos de despedida. Como Alfredo Natal escrevia no Jornal de Notícias a 31 de Janeiro de 1983 “esta foi a primeira vez que ouvimos José Afonso ser tratado ao nível que efectivamente merece quer no que toca a acompanhamento e cuidado musical quer no elevado nível técnico de som”. E um reencontro de amigos com o Zeca que era de todos. “O espectáculo terminou com muitos cravos vermelhos, muita emoção, com lágrimas em alguns rostos, e uma simples frase de José Afonso: ’25 de Abril, Sempre'”, contava José Abrantes no Diário de Notícias do mesmo dia.
Coliseu dos Recreios, 29 de Janeiro de 1983
“Felizes os que puderam encontrar, a tempo, meios para ignorarem o frustrante letreiro que desde há dias informava à entrada do Coliseu: ‘Espectáculo José Afonso — Lotação Esgotada’.” escreve Manuel Anta no Diário de Lisboa de 31 de Janeiro de 1983. Alfredo Natal refere “dias antes bastaram três horas para que os bilhetes do espectáculo voassem das bilheteiras e até dessem origem à candonga”. Percebe-se que toda a gente queria estar lá. Manuel Anta acrescenta “cheio como um ovo”, “o Coliseu vibrava de emoção”.
O concerto, por vontade expressa de José Afonso, cobriria as diversas fases da sua carreira, em jeito de retrospectiva. Júlio Pereira, um dos músicos que tocou no Coliseu dos Recreios recorda: “Os amigos estavam muito apreensivos sobre como o espectáculo iria decorrer e se o Zeca iria aguentar. O Zeca estava muito nervoso no início do concerto, mas a meio do concerto fica mais à vontade.” Acredita que parte disso aconteceu porque desde 1979 tocava regularmente com o mesmo grupo de músicos. Mas recorda que no palco estava um “Zeca Afonso debilitado”, com esclerose lateral amiotrófica, doença que o fragilizava cada vez mais.
Entre amigos, com um Coliseu cheio à sua frente, ganhou forças. Por vezes a voz falhava, mas existiam vozes solidárias. Alfredo Natal descreve assim esses momentos: “Viu o seu canto acompanhado pelas gargantas solidárias de muitos para quem ele era e é a imagem viva da qualidade humana coerente que não conhece as barreiras do tempo”. Janita Salomé, outro dos músicos que o acompanhou nessa noite, recorda que “o Zeca fez um sacrifício muito grande para aguentar o espectáculo até ao fim”. Conta que o viu renascer quando cantou “Um Homem Novo Saiu Da Mata”: “Aí ele parecia que tinha renascido. Talvez as palavras, a ideia de um homem novo, provavelmente isso deu-lhe força e essa força sentiu-se.”
Janita confessa que existiam sentimentos contraditórios. “Primeiro o prazer de estar com o Zeca, de acompanhá-lo. Mas havia a tristeza de o ver naquele estado, a doença já tinha tomado conta dele. Havia esse sentimento de tristeza e um misto de satisfação por ver tantos amigos à volta dele. A alegria de ver o modo como foi recebido no Coliseu dos Recreios. Não foi uma homenagem igual a qualquer outra. Foi mais do que isso, foi um agradecimento. Estava confinado ao Coliseu, mas foi um agradecimento nacional, por todo este país. Por tudo o que fez por nós, seja na qualidade de cidadão, de lutador antifascista, de grande poeta, cantor, produtor. Marcou realmente a nossa música. Há a música antes do Zeca e depois do Zeca. Tudo isso acabou por estar contemplado.”
Manuel Anta, no Diário de Lisboa, conta: “Zeca Afonso diz aos jornalistas ‘O que vivi esta noite excedeu tudo quanto eu esperava’.” O músico mostrou-se “disponível para realizar mais duas sessões. E questionando-se ‘E porque não mais cinco?…’ Porque não? Anti-vedeta por natureza, Zeca pensa nos outros. Mesmo quando centro único das atenções.” O presidente da AJA – Associação José Afonso, Francisco Fanhais, que se faz ouvir no Coliseu dos Recreios em “Natal Dos Simples”, acredita que o espectáculo de Lisboa “recarregou as baterias de Zeca Afonso”: “Dava a impressão de que se tinha esquecido que estava doente. Era ele a dinamizar e a puxar pelas pessoas. A energia que as pessoas transmitiam deu resultado. Estava cansado, mas muito entusiasmado e sensibilizado com o que se tinha passado nessa noite. Houve um crescendo de entusiasmo, participação, e esqueceu-se dele próprio. Sentiu com ele a alegria de uma carreira inteira. Estava mais entusiasmado, sentia-se reconfortado, com as baterias recarregadas.” E isso deu-lhe forças para que um último agradecimento não se cingisse a Lisboa.
Coliseu do Porto, 25 de Maio de 1983
Meses depois, José Afonso voltaria a subir aos palcos. Desta vez no Coliseu do Porto. Os bilhetes tinham todos o mesmo preço, 500 escudos, a pedido do cantor. O evento teve o impulso de Avelino Tavares, fundador da revista “mc – Mundo da Canção”. O alinhamento não foi igual ao de Lisboa, não teve o mesmo aparato, mas segundo relatos foi igualmente denso e sentido. Paulo Esperança, vice-presidente da AJA, confessa que “a esmagadora maioria das pessoas tiveram a noção clara de que provavelmente seria o último concerto do Zeca. Estava muito debilitado”.
Relembra os momentos no final do concerto, a forma como os espectadores reagiram à actuação e saíram do Coliseu, descendo a Rua Passos Manuel: “Havia um misto de sentimentos. Muita gente silenciosa, que percebeu que, de facto, aquele poderia ser o último concerto do Zeca Afonso. E havia gente, que até pode ter percebido isso, mas vinha a cantar, a descer a rua e a cantar. Esta é a memória mais marcante desse concerto. Havia tristeza, alguns em silêncio e outros em cantoria.” E, confirma, que tal como em Lisboa, muita gente subiu ao palco no final para cantar “Grândola, Vila Morena”.
Jardim da Sereia, Coimbra, 26 de Maio de 1983
O concerto no Coliseu do Porto foi o último de José Afonso. Contudo, no dia seguinte, deslocou-se a Coimbra para receber a medalha de honra da cidade. Francisco Fanhais esteve lá e recorda que “em Coimbra ele não cantou, estava bastante cansado, mas houve uma homenagem. Em conversa com algumas pessoas, ligadas à universidade, contaram-lhe que, nessa época, ao contrário do que era hábito em décadas passadas, nos tempos de repressão, havia pouca solidariedade”.
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“Havia competição entre os estudantes”, diz-nos, “algo que não favorecia nada o companheirismo, o apoio mútuo. Algumas pessoas queixaram-se de que havia mais dificuldade em passar as sebentas, os apontamentos. E, após ouvir estas queixas, o Zeca apelou à solidariedade entre os estudantes. Foi a mensagem mais forte desse serão. Ao ouvir as queixas, as preocupações dos estudantes, ele apelou à solidariedade, que era isso que construía as ligações entre as pessoas, os laços fortes, e não a competição pura, pensar só em si próprio, e não nos outros. Foi uma ovação muito grande. Foi a maior ovação da noite.”
São trinta anos sem José Afonso, os mesmo 30 anos em que não deixámos de o ouvir. Mas também foram trinta anos a mais que tivemos para ouvir Zeca. “Ele deixou-nos, a sua música é eterna”, é mais ou menos esta a frase que todos dizem, no início ou no fim de todas as conversas. As memórias, as emoções e as relações que cada um tem com a sua música serão sempre diferentes, mas a mensagem insiste em ser universal, para quem esteve lá e para todos os outros.