O verso “Insisto não ser tristeza” vai ser o lema de um ano em que se assinalam os 30 anos da morte de José Afonso, disse Francisco Fanhais, presidente da associação com o nome do músico (AJA) — instituição que cumpre igualmente o 30.º aniversário em 2017. “A ideia é celebrar os 30 anos da associação e evocarmos o legado que o Zeca nos deixou, que não está morto, mas que devemos perpetuar para as gerações que nos seguirem, porque se não o fizermos não cumpriremos a nossa função”, sublinhou Francisco Fanhais.

“É um lema arrojado numa altura em que as coisas parece que vão por água abaixo”, disse. “Mas é também uma escolha, para contrariar tendências pessimistas. É a partir daí que estabelecemos uma série de iniciativas e de parcerias, com freguesias e municípios, com entidades públicas e privadas.” Lisboa, Setúbal, Braga, Faro, Santiago do Cacém, Santo André, Aveiro, Seixal, Almada, Évora, Santarém, Cacém, Abrantes e Bruxelas são os locais onde irão decorrer as iniciativas, entre as quais está previsto um concerto com o cantor Patxi Andión, em junho, em Évora.

Um concerto intitulado “30 anos”, com Francisco Fanhais e Pedro Fragoso, a 4 de fevereiro, na Casa da Cultura de Setúbal, é o primeiro de vários que reunirá, entre outros, Fanhais e Rui Pato, que aos 16 anos começou a acompanhar José Afonso em Coimbra. A 19 de fevereiro, no Teatro das Figuras, em Faro, subirão ao palco Francisco Fanhais, Rui Pato, B Fachada, Manuel Freire e Afonso Dias, entre outros. Quatro dias depois — a 23 de fevereiro, quando passam 30 anos da morte de José Afonso — haverá um tributo ao cantautor no Conservatório Gulbenkian, em Braga, que reunirá o Grupo Canto d’Aqui, Artur Caldeira, Ana Ribeiro e a cantora galega Uxia.

Maio - Manifestações culturais de apoio ao luto académico- 
Zeca Afonso estava connosco!

“Um artista da música, da poesia, da voz e que pôs a sua arte ao serviço da cidadania”, disse Francisco Fanhais

“Este rio, este rumo, esta gaivota”, “Semeio palavras na música”, “Somos nós os teus cantores”, “Tenho barco, tenho remos” e “Insisto não ser tristeza” são os títulos dos 19 concertos que integram a programação da iniciativa. Sobre uma data especial em Lisboa, integrada desta programação, Francisco Fanhais disse que a AJA gostaria de o fazer, mas que tudo dependerá dos custos. O Coliseu dos Recreios, em Lisboa — onde José Afonso atuou pela última vez em 29 de janeiro de 1983 e onde a 29 de março de 1974 foi cantada a “Grândola, Vila Morena” — ou a Aula Magna são salas de que o presidente da AJA “gostaria para aquela iniciativa”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Desta canção que apeteço”, o título de uma exposição sobre a obra discográfica de José Afonso, “Geografias de uma vida”, título de outra exposição, e “30 anos da AJA” são títulos de exposições que vão estar patentes em Évora, Mira-Sintra, Santarém, na Fundação Oriente, em Lisboa, Abrantes, Almada, Santo André, Santiago do Cacé, no Thêatre Molière (Bruxelas), Leiria, Évora, Setúbal e Faro.

Para Francisco Fanhais, “o mais importante das iniciativas é mostrar que Zeca foi um artista da música, da poesia, da voz e que pôs a sua arte ao serviço da cidadania de uma maneira desprendida e desinteressada de forma a contribuir para uma sociedade sem muros nem ameias e sem exploradores nem explorados”.

Uma memória “viva e marcante”

30 anos depois da morte de José Afonso, que memória é essa de que fala Francisco Fanhais? Entre os que os conheceram ou que lhe estão mais próximos no tempo, essa memória é “muito viva e marcante”, conta ao Observador. “O que continua a dizer-se dele é uma saudade imensa, porque a postura dele continua a ser marcante, uma referência muito grande para os seus contemporâneos.” Entre as gerações mais novas, o presidente da AJA — e cantor — descobre “gente interessada e preocupada”: “Ver novos músicos a reinterpretar as canções dele é notável. Isso é o que mais agradaria ao Zeca”.

Francisco Fanhais conta que esta contínua relação com quem vai descobrindo a obra de José Afonso é uma constante ao longo dos tempos. “Lembro-me de um espectáculo em Braga, em Janeiro de 1984. Ele não pôde ir, já estava muito doente [com esclerose lateral amiotrófica], mas mandou uma mensagem que eu próprio me encarreguei de ler:

“Encontrando-me actualmente numa fase de fraqueza física, reafirmo a disposição de me deslocar mais tarde a Braga, onde espero reencontrar os amigos e dialogar e conviver com os jovens e com todos aqueles para quem a justiça e a fraternidade são a razão da sua luta. Obrigado companheiros.
Um abraço do Zeca”

Contudo, Fanhais recorda que José Afonso era “uma espécie de franciscano” e não estava “preocupado com o reconhecimento que tinha”. “O Zeca detestava honrarias, era tudo menos vedeta. Também se cansava, por vezes não queria cantar mais. Lembro-me de, em ocasiões dessas, ele dizer ‘quem me obriga agora a cantar parece que me tira um dente a frio’. Até porque sempre deu mais prioridade ao que fazia enquanto cidadão. E penso não exagerar que ele consideraria, agora que teria 86 anos, que o melhor seria continuar com a mesma indignação face às injustiças.”

“Diz ao Zeca que ele não morre no coração dos novos”

Fanhais lembra-se do momento em que recebeu a notícia da morte de José Afonso: “Telefonou-me o filho mais novo, o Pedro, eram sete da manhã de 23 de fevereiro. Estava no Alvito, onde vivo. Ele estava há muito tempo no hospital, em Setúbal. Meti-me no carro e fui até lá. Lembro-me também de estar na mesma sala em que tinha colocado o corpo dele numa mesa de pedra, à espera que o fossem buscar.”

Pouco depois estava nas ruas uma manifestação popular de admiração e lamento, os dois estados de espírito em simultâneo, entre anónimos e entre os músicos que o acompanhavam. “Mais do que um líder, era uma referência. Sentíamos era que tínhamos perdido mais um amigo. Foi isso que sentimos quando ele zarpou.”

O presidente da AJA ouviu a música de José Afonso pela primeira vez em 1963. “Foi um professor me mostrou um EP com duas canções de cada lado. Num dos lados tinha ‘Os Vampiros’. Ouvi aquilo e foi um murro no estômago muito forte. Estava no seminário, tocava e cantava coisas de temática religiosa, sobretudo. Mas quando ouvi aquilo tudo mudou, uma voz fantástica, uma inspiração poética maravilhosa. Foi uma revolução.

Em 1968, Fanhais conheceu José Afonso pessoalmente. Data exata? Foi a 28 de dezembro: “Um amigo em comum organizou um espectáculo nas Grutas das Lapas. Sei a data porque faz parte de um relatório da PIDE. O agente não conseguiu entrar, mas tratou de se informar e fez um relatório.” Francisco passou a integrar um grupo de músicos “que se encontrava regularmente, que fazia atuações conjuntas”. Até ao dia em que surgiu o Zip Zip:

“O Zeca perguntou-me se eu queria ir à televisão. E num certo dia ele foi ao Villaret falar com o [Raul] Solnado. O José Fialho Gouveia disse ao Zeca: ‘O padre que venha cá cantar no sábado’. Lá fui. Cantei quatro temas, disse umas coisas e no final só passou metade, e com muita dificuldade. Só passou porque os organizadores se opuseram à censura, como já tinham feito antes, que ou passava ou o programa acaba. E aquele programa não podia acabar, o país parava para ver o Zip Zip.”

Foi por essa altura que Francisco Fanhais, que então era padre, se afastou do sacerdócio e da Igreja. “Integrei o grupo daqueles cantores, o Zeca, o Barata Moura, o Zé Mário, todos eles. Dava aulas de moral e aí falava-se de tudo”, recorda. Em tempos de Guerra no Ultramar, Fanhais era contra a “regra de silêncio vigente nas instituições católicas”. “Tínhamos consciência da gravidade da situação e a Igreja era um forte apoiante da ditadura”, conta. A “denúncia pública” que fazia publicamente “criou problemas” e Francisco Fanhais viu-se “interditado de continuar nas funções de padre, de dar aulas de moral e de cantar, a não ser que tivesse autorização da censura”. Decidiu ir para França, para “fugir àquela asfixia que estava acontecer”: “Fui em Abril de 1971. Fui com o Zeca, de carro, para Paris. Acabei depois por tomar alguns compromissos políticos mais radicais e voltei depois do 25 de Abril.”

Hoje faz o que tem feito pelo menos nos últimos 30 anos. “Continuo a cantar as mesmas canções, a explicar quem foi o José Afonso nas escolas e falar da importância de assumirmos compromissos. E tenho sempre surpresas incríveis. Em tempos, ainda o Zeca era vivo, numa escola houve um miúdo que me pediu para levar um recado: ‘Diz ao Zeca que ele não morre no coração dos novos’. E isso continua.”

Mais informação no site oficial da Associação José Afonso