Com a dissolução do Parlamento à vista, as alterações ao diploma que regulará a morte medicamente assistida em Portugal são votadas já esta quinta-feira. Deputados atentaram nos reparos do Tribunal Constitucional e acrescentaram a definição concreta dos conceitos que o TC considerou pouco “precisos”. A discussão é feita agora a pedido do Presidente da República, para desagrado dos sociais-democratas que viram ali mais uma provocação de Marcelo, mas manterão a liberdade de voto na bancada o que deverá significar um resultado semelhante ao de fevereiro do ano passado quando o diploma foi aprovado.

Que reparos fez o Palácio Ratton, com que clarificações poderá contar Marcelo na redação do próximo decreto que lhe chegar a Belém e como estão as contas da aprovação? Seis respostas sobre a votação desta quinta-feira.

Matemática da aprovação

A versão chumbada pelo Tribunal Constitucional foi aprovada com os votos de grande parte da bancada do PS, do BE, PAN, PEV, Iniciativa Liberal e 14 deputados do PSD. Contra votaram os deputados do CDS, Chega e PCP. O PS e PSD deram liberdade de voto aos deputados as contas fixaram-se em 136 votos a favor, quatro abstenções e 78 votos contra.

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Com a devolução do diploma ao Parlamento, depois do chumbo do Constitucional, feitas as mudanças necessárias, o diploma deverá ver novamente luz verde dos parlamentares. Ainda que tenha contestado a decisão de fazer a votação do diploma já esta quinta-feira, a bancada parlamentar do PSD deverá dar novamente liberdade de voto aos deputados o que garantirá a aprovação do diploma sem grandes dificuldades, à semelhança do que aconteceu da primeira vez.

O que é que o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional?

O número 1 do artigo 2.º da lei é a principal fonte de problemas identificados pelos juízes do Constitucional. Consideraram os juízes que os conceitos ali contidos tinham problemas de “precisão”.

Artigo 2º nº1

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“Para efeitos da presente lei, considera-se antecipação da morte medicamente assistida não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”

Na expressão “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”, a maioria dos juízes considerou que o conceito “gravidade extrema” é indeterminado e que, “associado a uma lesão definitiva, torna-se ainda mais patente, quando confrontada com a falta de consenso relativamente ao caráter fatal das situações clínicas” onde se pode recorrer à morte assistida. Ou seja, encontrar uma forma com maior “rigor” para balizar as “situações da vida em que pode ser aplicado”, segundo disse João Pedro Caupers na leitura pública do acórdão o presidente do Tribunal Constitucional.

E ainda sobre a mesma questão da “gravidade extrema”, e o facto de esta situação não estar devidamente sustentada, o juiz relator escreve que é “ainda possível, desejável e exigível uma maior densificação” da expressão. Machete apontou ainda problemas sobre o uso do termo “consenso científico”, que diz que “não aumenta nem diminui, de forma relevante, o grau de indeterminabilidade que a escassa densificação do referido conceito projeta”. Primeiro porque não dá “qualquer indicação sobre como deve ser apurado ou identificado tal ‘consenso científico’”

Em resumo, faltava identificar “elementos suficientemente seguros, certos, quer sobre a metodologia ou metodologias possíveis” para sustentar esse consenso e também determinar “o universo dos peritos médicos segundo cujo consenso certa lesão deve ser considerada ‘definitiva’ e ‘de gravidade extrema’”.

Ora, de volta ao Parlamento a solução encontrada pelos deputados foi a de introduzir um novo número para clarificar conceitos. O novo A do artigo 1.º, contém “definições” e os deputados acreditam que será suficiente para afastar qualquer reserva do Tribunal Constitucional.

Ao Observador, José Luís Ferreira frisa que o acórdão do TC não considera a eutanásia inconstitucional. “Vem dizer, aliás, que o direito a viver não pode transformar-se num dever de viver sob qualquer circunstância”, nota o deputado.

Como é que os deputados ultrapassam a decisão do Constitucional?

Em 8 alíneas, o novo A do artigo 1.º faz as definições dos conceitos de “morte medicamente assistida”, “suicídio medicamente assistido”, “eutanásia”, “doença grave”, “lesão definitiva ou gravidade extrema”, “sofrimento”, “médico orientador” e “médico especialista”. Já no artigo 2.º são acrescentados dois números para especificar em que casos pode ser pedida a morte medicamente assistida e como pode ocorrer.

Assim, segundo a proposta de alteração ao Decreto 109/XIV a que o Observador teve acesso as definições passam a ser:

  • Morte medicamente assistida: a que ocorre por decisão da própria pessoa, em exercício do seu direito fundamental à autodetermiação e livre desenvolvimento da personalidade, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde;
  • Suicídio medicamente assistido: autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente, sob supervisão médica;
  • Eutanásia: administração de fármacos letais, pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito;
  • Doença grave ou incurável: doença grave, que ameace a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade;
  • Lesão definitiva de gravidade extrema: lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa;
  • Sofrimento: um sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave ou incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa;
  • Médico orientado: médico que tem a seu cargo coordenar toda a informação e assistência ao doente, sendo o interlocutor principal do mesmo durante todo o processo assistencial, sem prejuízo de outras eventuais obrigações que possam caber a outros profissionais. O médico orientador é indicado pelo doente;
  • Médico especialista: médico especialista na patologia que afeta o doente e que não pertence à mesma equipa do médico orientador”

Em relação a quem pode pedir a morte medicamente assistida e como esta pode ocorrer, fica claro no novo texto que:

“A morte medicamente assistida ocorre em conformidade com a vontade e a decisão da própria pessoa, que se encontre numa das seguintes situações:

a) Lesão definitiva de gravidade extrema;

b) Doença grave ou incurável.

A morte medicamente assistida pode ocorrer por:

a) Suicídio medicamente assistido;

b) Eutanásia”

Porquê discutir agora? Marcelo quis

Marcelo Rebelo de Sousa é um assumido opositor da despenalização da morte assistida. Na quarta-feira, 27 de outubro, no mesmo dia em que o Orçamento do Estado foi chumbado, o Presidente da República jantou com Eduardo Ferro Rodrigues e fez questão de sinalizar que queria a discussão da eutanásia no Parlamento antes da dissolução.

Tudo o que aconteceu a seguir resulta de relatos indiretos — mas não desmentidos. No dia seguinte, quinta-feira, na reunião que junta todos os líderes parlamentares para discutir o agendamento dos trabalhos, o tema foi abordado. Adão Silva, líder da bancada parlamentar do PSD, defendeu que discutir e votar a despenalização da morte assistida seria uma “provocação” ao Presidente da República. E terá sido aí que Eduardo Ferro Rodrigues revelou: tinha sido Marcelo a incentivar a discussão.

“O senhor Presidente da República, no dizer do senhor presidente da Assembleia da República, terá garantido, que se chegasse nestes dias, nas próximas semanas, um novo decreto com as alterações ao decreto que foi vetado, ele não obstaria minimamente”, revelou um estupefacto Adão Silva aos jornalistas.

Esta versão dos factos nunca foi desmentida por Marcelo Rebelo de Sousa ou Eduardo Ferro Rodrigues. E a direção do PSD não perdoou.

Rui Rio reagiu mal. Porquê?

Tal como explicava o Observador, o núcleo duro de Rui Rio entendeu a luz verde dada por Marcelo Rebelo de Sousa como mais uma provocação — a derradeira — do Presidente da República. O tema da eutanásia é divisivo no eleitorado do PSD, foi o primeiro sinal público de divergência entre Rio e Rangel, criou um psicodrama no partido que culminou com ameaças de demissão do presidente social-democrata e tem sido, de resto, um dos argumentos que o eurodeputado tem usado para atacar Rui Rio.

Aos olhos da direção do PSD, a pressa inexplicável para que a Assembleia da República discuta um diploma desta magnitude sem que nada o obrigasse só pode ser interpretada como uma forma de dar mais argumentos a Rangel para atacar Rio.

De resto, Adão Silva, líder parlamentar do PSD, nem sequer escondeu a estupefação. “O senhor Presidente da República, no dizer do senhor presidente da Assembleia da República, terá garantido, que se chegasse nestes dias, nas próximas semanas, um novo decreto com as alterações ao decreto que foi vetado, ele não obstaria minimamente”, afirmou aos jornalistas.

“Este tipo de matérias tem que ser debatido numa grande serenidade, numa grande tranquilidade e não pode ser debatido num exercício de 25ª hora, quando há um conjunto de atribulações dentro do parlamento e fora do parlamento.”

Marcelo aprova ou não?

Na primeira vez que se pronunciou sobre o diploma, o Presidente da República preferiu enviar o projeto de lei para o Tribunal Constitucional, evitando o veto político — uma prerrogativa ao alcance de todos os Presidentes.

Ora, os juízes do Palácio Ratton sinalizaram de forma bastante clara o que estava errado e o que deveria ser ultrapassado para superar a inconstitucionalidade.

Portanto, não é de esperar que resolvidas as questões levantadas pelo Tribunal Constitucional Marcelo venha a levantar objeções à promulgação do diploma.