O homem que foi detido pela Polícia Judiciária por ameaçar de morte o Presidente da República, caso Marcelo não lhe transferisse um milhão de euros, poderá não ser um homem inofensivo. Se, por um lado, o chefe de Estado desvalorizou a ameaça — a carta que chegou a Belém até tinha um número de telemóvel e a identificação de uma conta bancária para onde deveria ser transferido o dinheiro —, para a Polícia Judiciária a investigação foi bem mais complexa e o resultado foi inesperado: o autor da ameaça era já conhecido da Polícia.
O homem, detido esta terça-feira na sequência de uma investigação de três meses da PJ, tinha sido preso e condenado no passado por crimes idênticos contra outras altas figuras do Estado e da área da segurança: espiões, procuradores —incluindo a própria Procuradora-Geral da República — e até o próprio Diretor Nacional da PJ já tinham estado na mira deste ex-militar. Mas a pena de internamento em ambulatório, que lhe foi aplicada em março de 2020, permitiu-lhe continuar a cometer os mesmos crimes.
Agora, porém, havia uma diferença significativa face ao seu histórico criminal: desta vez, a exigência de um pagamento avultado (um milhão de euros) não serviria como moeda de troca para a não divulgação de dados pessoais e financeiros. Desta vez, o homem fazia ameaças diretas contra a integridade física; e a ‘vítima’ seria o Presidente da República.
“Estas personagens não podem ser desvalorizadas. Fixam um alvo e podem cometer uma desgraça”, alerta uma fonte da PJ, que diz ao Observador que, ao contrário do que Marcelo Rebelo de Sousa insinuou, a investigação “deu muito trabalho”.
Foi em novembro que o Correio da Manhã noticiou a investigação, a cargo da Polícia Judiciária. Segundo este diário, Marcelo tinha recebido uma carta dias antes a ameaçá-lo de morte. Soube-se esta terça-feira que a carta foi enviada a 26 de outubro. Junto à missiva vinha uma bala e a promessa de que, se o milhão de euros exigido não fosse pago, o Presiudente da República seria morto com uma munição igual. A carta trazia ainda um número de telemóvel para as negociações e, também, o IBAN de uma conta para a qual o chefe de Estado deveria transferir o valor exigido.
Marcelo nem sequer viu a carta
Marcelo não estaria em Belém quando aquela correspondência lhe chegou, e continuou nas suas habituais aparições públicas, tendo mesmo feito deslocações ao estrangeiro, como foi o caso do Brasil. A Direção Nacional da PSP — entidade a que compete garantir a segurança pessoal de altas individualidades, como o Presidente da República — não especificou, em resposta a questões colocadas pelo Observador, se a operação de segurança da primeira figura do Estado foi reforçada na sequência do episódio da carta, Mas assegura que o nível de ameaça está em permanente análise e que dele dependem os procedimentos de segurança a adotar.
A julgar pela reação de Marcelo, quando se soube que tinha diretamente visado naquelas ameaças, a investigação seria simples: a carta continha um número de telefone e uma conta bancária, não seria difícil chegar ao autor do documento.
Além do mais, como disse esta terça-feira, já depois de ser anunciada a detenção do suspeito, do seu ponto de vista, aquela carta nunca significou uma “ameaça política”, mas antes um pedido de dinheiro. Ameaças, contou há poucos meses, sempre foram uma constante na sua vida pública. Mais ainda quando era comentador televisivo, segundo afirmou o próprio.
Essas situações passaram, depois, por um período “de maior intensidade”, durante os incêndios de 2017 e 2018, mas “depois passou a ser um evento raro”.
PJ longe de saber que já conhecia o suspeito
Quando a Polícia Judiciária foi chamada a investigar o caso, estava longe de imaginar que iria chegar a um suspeito que já conhecia tão bem: um antigo militar, de cerca de 40 anos, que foi condenado em 2020 por crimes idênticos contra altas figuras do Estado, entre eles o próprio Diretor Nacional da PJ, cujos dados desviou quando trabalhou na Segurança Social.
O suspeito foi oficial miliciano até aos 27 anos; depois, abandonou a vida castrense e passou a trabalhar para a Inspeção-Geral da Saúde. Acabaria, mais tarde, por ingressar na Segurança Social e foi aqui que foi apanhado. A sua história chegou a ser contada em 2020 pela revista Sábado e recordada pelo jornal Sol já depois de ter sido condenado, ao que o Observador apurou, a uma pena de cerca de dez anos de internamento em regime ambulatório.
“É um homem com um QI elevadíssimo, mas como uma perturbação de personalidade. Tem uma grande capacidade de intrusão do ponto de vista ciber”, descreve fonte da PJ ao Observador.
Segundo se noticiou na altura, quando estava ao serviço da Segurança Social, o antigo militar montou um esquema para aceder ao sistema informático e chegou mesmo a criar infindáveis listas com dados pessoais de magistrados, entre eles os da própria Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, o Diretor Nacional da PJ, Luís Neves, e até de espiões dos serviços de informações portugueses.
Depois, criou um endereço de e-mail através do qual dirigiu a várias pessoas, entre elas a PGR e o Diretor Nacional da PJ, um pedido 500 mil euros para não tornar públicas aquelas informações. Pedia especificamente o valor em notas de 20 e 50 euros. Além dos dados dos visados, a base de dados tinha também dados de familiares diretos, informações sobre rendimentos e moradas.
Preso preventivamente e depois condenado a internamento
A PJ conseguiu detê-lo quando voltou a repetir a ameaça. Ficou preso preventivamente pelos crimes de extorsão agravada na forma tentada e acesso ilegítimo. A 30 de março de 2020 foi mesmo condenado a uma pena de internamento, depois de diagnosticadas as perturbações psiquiátricas de que sofria.
Esta terça-feira, depois de três meses de investigação — e já depois de constatar que o autor das ameaças era um antigo conhecido da investigação criminal — a PJ voltava a bater-lhe à porta “com todos os cuidados” que o caso exigia. Não chamou a PSP para auxiliar na operação, como confirmou o Observador, e encontrou-o novamente em casa — onde viverá com a mulher e com os filhos, numa vida aparentemente estruturada.
“Se o número de telemóvel e a conta bancária fossem dele, não teríamos demorado todo este tempo a apanhá-lo”, justifica a PJ ao Observador. Mas o suspeito usou uma conta de alguém a ele ligado que nem sabia do seu plano criminoso.
Coação agravada, tentativa de extorsão e uma arma apreendida
Esta terça-feira de manhã, a PJ anunciou em comunicado a detenção do suspeito pelos crimes de coação agravada, de extorsão na forma tentada e de detenção de arma proibida. “Uma aturada investigação por parte da Unidade Nacional Contra Terrorismo permitiu chegar à identificação do presumível autor da prática dos mencionados crimes, tendo nesta data sido realizada uma busca à residência deste, e a apreensão de vários elementos de prova”, lia-se. A detenção ocorreu na área da Grande Lisboa.
Marcelo acabaria por reagir, desvalorizando novamente a ameaça. Já o Diretor Nacional da PJ, Luís Neves, à margem da apresentação da Operação Floresta Segura, realizada na Tapada Nacional — numa cerimónia que contou também com a presença de Marcelo —, esclareceu que não foi o número de telefone e o da conta bancária que conduziram àquela pessoa.
“A investigação que hoje teve uma realização operacional nada teve a ver com esses dados”, afirmou Luís Neves, acrescentando que a PJ teve “que trabalhar muito, contínua e arduamente, para chegar a um resultado”.
O suspeito deverá ser presente a tribunal esta quarta-feira para lhe ser aplicada uma medida de coação.