Esta entrevista a Vasco Rosa da Silva foi originalmente publicada no início de setembro e é novamente destacada pelo Observador tendo em conta a notícia desta terça-feira, do Jornal de Negócios, de que o Governo vai mesmo avançar com a limitação dos Vistos Gold ao investimento fora de Lisboa e Porto (no caso do imobiliário).
O Governo deve pensar duas vezes antes de excluir o imobiliário em Lisboa e Porto dos investimentos elegíveis para obter os chamados Vistos Gold, não só porque esse é um investimento importante nesta fase de crise económica (provocada pela pandemia) mas por uma posição de princípio: é verdade que esse fluxo de investimentos criou alguns desequilíbrios mas a melhor solução não é proibir, de forma simplista, mas, sim, criar condições para que esses capitais e essas pessoas tenham alternativas viáveis. Esta é a convicção de Vasco Rosa da Silva, chief executive officer (CEO) da Kleya, uma empresa que assessora particulares e empresas estrangeiras no processo de vinda para Portugal.
O contacto diário com investidores estrangeiros ensinou a Vasco Rosa da Silva que os investidores precisam, até certo ponto, que “lhes façamos a papinha toda” – portanto, se queremos que eles invistam no interior é necessário criar estruturas locais e descentralizadas que inventariem o que existe nos vários territórios para se poder investir, uma espécie de gabinete local de apoio ao investidor em que as autarquias e as universidades/politécnicos poderiam um papel a desempenhar. Isso é apenas uma das ideias dadas pelo empresário, que antes de abrir a Kleya trabalhava na área de gestão de património no Barclays.
“Se não existir essa facilidade de apostar noutras oportunidades, e se realmente se proibir o investimento imobiliário em Lisboa e Porto, então o investimento simplesmente vai fugir para outros sítios do mundo“, avisa Vasco Rosa da Silva, pedindo uma ponderação cuidada sobre esta matéria. “Há que ter em conta que muitas vezes quando se vai para um novo país o mais fácil é começar pela capital, mas muitas vezes isso é apenas numa primeira fase porque essas pessoas depois vão ganhar confiança, vão pegar no carro e conhecer outras regiões – e muitas deslocam-se depois para fora”, garante.
“‘Não consigo pensar em outro sítio onde preferisse estar neste momento'”
Como é que o vosso negócio enfrentou este período de estado de emergência e confinamento, com movimentos limitados?
O que nós fazemos é dar a mão às pessoas que vêm para cá, viver ou investir. Os nossos clientes, estrangeiros, veem-nos como a âncora deles aqui em Portugal e por isso nunca tivemos tanto trabalho como nesta fase, porque havia muita ansiedade, muitas dúvidas. Algumas pessoas estavam distantes, não podiam viajar, tinham cá as suas casas, os seus investimentos… e nós estávamos cá e tínhamos de dar resposta a essas dúvidas. Por outro lado, quanto àqueles que já cá estavam, recordo-me, por exemplo, de um senhor sueco que me disse: “Eu não consigo pensar em outro sítio onde preferisse estar neste momento”. Houve, aliás, pessoas que preferiram vir para cá para fazer a quarentena. É muito mais agradável estar aqui perto do mar ou perto do rio do que estar no centro de Londres ou no centro de Paris.
Mas a atividade sofreu, certamente…
Claro, tivemos de fechar o escritório e mandar as pessoas para casa, a equipa teve uma capacidade de resposta fantástica mas eu, como CEO, estava também preocupado com o negócio – porque obviamente tudo se congelou, tudo o que era decisões de investimento, de mudança para cá, ficaram em pausa. Um dos cenários que fiz foi de uma quebra de até 70% nas receitas. Felizmente não se concretizou, estamos a sentir uma retoma – e a realidade é que, entre todas as pessoas que estavam em pipeline, ninguém colocou a hipótese de desistir de Portugal. As pessoas quiseram fazer um compasso de espera mas a racionalidade da decisão de vir para Portugal viver ou investir mantinha-se.
Porquê?
Tem a ver com a segurança que o país oferece, segurança na sociedade, segurança política, uma estabilidade que faz com que, sobretudo quando comparamos com o mundo de hoje, Portugal pareça um oásis. Quando nós olhamos para a situação política muito complexa em Espanha, os nacionalismos em vários países, alguma perseguição fiscal que é feita em Espanha e em França. Se olharmos para as lideranças no Brasil e nos EUA, que deixam as pessoas inquietas… É por isso que me custa muito ver discursos xenófobos ou falar-se em racismo em Portugal porque faz parte da cultura portuguesa esta mestiçagem e esta abertura ao mundo: fomos os pioneiros da globalização. Investir na educação também é isso: não é só ensinar matemática e português, é ensinar esses valores que fazem com que quer um turco, quer um americano, quer um chinês possam sentir-se bem e viver bem em Portugal.
Vistos Gold. “Espero que não vá ser no sentido de proibir, mas sim de aperfeiçoar”
Está em aberto uma possível alteração legislativa no sentido de limitar os Vistos Gold a outras regiões que não Lisboa e Porto, no caso do investimento em imobiliário. Mas com a pandemia essa ideia parece ter saído da agenda – na última vez que o Governo falou nisso, em abril, disse que essa não era “uma prioridade”. Acha que a limitação vai avançar?
Sim, há uma autorização de alteração legislativa até ao final do ano. Eu compreendo a questão da concentração excessiva do investimento no imobiliário de Lisboa e Porto. Mas esta não é a solução que eu defendo: temos é de criar condições para que seja fácil persuadir os investidores a fazerem outros investimentos que não apenas o imobiliário. Persuadi-los a criar uma empresa que origine 10 postos de trabalho não é tão fácil quanto comprar uma casa. Temos a nossa lei do trabalho, é a segurança social, todos esses processos… E o imobiliário, em contraste, é simples, terra já não se fabrica, é seguro, eles sentem que têm ali um ativo…
É difícil convencê-los a fazer outros investimentos?
O Visto Gold permite investimentos na cultura, na investigação científica, em várias outras coisas. Devemos é criar condições para que seja mais fácil orientar os investimentos para essas áreas. Não podemos é perder o fluxo de investimento. Porque se não existir essa facilidade de apostar noutras oportunidades, e se realmente se proibir o investimento imobiliário em Lisboa e Porto, então o investimento simplesmente vai fugir para outros sítios do mundo. Há que ter em conta que muitas vezes quando se vai para um novo país o mais fácil é começar pela capital, mas muitas vezes isso é apenas numa primeira fase porque essas pessoas depois vão ganhar confiança, vão pegar no carro e conhecer outras regiões, e depois de ganhar alguma confiança muitas deslocam-se para fora. Nós incentivamos muito os nossos clientes a conhecerem o país, a aproveitarem os fins de semana para sair da cidade. Aí começam a perceber que têm boa Internet, que têm uma boa estrada, que têm um hospital não muito longe caso tenham algum problema…
Mas, perguntava, acha que a limitação vai mesmo concretizar-se ou a crise económica fará com que isso não aconteça?
Eu creio que, dada a situação da pandemia e a necessidade de atrair investimento, as pessoas vão voltar a olhar para isto com atenção, estou otimista de que assim será. O regime poderá ter alterações (tem sempre evoluído) mas eu espero que não vá ser no sentido de proibir, mas sim de aperfeiçoar. Até porque mesmo em Lisboa e Porto continua a haver necessidade de investimento na área do imobiliário – não precisa é de ser todo no segmento de luxo. Há muita reabilitação urbana para fazer nas cidades e, outro exemplo, temos falta de residências de estudantes em Lisboa: porque é que a Câmara de Lisboa não cria com agentes locais um fundo imobiliário para desenvolver projetos de residências de estudantes, que podem ser atrativos para os Vistos Gold?
Nesta fase, com a pandemia, para onde é que estão a ver os investimentos fluir? Há alguma tendência ou oportunidade que estejam a identificar?
Estamos a notar um aumento da procura em projetos alternativos no turismo, como no turismo de natureza em regiões de baixa densidade – temos dois projetos em curso nessa área, mais um terceiro em pipeline. E nos pequenos investidores temos visto muita procura por moradias e a saída dos centros urbanos. Isso é uma tendência real. Muitas pessoas que vieram para Portugal numa primeira fase preferem alugar – o que estamos a ver é que alguns estão a passar para a fase seguinte (comprar) e nesse passo seguinte estão, neste momento, quase todos a optar por moradias mais fora dos centros urbanos.
E há oferta, casas disponíveis?
Há oferta, sim… Mas há que ver o nível de conforto que é exigido por alguns clientes, que muitas vezes não se coaduna com a qualidade construtiva que encontramos em alguns locais. Normalmente, as casas exigem um trabalho de requalificação, ao nível da eficiência energética e do conforto térmico. Mas há oferta e é uma oportunidade, porque depois de valorizar e requalificar a casa fica-se com um ativo muito mais valioso.
A “bazuca” europeia. “Há coisas muito mais importantes do que grandes investimentos”
Estamos em plena discussão sobre o plano de recuperação que o país deve preparar. Do seu ponto de vista, quais devem ser as prioridades?
Em termos de política económica nós não precisamos de investir muito na construção de grandes infraestruturas. Muitas vezes, o software do país é o mais importante.
O software?
Sim, a forma como é feito o atendimento na administração pública, as questões da rapidez da justiça, a educação, as línguas – que são uma área onde Portugal também tem um ativo muito grande que é ter quase toda a gente com idade até 50 anos a falar pelo menos um pouco de inglês. As pessoas até ficam surpreendidas. E a burocracia é um problema mas, por exemplo, na interação com a autoridade tributária damos 10-0 a muitos outros países – é possível pedir NIF, etc, tudo online. Seria bom que a Segurança Social seguisse o mesmo caminho. São esses elementos que são muito mais importantes para que Portugal continue a ser atrativo e captar pessoas e investimento.
Não são precisos grandes investimentos?
Há coisas muito mais importantes do que grandes investimentos. Somos um país pequeno e as empresas, para crescerem, têm de olhar para o mercado global – qualquer startup que pensa evoluir baseada no mercado português não terá probabilidades de sucesso muito grandes. O que Portugal precisa mais é do tal software, a capacidade de acelerar os processos, investir no marketing.
Marketing do país?
Uma das maiores dificuldades que tive no meu negócio, no início, em 2015, era desenvolver a marca Portugal e tornar a marca Portugal como destino. No turismo já o éramos, até certo ponto, mas era um turismo muito só sol e praia. Esse perfil começou a mudar. Em Espanha e Itália eles têm uma grande capacidade de criar marcas – em Portugal não falta qualidade nos nossos produtos e serviços, mas falta uma capacidade de desenvolver marca e de criar reputação.
Mas, dizia, não é preciso hardware…
O país já tem bastante hardware, se calhar até tem estradas a mais, a nossa internet no interior do país é melhor do que em Londres. É certo que pode faltar alguma ferrovia, eventualmente um novo aeroporto, podemos melhorar os transportes públicos nas áreas metropolitanas, ter uma economia mais verde. Mas também muito importante é que se invista na capacitação do país, na criação da marca e na qualificação das pessoas. É mais apetitoso aparecer nas notícias os grandes investimentos, mas isso não é o mais importante. Não é mais importante do que a cultura, por exemplo. A cultura é essencial para a afirmação de um país. Diz quem estudou marketing que os fatos italianos começaram a ser conhecidos porque o Richard Gere os usava no Oficial e Cavalheiro. Precisamos de ter aquele artista, aquele…
Mais do que jogadores de futebol…
Sim, mais do que jogadores de futebol – isso é muito importante para a criação dessa reputação. E sobretudo quando temos em conta o impacto que esta pandemia teve no turismo, que é muito importante para a nossa economia, temos de apostar num turismo que seja menos “sol e praia” e mais com cultura, com herança, com património natural e cultural. E essa reputação também se constrói a partir das redes de contactos dos estrangeiros que vão escolhendo Portugal para viver ou investir. Mesmo que venham aposentados, mantêm redes de contactos nos seus países e, além disso, quando chegam aqui conhecem um jovem empreendedor e conhecem o país… isso muitas vezes resulta em mais investimento, que é crucial para o desenvolvimento da nossa economia.
Investir no interior. É preciso “fazer a papinha” aos investidores
Do que leu sobre o chamado “plano Costa Silva”, a estratégia para utilizar os fundos europeus que aí virão, viu lá boas ideias?
Não li o plano mas as notícias que li na imprensa dão a entender que é dada alguma prioridade às questões da coesão territorial, da banda larga – mas, nessa ótica, penso que seria importante a criação de mecanismos a nível local e descentralizado de entidades que permitam criar condições para atrair investimento.
Não existem?
Não. Porque temos uma AICEP que trabalha a nível nacional, temos um turismo de Portugal – que até tem, depois, o turismo do Algarve, etc., está mais ou menos regionalizado – mas depois quando vamos ao nível local, se eu quiser trazer um investidor estrangeiro para o meio do Alentejo ou para Castelo Branco chego lá e temos de fazer quase tudo. Lá não existe uma agência ou um organismo local que, por exemplo, inventarie o que é património local ou natural onde vale a pena investir.
Uma espécie de gabinete de apoio ao investidor?
Sim, a nível local. Todo esse trabalho normalmente tem de ser feito por nós. Isso seria muito importante porque há empresas, fábricas que se houvesse este tipo de infraestrutura – que tem a ver com a organização, que não passa pelo Estado mas, sim, pelos agentes locais, autarquias, as universidades e politécnicos espalhadas pelo país. São esses que podem criar esses centros que facilitem a atração de investimento e de pessoas – porque quem está lá, nos sítios, é que sabe o que existe. Organismos como a AICEP trabalham a um nível macro, mas a um nível micro tem de haver estruturas que conheçam o que há, o património, o talento, etc. Em Lisboa e no Porto é fácil para nós fazer essa ponte – alguém que venha investir no setor hoteleiro em Lisboa e Porto temos aqui muitos promotores locais que tratam de avaliar projetos, desenvolver, gerir etc. Mas quando falamos de outras localidades do país as coisas começam a complicar-se.
E o que mais podia ajudar a essa descentralização?
No interior, essas agências locais de que falávamos há pouco deveriam poder criar pequenos fundos de capital de risco para desenvolver negócio. Se houver um selo de garantia do Estado de que é algo credível, que é auditado, que é fiscalizado, isso vai tornar mais fácil que investidores estrangeiros queiram ir lá investir – 200 mil [euros], 300 mil… Quando falamos de Vistos Gold falamos sobretudo de pessoas que querem ter acesso ao Espaço Shenghen, são particulares que querem vir e ter segurança para os seus investimentos, não querem dores de cabeça – temos de lhes fazer a papinha toda, de certo modo. Se lhes oferecermos um fundo de investimento onde eles podem colocar o dinheiro com segurança, um fundo que tem como política desenvolver negócios no interior, da economia verde, do mar, etc, é uma forma de captar dinheiro de forma fácil.
Banco de Fomento vai ter impacto? “Não sei, tenho as minhas dúvidas”
E o Banco de Fomento, que está a ser “relançado” e que o ministro da Economia garante que terá um impacto grande?
Espero que o Banco de Fomento possa ser realmente descentralizado e que possa ter agências que não são meras agências bancárias mas agências de fomento em várias localidades em Portugal.
A Caixa Geral de Depósitos nunca teve essa capacidade?
A Caixa Geral de Depósitos devia ter sido privatizada há muito tempo mas não houve condições. O que precisamos é de um banco de fomento com uma vocação de capital de risco que a banca tradicional muitas vezes não tem ou não pode ter porque tem obrigações regulamentares para garantir a segurança dos depósitos. Tem de haver investimento e dinheiro para investir em empresas novas, em ideias novas, sabendo-se se calhar que em 10 só uma é que vai ter maior sucesso, mas isso é a lógica do capital de risco.
Mas acha, então, que o Banco de Fomento vai realmente desempenhar esse papel?
Não sei, tenho as minhas dúvidas. Eu farei a minha parte para ajudar, porque na nossa empresa todas as semanas estamos em vários pontos do país e tentamos não só inventariar os possíveis investimentos que existem – é uma parte importante do nosso trabalho – mas também lidar com as estruturas locais e fornecedores locais para que estes criem condições e saibam receber esse investimento estrangeiro.