(Este artigo foi inicialmente publicado em dezembro de 2017. É atualizado agora após a morte de Isabel II esta quinta-feira, 8 de setembro de 2022)
Não há muito que a rainha Isabel II possa ou costume fazer no que diz respeito a política. Não pode dissolver a Câmara dos Comuns desde 2011 — e a última vez que isso aconteceu foi em 1831, no tempo de Guilherme IV — e nem sequer lhe é permitida a entrada naquela sala, a bem da independência dos legisladores. Embora esteja nos seus poderes declarar guerra ou aprovar uma intervenção militar, todas as vezes que os soldados do Reino Unido empunharam armas após a viragem do século — a guerra no Iraque, em 2003; o bombardeamento à Líbia de Khadafi, em 2011; os ataques ao Estado Islâmico no Iraque e na Síria, em 2014 e em 2015, respetivamente — foram fruto de votações parlamentares onde a rainha Isabel II não foi tida nem achada. E, apesar de ter poder de veto sobre as leis que forem aprovadas na Câmara dos Comuns, a última vez que isso aconteceu foi em 1707.
É com todo este contexto que perguntamos a Bob Morris, constitucionalista, especialista na monarquia britânica e professor da City, University of London: afinal, para que serve a família real liderada por Isabel II e a monarquia que ela representa?
“A monarquia é um dos centros da nossa vida nacional”, responde Bob Morris ao Observador. “Representa uma certa continuidade política ao longo dos tempos e é um elemento de união nacional e de lealdade. E embora tenha um reduzido leque de funções políticas, tem conseguido sobreviver aos olhos da nossa sociedade.”
Também Phil Dampier, jornalista e autor de vários livros sobre a realeza britânica, explica ao Observador aquilo que entende ser o valor da monarquia britânica no século XXI. “A monarquia é uma força que promove a união entre cidadãos que estão desiludidos com políticos”, refere. E depois acrescenta: “Além disso, traz cor e entusiasmo às nossas vidas”.
“Cor e entusiasmo” é uma das maneiras possíveis para resumir as notícias que surgiram esta semana em torno da família real britânica. Depois de algumas relações que fracassaram, e envolto num clima de especulação e antecipação de uma intensidade tal, que só a imprensa tabloide britânica conseguiria alimentar anos a fio, o príncipe Harry anunciou ao mundo que tinha pedido em casamento a atriz norte-americana Meghan Markle, com quem mantém uma relação pelo menos desde 2016.
Muito dificilmente o príncipe Harry virá a ser rei. À sua frente, na linha de sucessão, estão quatro pessoas. Primeiro, com 69 anos, o pai, príncipe Carlos. De seguida, o irmão, príncipe William, que conta 35 anos. E, depois, estão os seus dois sobrinhos: o príncipe George, de 4 anos, e a princesa Charlotte, de apenas 2.
Em editorial, o The Guardian, ao qual dificilmente serão atribuídas suspeitas de simpatia pela monarquia e que ainda recentemente revelou que a família real tinha dinheiro em contas em paraísos fiscais, teve uma reação morna ao anúncio. “Do ponto de vista constitucional, este casamento não é lá muito importante”, escreve aquele jornal. “Este casamento dir-nos-á pouco sobre o estado da monarquia ou da nação, além da verdade evidente de que a maior parte das pessoas aprecia um casamento pomposo. A maior parte das pessoas vai colocá-lo em perspetiva. O casamento é uma feliz distração. Fascinante, sim. Agradável, sim. Importante, não muito”.
A julgar pela cobertura da imprensa tabloide, o grau de importância é mais alto do que aquilo que o The Guardian afiança. O The Sun publicou um número especial, com um poster do casal, onde anunciava em letras gordas: “Ela é a tal!”.
Tomorrow's front page: She's the one! pic.twitter.com/CfEjci4uHT
— The Sun (@TheSun) November 27, 2017
No dia seguinte, o rival Daily Mail dedicou-se a fundo ao tema. Para um artigo, recorreram aos serviços de especialista na leitura de lábios para saber o que Meghan Markle tinha dito ao príncipe Harry no intervalo da primeira entrevista que deram após o anúncio; depois, procurava saber a opinião do ex-marido da atriz norte-americana; noutra altura, escreveu sobre o “desgosto” da futura mulher do príncipe Harry por não poder levar um dos seus cães, que está no Canadá, para o Reino Unido.
“É uma possibilidade que as pessoas têm para escaparem, é um pouco de escapismo”, sublinha Phil Dampier. “Não me refiro a uma fuga da realidade, mas é algo que traz alegria à vida das pessoas”, explica o autor. “A Meghan vai ser uma pessoa muito diferente e vai ser entusiasmante segui-la.”
Para Phil Dampier, a chegada de Meghan Markle à família real britânica deu-se “na altura perfeita para a instituição”. “Ela vai ser muito boa porque as pessoas de minorias étnicas vão poder identificar-se com ela”, diz, aludindo ao facto de Meghan Markle ser filha de pai branco e mãe negra. “Precisávamos de sangue fresco e do entusiasmo que ela pode trazer.”
Bob Morris realça as mudanças na sociedade britânica que agora, por fim, começam a ter um reflexo na família real. “É o reconhecimento de que algumas coisas mudaram na sociedade britânica e representa a forma que a monarquia encontrou para responder a isso, consciente ou inconscientemente”, explica. Embora reconheça que é a família real que se adapta às alterações que partem da sociedade, e não o seu reverso, Bob Morris sublinha ainda assim que “isto demonstra que a monarquia é capaz de dar uma resposta”.
“A família real começa agora a refletir a imagem de uma sociedade multicultural”, refere o constitucionalista. “E o facto de isso não ser assinalado é, ao mesmo tempo, assinalável.”
Ainda assim, em editorial, o Telegraph destacou precisamente esse facto. “As núpcias vindouras do príncipe Harry com a sua noiva, Meghan Markle, são um emblema de uma nação que mudou enormemente e que já não está agarrada à tradição bafienta partilhada pelos cortesãos, os establishment que procuram dar razão a Shakespeare quando ele apontava que o amor verdadeiro nunca tem um caminho fácil”, escreveu aquele jornal.
Na Spectator, a colunista Melanie McDonagh foi mais direta ao ponto: “Há 70 anos, Meghan Markle teria sido o tipo de mulher que o príncipe teria como amante e não como mulher”.
Para Bob Morris, tudo isto tem importância “acima de tudo do ponto de vista social”. Quanto à política, admite, “nem tanto”. “Mas também não é isso que as pessoas esperam da família real”, acrescenta.
Política? Não, caridade
Nesse caso, então o que esperam os britânicos da sua família real? Para o constitucionalista, grande parte das expectativas passam pelo patrocínio e apoio a causas sociais e iniciativas de caridade. Neste momento, há mais de 3 mil organizações apadrinhadas ou presididas por membros da família real britânica. O príncipe Carlos dedica-se a causas maioritariamente ligadas à área da educação, sobretudo nas artes e arquitetura. O príncipe William é conhecido por dar seguimento ao trabalho que a mãe, a princesa Diana, dedicou ao combate ao vírus da Sida, mas também ao bem-estar animal. E o príncipe Harry, que enquanto militar chegou a ser destacado para o Afeganistão, dá especial atenção a iniciativas ligadas a veteranos de guerra.
No relatório “The Queen at 90, The Changing Role of The Monarchy, and Future Challenges“, do qual Bob Morris é coautor, lê-se que esta priorização de iniciativas sociais por parte da família real não só a afasta da atividade política, como liberta o executivo dessas tarefas. “A soma dessas atividades é considerável e tem o claro benefício público de aliviar o governo executivo do peso das cerimónias oficiais”, lê-se naquele relatório. “A monarquia permite fazer uma distinção clara, por um lado, entre a representação cerimonial da comunidade e, por outro, a responsabilidade política.”
Segundo as sondagens, esta fórmula funciona — pelo menos para a monarquia britânica e para a sua popularidade. De acordo com um estudo de opinião da Opinium deste ano, 65% dos britânicos são a favor da continuação da monarquia no Reino Unido e apenas 19% querem que ela acabe.
Para Bob Morris, esses números, que não destoam de sondagens feitas nos anos anteriores, justificam-se com o facto de “a família real não ser uma instituição política em praticamente sentido nenhum”. “Não produz qualquer tipo de ameaça, não alinha na ferocidade política que existe noutras esferas”, diz o professor da City, University of London.
São poucas as opiniões políticas que se conhecem à rainha Isabel II, que ao longo do seu reinado (o mais longo da monarquia britânica, quase a chegar aos 66 anos) tem pautado a sua intervenção política pela discrição e pela neutralidade — pelo menos assim é, em público. Tanto que, quando o The Sun fez manchete a dizer que a rainha Isabel II era a favor do Brexit, a Casa Real apresentou queixa contra o jornal à autoridade reguladora da comunicação social.
Porém, é um facto público que, todas as semanas, a rainha Isabel II recebe no Palácio de Buckingham a visita do líder do executivo para, presume-se, discutir a atualidade política do país. As reuniões decorrem à porta fechada e o registo que resulta delas não é público. Pode ser esta uma oportunidade para a monarca usar a sua experiência — Theresa May é o número 13 numa lista de primeiros-ministros que lhe passaram pelas mãos e que começa com Winston Churchill — para influenciar o decurso da política britânica?
Bob Morris diz que “é impossível dizer de que forma é que a Rainha influencia” a ação do executivo. “Mas o facto de os primeiros-ministros se reunirem com ela não significa que há uma influência direta. Não me parece que haja qualquer medida política na qual possamos pegar e dizer que ela tem as impressões digitais da Rainha”, explica o constitucionalista, que se opõe à sugestão de aquelas reuniões são pouco transparentes. “Até que ponto é que queremos verdadeiramente levar a transparência?”, lança. “É do conhecimento público que as reuniões acontecem, mas não deixam ainda assim de ser uma ocasião privada.”
Uma espécie em vias de extinção que o Brexit (entre outras coisas) pode salvar
Apesar do otimismo que a notícia do casamento do príncipe Harry com Meghan Markle suscita em Phil Dampier, o jornalista admite ainda assim que a monarquia britânica e a família real podem ser “uma espécie em vias de extinção”.
“A Rainha tem um nível de popularidade muito alto e as pessoas têm muita estima por ela”, explica o jornalista. “Já são mais de 65 anos de serviço, que criaram uma relação muito forte que, possivelmente, pode ser insubstituível. Quando a Rainha e o príncipe Filipe morrerem, podemos entrar numa era em que poderá ser difícil para os seus sucessores terem sucesso.”
Os olhos estão postos no príncipe Carlos — e os dois especialistas ouvidos pelo Observador revelam algum pessimismo quanto ao sucessor da rainha Isabel II. “Ele tem de fazer menos declarações polémicas”, atira Bob Morris. “Esperemos que o príncipe Carlos abandone o seu lado controverso”, completa Phil Dampier.
A lista de gaffes não é tão extensa quanto a do seu pai — cujos deslizes verbais foram contemplados em vários livros de Phil Dampier —, mas ainda assim é um claro contraste com a postura de neutralidade e reserva da rainha Isabel II. Apesar de recentemente ter causado polémica por ter defendido o uso da homeopatia (quando falava de tratamento veterinário e não de seres humanos), a maior parte das controvérsias em que o príncipe Carlos está envolto diz respeito a uma das suas maiores paixões: a arquitetura.
Em tempos, descreveu as obras de extensão da National Gallery como um “carbúnculo monstruoso” e chegou a sugerir que uma obra de arquitetura moderna na Paternoster Square fez mais danos do que os bombardeamentos nazis na Segunda Guerra Mundial. Além disso, pode ter sido responsável pelo fracasso de um projeto de reconstrução das Chelsea Barracks, depois de ter enviado uma carta ao primeiro-ministro do Qatar onde dizia que o seu coração “caiu” quando viu o projeto arquitetónico que uma empresa estatal daquele país do Médio Oriente tinha para aquela obra.
“Ele devia estudar mais a mãe dele”, aconselha Bob Morris. “Ela nunca fez qualquer tipo de declarações controversas e consegue sempre encontrar uma maneira de apoiar e encorajar as pessoas sem fazer uso de uma visão parcial.”
Para Phil Dampier, a monarquia britânica pode deixar de ser uma “espécie em vias de extinção” se souberem “jogar bem as cartas que têm na mão”. Para isso, o Brexit pode ser essencial, explica.
“Se a decisão dos britânicos tivesse sido continuar na União Europeia, é possível que a monarquia se tornasse ainda menos relevante”, admite o jornalista. “Com o avançar do tempo, podíamos chegar a um ponto em que o nosso chefe de Estado poderia ser um presidente da Europa, se alguma vez essa figura viesse a ser criada. Agora, com o Brexit, é precisamente o oposto. A posição da família real e da monarquia está de pedra e cal.”
Para Bob Morris, não é líquido que o Brexit venha a beneficiar a monarquia britânica e o seu prestígio — mas dificilmente terá o efeito contrário. “A saída do Reino Unido da União Europeia irá trazer a monarquia de volta para o centro das atenções do nosso país, porque já não vai estar a competir com nenhum projeto europeu. Nesse sentido, pode ser uma força ainda maior de união.”
É por isso que, na opinião de Phil Dampier, a longo prazo, a monarquia britânica “está em boas mãos”, apesar dos desafios que pode encontrar pelo caminho. Um deles, admite, é a racionalidade. “Se olharmos para as coisas de uma forma racional, não seria necessário haver uma monarquia”, admite. “Se começássemos agora um país de raiz, não faria sentido haver uma família com as rédeas do poder. Mas isto tem funcionado. Porque é que haveríamos de parar agora?”